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Tolkien e a Imortalidade

Pio XII e os perigos do tecnicismo

A razão “técnica” não é um mal em si, mas, desconectada de outros âmbitos da racionalidade humana, ela enlouquece e pode ter resultados catastróficos.

A partir de uma radiomensagem do venerável Papa Pio XII, Padre Paulo Ricardo tira as consequências espirituais de tudo o que aprendemos em nosso curso sobre “Tolkien e a Imortalidade”. O que precisamos fazer, afinal, para não cair na armadilha da mentalidade técnica?

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Vimos ao longo deste curso que o Anel representa para Tolkien a mentalidade mágico-tecnológica que se apoderou em boa medida do homem dos nossos tempos. Trata-se, de um lado, da renúncia a crescer interiormente pelo exercício das virtudes morais e, de outro, da pretensão de querer construir um “mundo melhor” recorrendo a artificialismos técnicos e impessoais.

O homem de hoje, noutras palavras, quer gozar de uma felicidade que só se alcança pela virtude sem ter de pagar o preço de vencer-se a si mesmo precisamente através da virtude e da conformidade com a ordem natural das coisas.

Esse mesmo problema, denunciado por Tolkien sob a figura do Anel do Poder em sua literatura fantástica, foi denunciado também pelo Papa Pio XII, em sua radiomensagem de Natal de 1953, com o nome de “espírito técnico”, caracterizado como uma certa concepção de vida e de mundo consistente “em considerar como o mais alto valor humano […] o tirar o maior proveito das forças e dos elementos da natureza”, priorizando sobre “todas as outras atividades humanas os possíveis métodos técnicos de produção mecânica, vendo neles a perfeição da cultura e da felicidade terrena” [1].

Pio XII, em resumo, alertava para os perigos do progressismo materialista e de uma esperança, por assim dizer, quase messiânica num suposto poder da tecnologia para nos conduzir a um estado de “felicidade perfeita”, garantida por meios puramente técnico-científicos.

Também o Papa Bento XVI faria eco a essa crítica à fé no progresso lembrando que, já no início do século XX, alguns pensadores — inclusive de orientação marxista — viam na evolução tecnológica um simples passo do arco-e-flecha para a bomba atômica [2], ou seja, um mero incremento do poder destrutivo do ser humano.

Essa destruição, contudo, não poderia manifestar-se externamente se não contasse antes com um princípio interno ao próprio homem, pois é na recusa prévia da verdade e, por consequência, da virtude ética que o homem começa a desorientar-se no uso de suas capacidades e dos recursos materiais deste mundo.

Ao idolatrar o produto técnico de suas próprias mãos, o homem mesmo se converte em máquina: desumaniza-se, pondo-se ao serviço de engrenagens que, no fundo, só têm sentido se estão em função do bem humano integral e respeitam os limites que a própria natureza nos impõe.

Como diz o Papa Pio XII na referida radiomensagem:

[…] parece inegável que a […] técnica, levada no nosso século ao apogeu do esplendor e do rendimento, se transforma por circunstâncias de fato em grave perigo espiritual. Diríamos que dá ao homem moderno, inclinado diante do seu altar, um sentido de autossuficiência e de satisfação plena das suas aspirações de conhecimento e de poder sem limites. Com o seu múltiplo emprego, a absoluta confiança que suscita, as inexauríveis possibilidades que promete, a técnica moderna desenvolve em torno do homem contemporâneo uma visão tão vasta que leva muitos a confundi-lo com o próprio infinito. Atribui-se-lhe, por conseqüência, uma autonomia impossível [3].

Embriagado de tecnicismo, o homem de hoje, com muito mais facilidade do que em épocas passadas, sofre de uma grave incompreensão não só dos mistérios de Deus, mas às vezes até mesmo de verdades claras e acessíveis à luz natural da razão:

Não é senão a exagerada e, algumas vezes, exclusiva estima do chamado “progresso técnico”. Este, primeiramente sonhado como mito onipotente e manancial de felicidade, e depois levado com toda a sorte de recursos até às mais audazes conquistas, impôs-se às consciências como fim último do homem e da vida, substituindo-se, portanto, a qualquer espécie de ideais religiosos e espirituais. Hoje, vê-se com clareza cada vez maior que a sua indevida exaltação cegou os olhos dos homens modernos, tornou surdos os seus ouvidos, a ponto de se verificar neles o que o Livro da Sabedoria flagelava nos idólatras do seu tempo (Sb 13, 1): são incapazes de reconhecer através do mundo visível Aquele que é, de descobrir pela obra o artista [4].

Não é que a técnica, reconhece Pio XII, leve por si mesma

[…] a renegar os valores religiosos, por força da lógica; esta […] conduz antes a descobri-los. Mas esse “espírito técnico” põe o homem em condição desfavorável para procurar, ver e aceitar as verdades e os bens sobrenaturais. A mente que se deixa seduzir pela concepção da vida ditada pelo “espírito técnico” fica insensível, desinteressada e, portanto, cega diante das obras de Deus, de natureza completamente diversas da técnica, como são os mistérios da fé cristã [5].

Esse “espírito técnico” pode ser entendido ainda como uma deturpação moderna do mandamento que o Senhor deu a Adão e, por ele, a todos os homens de domar e submeter a terra (cf. Gn 1, 28). Não seria exagero ver nessa deformação da ordem divina um novo tipo de gnosticismo, para o qual é ao homem, e não ao Criador, que cabe ditar como há de ser o mundo — à sua “imagem e semelhança” —, o qual teria saído imperfeito das mãos de Deus.

Essa concepção técnica da vida alberga, além disso, o perigo de nos fechar os olhos para a constitutiva fragilidade de nossa condição nesta terra. De fato, a exaltação de um conceito “triunfalista” de tecnologia, na qual são depositadas esperanças desmedidas e o desejo insensato de submeter a natureza a todo custo aos caprichos humanos, conduz a uma falsa sensação de autossuficiência e a um apego cada vez maior às coisas terrenas.

O resultado disso, como temos visto acontecer com a chamada ideologia de gênero, é a ilusão de uma perfeita autonomia, que chega ao extremo de rejeitar a própria condição sexual de homem ou mulher. Trata-se, também aqui, de uma das várias manifestações desse “espírito técnico”, que não é mais do que a tentativa de fazer as vezes de Criador.

Na raiz do problema, podemos identificar a desvinculação da razão em seu uso produtivo (ou “razão poiética”, poderíamos dizer) da razão em seu uso primordialmente teórico, referido à verdade das coisas como elas são de fato. Quando a atividade produtora deixa de estar subordinada às exigências da realidade, descobertas pelo esforço intelectual de encontrar o ser das coisas, a técnica se transforma em tirania: é o mundo que passa a ter de adequar-se ao que homem quer e imagina, e não mais o homem que tem de atuar em conformidade com o que o mundo é em si mesmo.

Tudo isso, ao fim e ao cabo, não é mais do que a pretensão  — um simulacro de mau gosto — de querer igualar-se a Deus, para cuja inteligência a verdade não é uma adequação com algo externo e distinto, mas o resultado de sua própria atividade criadora das coisas. É, no fundo, consequência daquele “sereis como Deus” com que a serpente enganou nossos pais no paraíso terreno (cf. Gn 3, 5).

Longe de diminuírem o valor do progresso técnico, as presentes considerações permitem, na verdade, apreciá-lo em sua justa medida. Desde que não se transforme em instrumento de insubordinação a Deus, em meio de “elevar” o ser humano acima de sua radical condição de cooperador do Criador, a técnica constitui, evidentemente, uma admirável expressão da engenhosidade humana e uma forma singular de expressar a grandeza, a sabedoria e a harmonia inigualáveis com que Deus criou o mundo e as leis que o governam [6].

Referências

  1. Pio XII, Radiomensagem de Natal (1953), sobre os perigos do tecnicismo, n. 7.
  2. Bento XVI, Encíclica “Spe salvi”, de 30 nov. 2007, n. 22 (AAS 99 [2007] 1004).
  3. Pio XII, op. cit., loc. cit.
  4. Id., n. 4.
  5. Id., n. 10.
  6. Id., n. 6.

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