É famosa na arte sacra a cena de Santa Joana d’Arc recebendo a visita de figuras celestiais. Os retratos são inspirados na biografia da santa, que com 13 anos teria visto e ouvido pela primeira vez São Miguel Arcanjo, príncipe da milícia celeste.

Mas o que esse santo anjo lhe disse ou deixou de lhe dizer, deixemos para outra hora. O que nos importa agora é usar como matéria para nossa meditação uma dessas obras fabulosas: “Joana d’Arc escutando as vozes”, óleo sobre tela, de Eugene Thirion.

Essa pintura é como um “chacoalhão”, pois desperta-nos do sono de tibieza em que tantas vezes nos encontramos, desanimados com as coisas espirituais e sem vontade de cumprir com nossos deveres de oração. Ela mostra uma Joana d’Arc com os olhos arregalados — não de pavor como quem vê uma assombração, mas de maravilhamento, como quem depara com um mistério, com uma realidade nobre e elevada, diante da qual tudo o mais que está ao seu redor se esvanece e parece um nada.

O arcanjo São Miguel, por sua vez, com a boca entreaberta bem atrás da santa, transmite-lhe uma mensagem bem ao pé do ouvido, como se só ela a devesse escutar, e mais ninguém. A missão que ela teria de levar a cabo nos anos seguintes seria pública e conhecida de todos, sua armadura seria vista e seguida por muitíssimos franceses… mas a origem divina de seu chamado devia permanecer, pelo menos a princípio, calada bem no fundo de seu coração, como um segredo.

O que isso tem a ver conosco que, via de regra, não recebemos a mesma graça que foi concedida a Joana? O que essa imagem transmite a nós, que temos de nos virar com a dura realidade ao nosso redor e com um Deus escondido, inacessível, distante e que tantos em nossa época chegam a dizer que não existe?

Em primeiro lugar, o que precisamos entender — não só para não cairmos no ateísmo, mas até para que tenhamos uma experiência religiosa autêntica — é que Deus quer falar ao coração de todos os seres humanos. Essa comunicação acontece conosco, muitas vezes, por uma desgraça que nos acontece, por uma pregação que ouvimos, e também deixa fortes efeitos em nossos sentidos, podendo levar-nos tanto aos arrepios quanto às lágrimas. Mas a iluminação divina que gera tudo isso dá-se primeira e fundamentalmente na alma; os olhos que se arregalam diante de Deus são, antes de tudo, os do nosso espírito; como exclama Santo Agostinho em suas Confissões: “Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora” (X, 38).

Os olhos arregalados de Santa Joana d’Arc impressionam-nos, portanto, por ser uma experiência que todos nós já fizemos, em alguma medida, na nossa vida de oração. É aquele momento em que se acende uma luz dentro de nós; em que Deus mostra uma verdade à nossa inteligência e convida a nossa vontade a rezar… E nós, de nossa parte, se aceitamos esse “convite” de Deus, se lhe abrimos a porta do nosso coração e permitimos que Ele venha “cear” conosco (cf. Ap 3, 20), saímos desse encontro alimentados por suas graças, numa verdadeira “refeição espiritual”.

A analogia com um alimento é muito apropriada, pois esse contato frequente e contínuo com Deus precisa tornar-se realmente “o pão nosso de cada dia”, sem o qual definharemos e… viremos a óbito espiritual.

Precisamos de exemplos de como isso acontece? Não conseguimos enxergar, em nossa própria alma, os efeitos da falta de oração? Ó, miseráveis de nós, que não nos amarguramos por estar distantes de Deus! Miseráveis de nós, cegos, que não percebemos a necessidade profunda e vital que temos do Senhor! Miseráveis de nós, pois Deus está conosco, mas nós não estamos com Ele (cf. Confissões, X, 38)!

Mas olhemos também ao nosso redor: quantas pessoas que tinham fé, que iam à igreja, que recebiam os sacramentos e que buscavam uma vida relativamente católica… quantas dessas pessoas nós já não vimos se afastarem do caminho, pessoas que hoje estão entregues ao mundo e nem católicas se dizem mais! Por que essas coisas acontecem? Deus por acaso as abandonou? O que faz tantos à nossa volta deixarem de perseverar? Que erro essas pessoas cometeram, e que nós precisamos evitar custe o que custar?

Joana d’Arc escutando suas vozes”, de Léon-François Bénouville.

Ah, olhando para a imagem de Santa Joana d’Arc, fica fácil perceber o erro que aqui se esconde: o que acontece a tantos de nós é que deixamos de “arregalar” os olhos da alma na oração! Tornamo-nos insensíveis à voz e às visitas de Deus! Seduzidos por aquilo que nos dão os sentidos do corpo, abandonamos o contato com as realidades sobrenaturais!

Pedimos atenção para que ninguém se confunda, achando que estamos a tratar de uma experiência sensorial… Não, nós não estamos atrás de sensações gostosas, lágrimas de emoção e arrepios na nuca! O que precisamos é de um alimento que fortifique a nossa alma e que nos faça viver como Santo Moisés, que “caminhava com tanta segurança como se estivesse vendo o invisível” (Hb 11, 27).

“Com tanta segurança como se estivesse vendo o invisível”: eis aqui o segredo! Estamos o tempo todo em contato com o que vemos, com o que ouvimos, com o que tocamos… Pois bem! Nosso esforço deve ser justamente no sentido contrário: aumentar o contato com o que não vemos, com o que não podemos ouvir, com o que não podemos tocar. E a única maneira de fazer isso é através da oração, que é o exercício da . Precisamos da oração para nos desvencilharmos das ilusões do mundo e ficarmos atentos às coisas que realmente importam — as únicas que importam!

Portanto, se não podemos ver o Invisível com os olhos físicos, como Santa Joana d’Arc teve a graça de ver, que O vejamos ao menos com os olhos da fé! E trabalhemos neste ofício com todo o empenho de nossa alma. Lembremo-nos do que “São Camilo de Lélis, ao aproximar-se de alguma sepultura”, costumava se perguntar: “Se estes mortos voltassem ao mundo, que não fariam pela vida eterna? E eu, que disponho de tempo, que faço por minha alma?” (S. Afonso M.ª de Ligório, Preparação para a morte, I, 3).

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