O Verbo de Deus se fez carne para, rasgando o "véu do templo (...) em duas partes de alto a baixo" (Cf. Mt 27, 51), "abrir os olhos aos cegos, para tirar do cárcere os prisioneiros e da prisão aqueles que vivem nas trevas" (Cf. Is 42, 7).

A promessa divina ao Povo de Israel falava de um novo Moisés, um profeta que, a exemplo do primeiro, fosse capaz de falar "face a face" com o Senhor. Mas, de maneira bastante singular, esse novo Moisés não só veria o rosto de Deus verdadeiramente, como também viveria na mais perfeita relação filial. Se, portanto, no primeiro se encontrava apenas a sombra do Altíssimo - uma vez que de Deus pôde ver somente as costas (Cf. Ex 33, 23) -, no segundo, revela-se o rosto bondoso do Pai. Em Cristo, Deus já não é mais um estranho; é um amigo que, entregando-se completamente na cruz, arranca o homem das trevas e o introduz no mistério do amor. No sacrifício do madeiro, derrama-se o sangue da redenção, cuja única gota "faz salvar todo o mundo e apagar todo o pecado"[1]. Cristo veio à Terra para trazer Deus: "Ele trouxe aos povos da terra o Deus cujo rosto lentamente tinha antes desvelado desde Abraão passando por Moisés e pelos profetas"[2].

Foi inspirado por isso que Santo Tomás de Aquino escreveu na Suma Teológica aquele belíssimo texto, cantado na liturgia do Sábado Santo, durante a bênção do círio pascal: "Ó feliz culpa, que mereceu tal e tão grande Redentor". Eis a graça do Senhor que faz dos abismos da humanidade caminhos para a salvação. Vendo a condição de sua criatura, escravizada pelas correntes do mal, não a abandonou à própria sorte, mas - amando-a de tal maneira - enviou seu próprio Filho "para que todo o que n'Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Cf. Jo 3, 16). O pecado, ao mesmo tempo em que rompe a relação de amizade com Deus, suscita a busca misericordiosa do Pai. Ele parte atrás do filho que se machucou, desce até mesmo aos infernos, "vai procurar Adão, nosso primeiro pai, a ovelha perdida.": "Quer ir visitar todos os que se assentaram nas trevas e à sombra da morte. Vai libertar de suas dores aqueles dos quais é filho e para os quais é Deus: Adão acorrentado e Eva com ele cativa"[3].

Com efeito, a obra da redenção de Cristo começa desde a manjedoura. Para que pudesse redimir a humanidade, era necessário que Ele experimentasse todo o drama do homem, bem como suas angústias e alegrias, seus medos e suas esperanças. Jesus toca toda a nossa existência. E, por isso, faz-se igual a nós em tudo, exceto no pecado. Chora perante a dor de uma perda - como na morte de Lázaro -, enfurece-se diante da hipocrisia dos homens - empunhando o chicote para bater nos vendilhões do templo -, sente fome no deserto, unindo-se ao desespero de tantos que ainda hoje vivem essa mesma miséria. Enfim, Cristo consagra-se a si mesmo: "Eu consagro-me por eles, para eles serem também consagrados na verdade" (Cf. Jo 17, 19). Em virtude disso, cada cristão é chamado a contribuir nesta mesma obra, completando em sua própria carne as dores que faltaram na paixão de Jesus. E esta obra redentora de Cristo -- lembrava o Papa João Paulo II -- " deve ser participada pelo mundo pela mediação da Igreja"[4].

A missão da Igreja é anunciar Cristo, fazer-se portadora da sua mensagem, em meio as tantas dificuldades que o mundo de hoje apresenta. Essa missão obedece uma ordem: "O pão é importante, a liberdade é mais importante, mas o mais importante é a adoração"[5]. Precisamente por isso que ela não pode rebaixar a sua ação pastoral à de uma "ong piedosa"[6]. Em primeiro lugar deve estar o anúncio, a entrega da Palavra de Deus. Cristo e Igreja somam um único Corpo, e é somente neste corpo que o homem pode encontrar sossego, pode encontrar a salvação, "porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso."[7] Parece absurdo que a Igreja tenha que se preocupar primeiro com a mensagem, depois com alimento. Diante de uma criança faminta que pede esmola na rua, pode representar até mesmo certa crueldade. Mas é justamente o contrário; é por se preocupar com a fome que a Igreja presta o devido culto a Deus, pois "onde esta ordem dos bens não for respeitada, mas invertida, não haverá nenhuma justiça, não haverá mais cuidado com os homens que sofrem; mas precisamente aí o domínio dos bens materiais será desorganizado e destruído"[8]. A verdadeira caridade nasce do alto da cruz, nasce do sacrifício - a Palavra de Deus é o verdadeiro alimento, "o pão descido do céu" (Cf. Jo 6, 51). O roubo, por sua vez, nasce justamente da inversão desses valores, transformando Deus em um objeto secundário. A esse respeito, ensinava Bento XVI:

[...] Trata-se do primado de Deus. Trata-se de O reconhecer como realidade, como a realidade sem a qual nada mais pode ser bom. A história não pode ser regulada longe de Deus por estruturas simplesmente materiais. Se o coração do homem não for bom, então nada pode tornar-se bom. E a bondade do coração só pode, em última instância, vir daquele que é bom, que é o bem em si mesmo[9].

O exemplo de São Francisco de Assis, Dom Bosco e Madre Teresa de Calcutá nos dá essa certeza. Estes homens e mulheres santos só fizeram o que fizeram pelos pobres porque antes se entregaram totalmente a Deus, passando horas a fio à frente do sacrário. Quanto nos penaliza, portanto, "que muitos participem tão friamente na obra da Redenção de Cristo"[10]. Há-de se lamentar, obviamente, da "sujeira" que há na Igreja, do modo como "se abusa do Santíssimo Sacramento", de como se abusa "da sua presença", a "traição dos discípulos, a recepção indigna do seu Corpo e do seu Sangue é certamente o maior sofrimento do Redentor, o que Lhe trespassa o coração"[11]. Quando a Igreja, por alguma razão, deixa de anunciar Jesus, ela se converte em um instrumento do Anticristo, "confessa o mundanismo do diabo", "o mundanismo do demônio"[12]. Deveríamos pensar muito bem nisso antes de reclamarmos da riqueza da liturgia, da sua beleza e ornamentação. Judas terminou numa forca, trocando Cristo por algumas moedas de prata e reclamando do perfume que havia sido usado para lavar os Seus pés: "Por que não se vendeu este bálsamo por trezentos denários e não se deu aos pobres" (Cf. Jo 12, 5). Não é mero acaso que as experiências revolucionárias dos dois últimos séculos tenham também terminado em grandes forcas: "Dizia isso não porque ele se interessasse pelos pobres, mas porque era ladrão e, tendo a bolsa, furtava o que nela lançavam" (Cf. Jo 12, 6).

A Igreja, seguindo os passos de Cristo, existe para frear o avanço do inferno na Terra. Quem está nela está em Cristo. E somente quem está em Cristo pode enxergar a face bondosa do Pai, na qual se revela Sua obra redentora, a loucura do seu amor: a vitória da cruz!

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