A devoção ao Sagrado Coração de Jesus, da qual se costuma fazer memória no mês de junho, pertence ao patrimônio mais íntimo da fé cristã e, por isso, não pode ser simplesmente ignorada como se se tratasse de uma piedade popular qualquer. É isso que procurou ensinar o Papa Pio XII na sua belíssima encíclica Haurietis Aquas, cujo aniversário de 60 anos de publicação comemoramos recentemente.

Pio XII viu a necessidade de estabelecer algumas balizas com relação ao culto do Sagrado Coração depois que se começou a espalhar em alguns ambientes católicos a estranha ideia de que esta celebração, embora tão incentivada pelo Magistério, seria apenas um acréscimo às já inúmeras outras festas litúrgicas ou que ela atrapalharia o ensino da doutrina social da Igreja por fomentar "uma devoção sensível não enformada em altos pensamentos e afetos, e, portanto, mais própria para mulheres do que para pessoas cultas" [1].

É claro que o Santo Padre não podia silenciar a respeito de tão grave assunto, sendo o Coração de Cristo "o índice natural ou o símbolo da sua imensa caridade para com o gênero humano" [2]. E, assim, no dia 16 de maio de 1956, 18º ano de seu pontificado, o venerável servo de Deus Pio XII mandava publicar a encíclica Haurietis Aquas para defender e exaltar "a singular importância que o culto ao coração sacratíssimo de Jesus adquiriu na liturgia da Igreja, na sua vida interna e externa, e também nas suas obras" [3].

De maneira bastante objetiva, a encíclica de Pio XII retoma a doutrina acerca da união hipostática de Cristo para fundamentar a razão pela qual os católicos não só podem como devem adorar o Seu Coração e prestar-Lhe as devidas homenagens. Jesus, por meio de Sua encarnação, redimiu toda a humanidade, tomando para si não "um corpo ilusório e fictício", "como já no primeiro século da era cristã ousaram afirmar alguns hereges", mas a carne humana em todas as suas dimensões, exceto no pecado [4]. Com efeito, no Seu Coração existem três tipos de amor, com os quais ama o Pai e o gênero humano: o amor divino, o amor espiritual e o amor sensível.

Eugenio Pacelli, o Papa Pio XII, governou a Igreja de 1939 a 1958.

Essa novidade da fé cristã — um Deus que ama também com amor humano — enche-nos de esperança, pois, agora sabemos, também nós podemos amá-Lo verdadeiramente com o auxílio de Sua graça. Não precisamos mais de sacrifícios de cabritos e novilhos, porque a Nova Aliança foi selada "com o sangue sacrossanto daquele que esses animais pacíficos e privados de razão [...] prefiguravam: 'o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo'" (cf. Jo 1, 29; Hb 9, 18-28; 10, 1-17) [5]. No dia da Paixão, "o coração de Cristo, unido hipostaticamente à pessoa divina do Verbo, sem dúvida deve ter palpitado de amor e de qualquer outro afeto sensível" [6]. "Esses sentimentos", esclarece Pio XII, "eram tão conformes e estavam tão em harmonia com a vontade humana, transbordante de caridade divina, e com o próprio amor infinito que o Filho tem com o Pai e com o Espírito Santo, que jamais se interpôs a mínima oposição e discórdia" entre eles [7].

De fato, a mancha do pecado original perverteu as paixões humanas, inclinando-as para os vícios. Essa condição lamentável impedia o homem de prestar um culto verdadeiro a Deus, entregando-se de todo coração ao Pai Santíssimo que está no Céu. O coração do homem estava como que dividido pela criatura e pelo Criador.

Com a encarnação de Cristo, por outro lado, a natureza humana é redimida e as palavras do profeta se cumprem: "Dar-vos-ei um coração novo e em vós porei um espírito novo; tirar-vos-ei do peito o coração de pedra e dar-vos-ei um coração de carne" (Ez 36, 26).

Eis aí! Em Cristo, o novo Adão, a humanidade recebe uma nova vida pela qual agora pode prestar um culto verdadeiro a Deus e amá-Lo devotamente. Por isso a contemplação do Sagrado Coração ocupa um lugar especial na Liturgia da Igreja, porque é por meio dessa contemplação que os homens podem ordenar as suas paixões, configurando-as à Paixão do Coração de Cristo, que é também um coração humano. O Catecismo explica assim:

"Quem crê em Cristo torna-se filho de Deus. Esta adoção filial transforma-o, dando-lhe a possibilidade de seguir o exemplo de Cristo. Torna-o capaz de agir com retidão e de praticar o bem. Na união com o seu Salvador, o discípulo atinge a perfeição da caridade, que é a santidade. Amadurecida na graça, a vida moral culmina na vida eterna, na glória do céu." [8]

No nosso curso sobre o protestantismo, enfatizamos a importância da communicatio idiomatum para compreender o modo como Deus operou a redenção da humanidade. Houve uma espécie de comunicação entre os idiomas divino e humano, de modo que aquilo que era próprio da carne também passou a ser próprio da Pessoa divina de Cristo: "[...] a humildade foi assumida pela majestade; a fraqueza, pelo poder; a mortalidade, pela eternidade; e, para pagar o débito da nossa condição, a natureza inviolável uniu-se à natureza passível [...]" [9]. A carne de Cristo é, portanto, instrumento de salvação. E mais especificamente no seu Coração transpassado, sinal e símbolo vivo de seu amor por nós, encontramos o caminho para a perfeição, pois, na humanidade de Jesus, a santidade deixa de ser apenas um ideal para tornar-se realidade e meta de todo o gênero humano.

É do coração de Jesus, aliás, que correm os rios de sangue e água, nos quais os Padres da Igreja sempre identificaram a fonte dos sacramentos, cujo efeito em nossas almas nada mais é que o da santificação.

Ora, é do Coração Sacratíssimo de Jesus que haurimos com gáudio, segundo as palavras do profeta, as inumeráveis "riquezas celestiais que nas almas dos fiéis infunde o culto tributado ao sagrado coração, purificando-os, enchendo-os de consolações sobrenaturais, e excitando-os a alcançar toda sorte de virtudes" [10].

Vêem-se logo os motivos de Pio XII para exaltar e defender esta devoção tão sagrada, que encerra em si mesma todo o tesouro da nossa redenção. Não há como negar, a verdade é uma só: o Coração de Jesus é o grande oceano das graças de Deus; n'Ele — e somente n'Ele — é que devemos navegar!

Sagrado Coração de Jesus,
tende piedade de nós!

Referências

  1. Papa Pio XII, Carta Encíclica Haurietis Aquas (16 de maio de 1956), n. 6.
  2. Ibid., n. 12.
  3. Ibid., n. 11.
  4. Ibid., n. 21.
  5. Ibid., n. 18.
  6. Ibid., n. 22.
  7. Idem.
  8. Catecismo da Igreja Católica, n. 1709.
  9. Leão Magno, Carta Lectis dilectionis tuae, ao bispo Flaviano de Constantinopla (13 de junho de 449), cap. 3 (DH 293).
  10. Papa Pio XII, op. cit., n. 2.

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