Publicamos a seguir entrevista exclusiva concedida à ZENIT pelo Cardeal Mauro Piacenza, Prefeito da Congregação para o Clero, em vista do 50° aniversário da abertura do Concílio Vaticano II.

Roma, segunda-feira, 08 de outubro de 2012

ZENIT: Eminência, com esta entrevista, a Zenit pretende inaugurar uma série de contribuições para o Ano da Fé, tendo em vista o Concílio Vaticano II, em ocasião do seu 50º aniversário. Por que tanto debate sobre este evento eclesial?

Card.Piacenza: O debate é sempre positivo, porque é um sinal de vitalidade e vontade de aprofundar; e se o tema do debate não é exclusivamente humano, mas um Concílio Ecumênico, ou seja, um evento humano e sobrenatural, pois é o Espírito Santo que conduz a Igreja à progressiva e plena compreensão da única Verdade revelada, então não surpreende que a compreensão dos ditames conciliares requeira décadas de discussões – e até mesmo de debates – sempre no sulco da escuta daquilo que o Espírito Santo quis dizer à Igreja naquele extraordinário momento.

ZENIT: Qual deveria ser um justo posicionamento diante do Concílio?

Card.Piacenza: Aquele de escuta! O Concílio Ecumênico Vaticano II foi o primeiro Concílio da “mídia”, cujas dinâmicas fisiológicas de confronto e respectivos textos foram imediatamente divulgados pelos meios de comunicação, que não captaram sempre a sua verdadeira expressão e, com frequência, orientaram para uma compreensão mundanizante. Creio que seja particularmente interessante – e, talvez, necessário – retomar, ou melhor, buscar uma autêntica escuta daquilo que o Espírito Santo quis dizer à toda a Igreja através dos Padres conciliares. Tal dinâmica de aprofundamento, este “justo posicionamento” realiza-se através da leitura direta dos textos. É a partir desta leitura que se pode inferir o autêntico espírito do Concílio, a sua exata localização dentro da história eclesial e a gênese editorial.

ZENIT: Algumas escolhas, também do Magistério, às vezes parecem que vão “contra” o Concílio.

Card.Piacenza: Basta considerar os pronunciamentos do Magistério autêntico pós-Conciliar, em sua dimensão universal, para constatar que isto não ocorreu. Entretanto, outra questão é favorecer uma correta recepção das decisões conciliares, esclarecer o significado de determinadas afirmações e, às vezes, corrigir devidamente interpretações unilaterais, ou até mesmo erradas, artificialmente introduzidas por quem lê os eventos pneumáticos eclesiais com lentes exclusivamente humanas e historicistas. O serviço eclesial do Magistério, que tem suas próprias raízes na explícita Vontade divina, prepara os Concílios Ecumênicos, neles atua com sua máxima expressão e, nas intervenções sucessivas, a eles obedecem, favorecendo uma correta recepção.

ZENIT: O que realmente significa a “hermenêutica da continuidade” de que fala o Santo Padre?

Card.Piacenza: Segundo aquilo que foi explicitamente indicado pelo Santo Padre, é o único modo de ler e de interpretar todo Concílio Ecumênico e, portanto, também o Concílio Vaticano II. A continuidade do único Corpo eclesial, antes de ser um critério hermenêutico, ou seja, de interpretação dos textos, é uma realidade teológica que tem suas raízes no ato de fé que nos faz professar: “Creio na Igreja Una”. Por esta razão não é possível pensar numa espécie de dicotomia entre o pré e o pós Concílio Vaticano II. Certamente deve ser reprovado o posicionamento de quem vê no Concílio Ecumênico Vaticano II um “novo início” da Igreja e também daqueles que vêem a “verdadeira Igreja” somente antes deste Concílio histórico. Ninguém pode, arbitrariamente, decidir se e quando inicia a “verdadeira Igreja”. Nascida do costado de Cristo e corroborada pela efusão do Espírito em Pentecostes, a Igreja é Una e Única, até a consumação da história, e a comunhão que nela se realiza é para a eternidade. Alguns sustentam que a hermenêutica da reforma na continuidade seja somente uma das possíveis hermenêuticas, juntamente com aquela da descontinuidade e da ruptura. O Santo Padre recentemente definiu como inaceitável a hermenêutica da descontinuidade (Audiência à Assembléia Geral da Conferência Episcopal Italiana, 24 de maio de 2012). Além disso, trata-se de algo óbvio, caso contrário não se seria católico e se injetaria como que um germe de infecção e de uma progressiva decadência; se provocaria, igualmente, um grave dano ao ecumenismo.

ZENIT: Mas é possível que seja tão difícil compreender esta realidade?

Card.Piacenza: Sabes melhor do que eu como a compreensão, também de realidades evidentes, pode ser condicionada por aspectos emotivos, biográficos, culturais e, até mesmo, ideológicos. É humanamente compreensível que quem viveu durante sua juventude, o legítimo entusiasmo que gerou o Concílio, desejoso de superar certas “obstruções” – que deveriam necessária e urgentemente serem tiradas da Igreja – possa interpretar como perigo de “traição” do Concílio toda expressão que não coadune com o mesmo “estado emotivo”. É necessário, para todos, um salto radical de qualidade na aproximação dos textos conciliares, para que se compreenda, depois de meio século daquele evento extraordinário, o que realmente o Espírito Santo sugeriu e sugere à Igreja. Cristalizar o Concílio na sua necessária, mas insuficiente, “dimensão entusiástica” equivale a não desenvolver um bom serviço ao trabalho de recepção do Concílio, que permanece quase paralisada, pois com o passar dos anos pode-se afrontar e se podem compartilhar avaliações sobre os textos objetivos, mas não sobre os estados emotivos e sobre os entusiasmos historicamente assinalados.

ZENIT: Sabe-se que Vossa Eminência sempre falou com grande entusiasmo do Concílio Vaticano II. O que ele representou para Vossa Eminência?

Card.Piacenza: Como não se entusiasmar com um evento tão extraordinário como um Concílio Ecumênico! Nele, a Igreja refulge em toda a sua beleza: Pedro e todos os Bispos em comunhão com ele, colocam-se em atitude de escuta do Espírito Santo, daquilo que Deus tem a dizer à Sua Esposa, procurando explicitar – segundo os auspícios do Beato João XXIII – no hoje da história, as imutáveis verdades reveladas e lendo os sinais de Deus nos sinais dos tempos, e os sinais dos tempos à luz de Deus! Dizia o mesmo Pontífice na solene alocução de abertura do Concílio, no dia 11 de outubro de 1962: “Transmitir pura e íntegra a doutrina, sem atenuações nem subterfúgios [...] esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo”. Nos anos do Concílio eu era um jovem estudante, depois, seminarista e o meu ministério sacerdotal, desde os primeiros passos desenvolveu-se à luz do Concílio e das suas reformas. De fato, fui ordenado sacerdote em 1969. Não posso negar que sou filho do Concílio que, também graças aos meus mestres, procurei acolher, desde o início, as indicações conciliares segundo a hermenêutica da unidade e continuidade. Esta reforma na continuidade pessoalmente sempre a senti, vivi e, também como docente, ensinei.

ZENIT: Como Prefeito da Congregação para o Clero, acredita que os Sacerdotes receberam bem o Concílio?

Card.Piacenza: Certamente, como porção eleita do Povo de Deus, os sacerdotes são aqueles que, na Igreja, melhor conhecem e mais aprofundaram os ensinamentos conciliares. Entretanto, parece-me que não faltaram as mesmas problemáticas que antes evidenciei, seja em relação à uma justa hermenêutica da reforma na continuidade, seja no que diz respeito à devida aproximação não predominantemente emotiva ao evento conciliar. Se, neste Ano da Fé, todos tivéssemos a humildade e a boa vontade de tomar em mãos os textos do Concílio, naquilo que realmente disseram e não na “vulgata”, que teve uma certa propagação, descobriríamos como o Concílio Vaticano II foi realmente profético e muitas das suas indicações estejam ainda diante de nós, como um horizonte a ser contemplado e uma meta a ser alcançada, com a ajuda da Graça. Certamente, para que tal obra se realize, é necessária uma grande dose de humildade e uma certa capacidade de superação de um juízo pré-constituído, para que se possa acolher de novo uma verdade que, por muito tempo, foi concebida de modo diverso.

ZENIT: Sobre quais pontos poder-se-ia focalizar a recepção dos documentos conciliares?

Card.Piacenza: Evidenciaria um ponto de particular tensão, que representa a reforma litúrgica, mesmo porque constitui o elemento de maior visibilidade da Igreja. O Servo de Deus Paulo VI, o Beato João Paulo II e o Santo Padre Bento XVI, em vários momentos sublinharam a importância da liturgia como lugar no qual se realiza plenamente o ser da Igreja. Mas, infelizmente, como se pode notar em vários casos, ainda estamos longe de um equilíbrio mútuo a este respeito. Certamente, uma liturgia dessacralizada ou reduzida à “representação humana”, em que se desvanece até ao ponto de perder a dimensão cristológica e teológica, não é aquilo que a letra e o espírito da Sacrosantum Concilium desejava. Entretanto, isto não justifica o posicionamento daqueles que, adotando a hermenêutica da descontinuidade, recusam a reforma conciliar, considerando-a como uma “traição” da “verdadeira Igreja”.

ZENIT: Existem inovações mais importantes que as litúrgicas?

Card.Piacenza: Vista a centralidade da Liturgia, “fonte e centro” da vida da Igreja (cf. SC,10), não falaria de maior importância. Certamente o Concílio procurou valorizar as verdades evangélicas, que hoje representam um patrimônio comum da catolicidade. Em tal sentido, bastaria pensar a feliz evidência que se dá à vocação universal à santidade de todos os batizados, que favoreceu o nascimento e o desenvolvimento de tantas novas experiências. Além disto, é preciso recordar a abertura em relação aos cristãos de outras confissões, que fez emergir o valor da unidade, com toda a sua beleza, como um necessário atributo da Igreja e como um dom gratuitamente oferecido por Cristo. Este dom deve ser acolhido sempre, através de uma purificação contínua dos que a Ele pertencem. A importância da colegialidade episcopal, que está entre as expressões mais eficazes da comunhão eclesial e mostra ao mundo como a Igreja é necessariamente um corpo unido. A compreensão orgânica do Ministério Ordenado, a serviço do sacerdócio batismal, que concebe presbíteros e diáconos intimamente unidos ao próprio Bispo, como expressão de uma comunhão sacramental no serviço à Igreja e aos homens, representou um objetivo e feliz desenvolvimento da compreensão da face da Igreja tal como Nosso Senhor quis delinear.

ZENIT: Eminência, neste momento a Igreja dedica-se ao Sínodo sobre a nova Evangelização e o Ano da Fé. Se tivesse que dizer uma palavra sintética aos sacerdotes, o que diria?

Card. Piacenza: À luz da fé: Sacerdote, torne-se a cada dia aquilo que és!

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