O Coliseu é um dos cartões postais mais famosos da Cidade de Roma. Construído por volta do ano 70 d.C., a mando do imperador romano Vespasiano, o local é frequentemente associado aos mártires cristãos. Em 1741, o papa Bento XIV declarou-o sagrado e consagrou-o à Paixão de Cristo. E desde 1964, graças a um costume iniciado por Paulo VI, o Coliseu é o lugar onde os papas se reúnem com os fiéis de Roma para meditar as 14 estações da
Via Crucis.
Embora não exista nenhuma evidência histórica que confirme os relatos de martírios dentro do Coliseu, o simbolismo é inequívoco. O cristianismo nasceu debaixo da bota do Império Romano e foi regado a sangue durante um longo período. Portanto, não se pode considerar inadequada a relação entre o maior ícone dos romanos e os mártires do cristianismo. Deveras, o Coliseu é o palco adequado para reviver os momentos finais da paixão do Senhor, sobretudo as suas três quedas, que nada mais são do que as quedas do seu Corpo Místico: a Igreja.
A Tradição ensina que assim como Cristo viveu a sua páscoa, também a Igreja deverá entrar na glória do Reino por meio de uma paixão, morte e ressurreição [1]. Diz o Catecismo: "O Reino não se consumará, pois, por um triunfo histórico da Igreja segundo um progresso ascendente, mas por uma vitória de Deus sobre o último desencadear do mal". Como será isso? Mais uma vez o Catecismo responde: "A perseguição, que acompanha a sua peregrinação na Terra, porá a descoberto o 'mistério da iniquidade', sob a forma duma impostura religiosa, que trará aos homens uma solução aparente para os seus problemas, à custa da apostasia da verdade."
O Catecismo fala abertamente em apostasia. Ao longo da história da Igreja, grandes foram as perseguições seculares, ora de governos iníquos, ora de ideologias anticristãs. Mas o real inimigo da fé está, e sempre esteve, dentro da própria Igreja: "A maior perseguição da Igreja não vem de inimigos externos, mas nasce do pecado na Igreja" [2]. As heresias, os cismas, a rebeldia contra o Magistério e contra o papa foram, na sua maior parte, iniciadas por padres e bispos. Ário, Nestório, Pelágio, Lutero et caterva. Todos sacerdotes e heresiarcas. Todos semeadores de joio no meio do trigal.
É dentro deste contexto que se compreendem aquelas severas advertências do Cardeal Joseph Ratzinger, durante a Via Sacra de 2005. No Coliseu, diante dos holofotes do mundo todo, falou-se de uma "uma barca que está para afundar, uma barca que mete água por todos os lados." Falou-se da Igreja e do horror que nos causava a sujeira do seu vestido e do seu rosto. "Somos nós mesmos que os sujamos! Somos nós mesmos que Vos traímos sempre, depois de todas as nossas grandes palavras, os nossos grandes gestos", lamentava-se.
Em sua meditação, escrita a pedido do então pontífice São João Paulo II, Ratzinger apontou três pontos graves na crise da Igreja. O primeiro diz respeito à Eucaristia: "Quantas vezes se abusa do Santíssimo Sacramento, da sua presença, frequentemente como está vazio e ruim o coração onde Ele entra". Desde a Reforma Litúrgica de 1969, é perceptível uma abusiva e errônea aplicação dos decretos conciliares que, sob os augúrios de uma criatividade sem freios, tende a minimizar o quanto pode os gestos de reverência e adoração. O jargão mais ouvido é este: "A Eucaristia deve ser comida, não adorada". A Hóstia Santa revela todo o despojamento de Jesus, entregando-se ao homem não mais como homem, mas como alimento salvífico. Trata-se do próprio Jesus na aparência do pão e do vinho. Dominus est (Jo 21, 7). Como, destarte, não adorá-la? Como não se ajoelhar, não honrá-la com incensos e perfumes? Ora, responde Santo Agostinho, "não só não pecamos adorando-a, mas pecaríamos se não a adorássemos" [3]. É justamente porque não nos preparamos devidamente, adorando-a "em espírito e verdade" (Jo 4, 23), que a recebemos como se se tratasse de mero pedaço de pão.
Segundo ponto: "Quantas vezes se contorce e abusa da sua Palavra! Quão pouca fé existe em tantas teorias, quantas palavras vazias! Quanta sujeira há na Igreja, e precisamente entre aqueles que, no sacerdócio, deveriam pertencer completamente a Ele!" Virou moda entre os teólogos modernos "repensar" a teologia. Repensar a ressurreição. Repensar o pecado. Repensar a encarnação. E nem é preciso dizer que esse "repensar" significa esvaziar todo o conteúdo espiritual de Cristo, tornando-o um personagem do passado, que nada mais tem a dizer-nos, senão "exemplos" morais e ideológicos. Um Cristo assim não só não faz sentido, como se torna desprezível.
Por fim: "Quanta soberba, quanta autossuficiência! Respeitamos tão pouco o sacramento da reconciliação, onde Ele está à nossa espera para nos levantar das nossas quedas!" Em quantos lugares os confessionários foram substituídos por salinhas e escritórios para atendimento psicológico. O sacramento com que Cristo nos perdoa e nos insere de novo em sua amizade é reduzido a conselhos mundanos, não raras vezes, pautados em filosofias liberais e pecaminosas. "Tudo isto está presente na sua paixão", ponderou na época o futuro Bento XVI, "a traição dos discípulos, a recepção indigna do seu Corpo e do seu Sangue é certamente o maior sofrimento do Redentor, o que Lhe trespassa o coração."
Não obstante, esses pecados dentro da Igreja, longe de tolher a esperança cristã, desvendam a face do Cristo que sofre continuamente por nós. Ele, como no caminho do Calvário, não fica eternamente no chão. Levanta-se mais uma vez para nos levantar definitivamente. É sempre d'Ele a última palavra. "Vós erguer-Vos-eis. Vós levantastes-Vos, ressuscitastes e podeis levantar-nos também a nós. Salvai e santificai a vossa Igreja. Salvai e santificai a todos nós", rezava Ratzinger na nona estação. Vale recordar que o símbolo maior do Império Romano é hoje a tradicional casa dos cristãos, na celebração da Paixão de Cristo. Deus venceu o imperador!
Que esta Sexta-Feira Santa leve-nos a meditar todos esses pontos elencados pelo Papa Emérito — a nossa recepção da Sagrada Eucaristia, os pecados do clero e os abusos contra a confissão —, para que recebamos de Cristo a necessária purificação do nosso coração.
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