Em vista das incontáveis e incessantes polêmicas envolvendo hoje tantos poderes e figuras políticas, a impressão que fica é de que a maioria maciça das sociedades modernas, ao menos no ocidente, já não tem a mais mínima ideia de qual seja a finalidade do governo civil. Ora, o seu fim é ajudar os cidadãos a desenvolver as virtudes naturais (das quais dependem muitos e grandes bens, como a amizade, a família e o bem comum de todo o povo) e alcançar o mais facilmente possível a felicidade, que consiste em conhecer e amar a Deus.

Isso não é ideia minha, mas ensinamento do Papa Leão XIII: 

Como, pois, a sociedade civil foi estabelecida para a utilidade de todos, deve, favorecendo a prosperidade pública, prover ao bem dos cidadãos de modo não somente a não opor qualquer obstáculo, mas a assegurar todas as facilidades possíveis à procura e à aquisição desse bem supremo e imutável ao qual eles próprios aspiram [1]. 

Daí surge, no entanto, um problema: devem ou não as leis e os costumes do Estado refletir e incorporar a doutrina católica?

A resposta é sim, contrariamente a essa “mania” moderna de afirmar que o Estado deve ser sempre neutro em matéria religiosa e desatender-se de toda e qualquer questão sobrenatural. A razão disso foi explicada por dois eminentes Papas do passado que enfrentaram com a verdade perene do Evangelho os desvios do pensamento político moderno.

Numa encíclica de 1892 endereçada ao clero e aos fiéis franceses, o Papa Leão XIII ensinou que “o princípio de separação entre Igreja e Estado […] equivale à separação entre a legislação humana e as leis cristãs e divinas” [2]. E acrescentou: 

O Estado, tão-logo se recusa a tributar a Deus o que lhe é devido, nega também, por natural consequência, aos cidadãos aquilo a que, como homens, eles têm direito; porquanto — queira-se ou não admiti-lo — os direitos do homem nascem de seus deveres para com Deus. Donde se segue que o Estado, ao perder assim o objetivo principal de sua instituição, torna-se, ao fim e ao cabo, falso em si mesmo, na medida em que nega aquilo que constitui a razão última de sua própria existência. Essas verdades supremas são proclamadas com tanta claridade pela voz mesma da razão natural que chegam a impor-se aos que não se deixam cegar pela força das paixões. Eis porque os católicos devem tomar todas as cautelas para defender-se da ideia de uma tal “separação” [3].

Sucessor de Leão XIII, o Papa S. Pio X escreveu em 1906, também à igreja francesa, logo após a promulgação em 1905 da “Loi de séparation” entre Igreja e Estado:

Que seja preciso separar o Estado da Igreja, é esta uma tese absolutamente falsa, um erro perniciosíssimo. Com efeito, baseada nesse princípio de que o Estado não deve reconhecer nenhum culto religioso, ela é, em primeiro lugar, em alto grau injuriosa para com Deus; porquanto o Criador do homem também é o fundador das sociedades humanas, e conserva-as na existência como nos sustenta nelas. Devemos-lhe, pois, não somente um culto privado, mas um culto público e social para honrá-lo.

Além disto, essa tese é a negação claríssima da ordem sobrenatural. De fato, ela limita a ação do Estado à simples demanda da prosperidade pública durante esta vida, a qual não passa da razão próxima das sociedades políticas; e, como que lhe sendo estranha, de maneira alguma se ocupa da razão última delas, que é a beatitude eterna proposta ao homem quando esta vida, tão curta, houver findado. E, no entanto, achando-se a ordem presente das coisas, que se desenrola no tempo, subordinada à conquista desse bem supremo e absoluto, não somente o poder civil não deve obstar a essa conquista, mas deve ainda ajudar-nos nela [4].

Ambos os Papas dirigiam-se a uma nação que por longo tempo fora católica e ainda o era em grande parte quando da publicação dos documentos citados e que, portanto, reconhecia suas obrigações públicas e solenes para com a religião verdadeira. Mas o que pensar das nossas sociedades plurais e seculares: também elas têm o dever de reger-se por um governo explicitamente cristão e católico? 

Pensemos um pouco. Quando a fé é vivida de forma intensa e corajosa (e mesmo que as coisas já não sejam mais assim, não custa lembrar que elas já o foram e podem voltar a sê-lo no futuro), é não só possível, mas bastante provável que os governantes, de um modo ou de outro, se deixem imbuir desta mesma fé. Isso, como resultado, os influenciará de forma positiva tanto em seus julgamentos práticos como em seu estilo de vida. Um político verdadeiramente católico não deixará nunca sua fé de lado na hora de tomar uma decisão; ele olhará para as realidade temporais da perspectiva eterna e divina da Verdade revelada. 

Se aceitarmos a definição tomista de “razão” como participação da lei eterna — ou seja, da eterna sabedoria, da inteligência do próprio Criador —, então tudo o que as autoridades civis têm de fazer, mesmo para julgar em conformidade com a lei natural, é aplicar às realidades humanas os critérios da sabedoria divina. E falhar nisso não é cometer um erro mais ou menos marginal; trata-se, pelo contrário, do fracasso completo da prudência política. Um governante não é sequer digno deste nome se a sua intenção não for a de julgar e legislar sempre os assuntos temporais de acordo com princípios imutáveis. 

O que a doutrina católica ensina é que tais princípios podem e devem englobar princípios de ordem tanto natural como sobrenatural. O catolicismo rechaça toda e qualquer compreensão da política que pretenda excluir ou relativizar a lei natural, fazendo da vontade, quer majoritária, quer do ditador, a fonte primeira do direito. E, de fato, a deriva liberal tem arrastado a Alemanha, a França atual, o Canadá e os Estados Unidos — e também o Brasil — nesta direção: todos esses países estão deixando que a vontade autônoma do homem decida o que é bom e o que é mau. 

Já sabemos muito bem onde isso vai parar: nos gulags, nos campos de concentração, na indústria do aborto, na anticultura do “tanto faz”. Se quisermos chegar a melhor porto e, no fim, à glória do céu, temos de repensar, a partir do zero, para que fim existe o governo, por que normas transcendentes ele se há de guiar e como irá justificar-se antes os olhos de Deus e dos homens.

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