A Igreja da Suécia deixará de se referir a Deus com termos masculinos, como “Ele” ou “Senhor”, segundo vários sites de notícias. De acordo com a “arcebispa” Antje Jackelén, líder da denominação, “Deus não é humano” e “está além de nossas determinações de gênero”.

A novidade foi anunciada no último dia 23 de novembro, após oito dias de conferência, durante os quais foram discutidas mudanças nos serviços religiosos “em termos de linguagem, hinos e liturgia”. A medida será adotada a partir de Pentecostes do ano que vem, 20 de maio de 2018.

É importante esclarecer, antes de qualquer coisa, que a chamada “Igreja da Suécia” é uma comunidade protestante de confissão luterana. O ramo separou-se da Igreja Católica em 1527, permanecendo vinculado ao Estado até o ano de 1999. Trata-se de mais um ramo evangélico que se rendeu, há muito tempo, à ordenação de mulheres — e isso sem dúvida nenhuma influenciou a decisão em questão.

A grande pergunta que precisa ser respondida é com que edição das Sagradas Escrituras os protestantes suecos pretendem trabalhar a partir de agora. Sim, porque, se o melhor modo de invocar a Deus e se referir a Ele é com expressões “de gênero neutro”, a tradição judaico-cristã inteira precisa ser reformulada. O que será feito dos trechos bíblicos numerosíssimos que fazem questão de invocar a Deus com termos masculinos? Os luteranos da Suécia continuarão, por acaso, a rezar o Pai-Nosso? Ou terão de formular, pelo contrário, uma versão da oração mais adequada às teorias de gênero — talvez um “Mãe-Nossa”?

O Homem das Dores Abençoando, de Hans Memling.

E quanto a Jesus Cristo? A dirigente da Igreja Sueca, Antje Jackelén, acerta ao dizer que “Deus não é humano” e, portanto, não possui sexo. Com o mistério da Encarnação, no entanto, o Verbo divino se fez homem, do sexo masculino. Jesus de Nazaré não era um espírito sem corpo, tampouco um andrógino. Também se evitará chamá-lo de “Senhor”, de “Mestre” e de “Redentor”?

Essas são interrogações pertinentíssimas, às quais os cristãos pretensamente “avançados” de nosso tempo precisam dar uma resposta adequada, sob o risco de fazer cair em descrédito toda a herança que receberam não só dos Apóstolos, mas também dos patriarcas e dos profetas do Antigo Testamento. Se há uma coisa que precisa ser (re)gravada em nossa memória — especialmente em tempos de relativismo —, é o fato de que a fé não é algo que se inventa, mas um dom que se recebe: “Eu vos transmito aquilo que eu mesmo recebi” (1Cor 11, 23; 15, 3).

A esse propósito, vale muito a pena revisitar uma resposta que o Papa Bento XVI concedeu a essa questão, em seu livro “Jesus de Nazaré”. Trata-se de uma solução bastante despretensiosa para o problema, mas que sem dúvida joga uma luz no modo como devemos nos dirigir a Deus. Os grifos no excerto são nossos:

Não é Deus também mãe? Há a comparação do amor de Deus com o amor de uma mãe: “Como uma mãe consola os seus filhos, assim Eu vos consolo” (Is 66, 13). “Acaso pode uma mulher esquecer-se do menino que amamenta, uma mãe esquecer-se do seu filho: E mesmo quando ela o esquecesse: Eu não te esqueço” (Is 49, 15). Particularmente impressionante se revela o mistério do amor materno de Deus na palavra hebraica rahamim, que significa propriamente o seio materno, mas que se torna então caracterização da compaixão divina para com o homem, da misericórdia de Deus.

Órgãos do corpo humano tornam-se caracterizações no Antigo Testamento, atitudes fundamentais do homem ou também dos sentimentos de Deus, de um modo semelhante ao que o coração e o cérebro desempenham hoje sendo afirmações sobre nossa própria existência. Assim, o Antigo Testamento representa as atitudes fundamentais da existência não de um modo conceitual abstrato, mas na linguagem imagética do corpo. O seio materno é a expressão mais concreta para o íntimo entrelaçar-se de duas existências e para a atenção à dependente e frágil criatura que no corpo e na alma está totalmente em segurança no seio da mãe. A linguagem imagética do corpo oferece-nos assim uma compreensão mais profunda dos sentimentos de Deus a respeito do homem, do que seria possível a qualquer linguagem conceitual.

Se na linguagem formada a partir da corporeidade do homem parece inscrito o amor da mãe na imagem de Deus, vale porém, ao mesmo tempo, que Deus nunca é designado como mãe nem que com esta invocação alguém a Ele se dirija, nem no Antigo nem no Novo Testamento. “Mãe” não é na Bíblia um título divino. Por quê? Só podemos tentar compreender isto às apalpadelas. Naturalmente, Deus não é nem homem nem mulher, mas precisamente Deus, o criador do homem e da mulher. As divindades maternas, que habitavam nos espaços ao redor tanto do povo de Israel como da Igreja do Novo Testamento, mostram uma imagem da relação entre Deus e o mundo que é inteiramente oposta à imagem bíblica de Deus. Elas incluem sempre, e mesmo inevitavelmente, concepções panteístas, nas quais desaparece a distinção entre o Criador e a criatura. O ser das coisas e dos homens aparece deste ponto de partida necessariamente como uma emanação do seio materno do ser, o qual se temporaliza na pluralidade dos entes.

Em contraste com esta concepção, a imagem do pai era e é adequada para exprimir a alteridade entre Criador e criatura, a soberania do ato criador. Somente por meio da exclusão das divindades maternas podia o Antigo Testamento levar à maturidade a sua imagem de Deus, a pura transcendência de Deus. Mas mesmo se não podemos oferecer absolutas nem concludentes fundamentações, para nós permanece normativa a linguagem da oração de toda a Bíblia, na qual, como dissemos, apesar de todas as grandes imagens do amor materno, “mãe” não é nenhum título divino, não é nenhuma alocução para Deus. Nós rezamos como Jesus no horizonte da Sagrada Escritura nos ensinou a rezar, não como nos lembra ou nos apetece. Só assim é que rezamos corretamente. [1]

Evidentemente, muitos outros aspectos desse problema poderiam ainda ser abordados. Por ora, no entanto, é suficiente para a nossa reflexão o fato de que, as comunidades cristãs que nasceram depositando unicamente na Bíblia o fundamento de sua fé hoje, curiosamente, são as que mais se afastam, em sua estrutura hierárquica, em sua liturgia e em sua moral, daquilo que realmente dizem as Sagradas Escrituras.

“Para nós”, católicos, ao contrário, “permanece normativa a linguagem de oração de toda a Bíblia”, diz o Papa emérito Bento XVI. “Nós rezamos como Jesus no horizonte da Sagrada Escritura nos ensinou a rezar” — não como nos agrada!

Referências

  1. Papa Bento XVI, Jesus de Nazaré: do batismo no Jordão à transfiguração, trad. de José Jacinto Ferreira de Farias. São Paulo: Planeta, 2007, pp. 129-131.

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