O capítulo 6 do Evangelho de São João é, geralmente, a principal fonte citada para sustentar o ensinamento católico sobre a Eucaristia: no sacrifício da Missa, pão e vinho são transubstanciados e se tornam o Corpo, o Sangue, a Alma e a Divindade reais de Jesus Cristo, a fim de serem consumidos pelos fiéis. Esta é a fonte e o ápice de nossa fé e, sem dúvida, a principal coisa que nos separa de quase todas as outras religiões do planeta. Por isso, é extremamente importante entender essa passagem (bem como outras referências bíblicas à Eucaristia).

Os 15 primeiros versículos de Jo 6 detalham o milagre da multiplicação dos cinco pães e dois peixes, para alimentar a multidão. Este é um pano de fundo importante para o que está prestes a acontecer, pois Jesus usa este milagre recém realizado no dia seguinte, quando diz à multidão: “Trabalhai, não pela comida que perece, mas pela que dura até a vida eterna, que o Filho do Homem vos dará. Pois nela Deus Pai imprimiu o seu sinal” (v. 27).

A multidão então pede a Jesus um sinal para crer nele: “Perguntaram-lhe: ‘Que faremos para praticar as obras de Deus?’ Respondeu-lhes Jesus: ‘A obra de Deus é esta: que creiais naquele que ele enviou’. Perguntaram eles: ‘Que milagre fazes tu, para que o vejamos e creiamos em ti? Qual é a tua obra?’” (v. 28-30).

O povo pede um sinal, e Cristo responde fazendo um paralelo com o maná que os judeus receberam no deserto, afirmando que Deus dará um pão ainda melhor do que o dado por Moisés. Ele dará o pão do céu, o qual dará vida ao mundo — será este o sinal: “Jesus respondeu-lhes: ‘Em verdade, em verdade vos digo: Moisés não vos deu o pão do céu, mas o meu Pai é quem vos dá o verdadeiro pão do céu; porque o pão de Deus é o pão que desce do céu e dá vida ao mundo’” (v. 32-33). 

Vida para o mundo? A multidão diz: “É claro que queremos este pão!” Disseram-lhe: “Senhor, dá-nos sempre deste pão!” (v. 34).

Jesus responde com o que chamarei de o primeiro Eu sou: “E Jesus disse-lhes: ‘Eu sou o pão da vida: aquele que vem a mim não terá fome; e aquele que crê em mim jamais terá sede’” (v. 35).

Aqui, Cristo se compara diretamente ao pão; mais importante ainda, com o pão que dá a vida, que foi dado por Moisés e comido pelos judeus. Mas isso ainda pode ser visto como uma metáfora: acreditar em Jesus seria o modo como se obtém o pão que dá a verdadeira vida. Você não necessariamente está comendo pão de verdade.

Mas, mesmo nesta comparação inicial, a multidão começa a murmurar sobre este ensinamento: “Murmuravam então dele os judeus, porque dissera: ‘Eu sou o pão que desceu do céu’. E perguntavam: ‘Porventura não é ele Jesus, o filho de José, cujo pai e mãe conhecemos? Como, pois, diz ele: Desci do céu?’” (v. 41-42).

Eles parecem não gostar de que Ele se chame de “pão vivo”, ou que diga que desceu do céu. No versículo 43, Jesus manda a eles que parem de murmurar. Depois, Ele reitera o que acabou de dizer: “Eu sou o pão da vida. Vossos pais, no deserto, comeram o maná e morreram. Este é o pão que desceu do céu, para que não morra todo aquele que dele comer” (v. 48-50). Eis aqui, então, o segundo Eu sou.

Cristo usa a comparação do maná no deserto ao longo de todo este discurso, e é importante lembrar que as prefigurações do Antigo Testamento nunca são tão grandes quanto seus cumprimentos no Novo Testamento. Maria é maior do que Eva; o sacrifício de Cristo é maior que o de Abraão com Isaac; e o maná a ser dado por Cristo será maior que o maná recebido por Moisés no deserto. Não será simplesmente o mesmo maná.

É a partir do versículo 51 que a coisa começa a ficar realmente interessante, e é preciso tomá-lo palavra por palavra. Cristo reafirma imediatamente o que Ele acabou de dizer, e nos vemos diante do terceiro Eu sou: “Eu sou o pão vivo que desceu do céu. Quem comer deste pão viverá eternamente. E o pão, que eu hei de dar, é a minha carne para a salvação do mundo.”

Desta vez, Jesus é muito mais explícito: Ele diz a eles diretamente que sua carne é o pão do céu, o novo maná que dá vida ao mundo. Ainda acha que se trata apenas de uma analogia? A multidão certamente não pensava assim: “A essas palavras, os judeus começaram a discutir, dizendo: ‘Como pode este homem dar-nos de comer a sua carne?’” (v. 52).

Se era apenas uma analogia, por que a multidão achou difícil entender? Por que existe esse salto de “Dê-nos o pão!” para “O quê? Comer a sua carne?”? E por que Ele repetiria três vezes que Ele é o pão? A resposta a essas perguntas está nas palavras que Cristo usou e em como Ele foi direto.

De fato, há lugares em que Cristo usa hipérboles nos Evangelhos. Pense em Mt 5, 29, quando Ele diz ao povo que seria melhor arrancar o próprio olho do que permitir que ele nos faça pecar. Ninguém interpretou mal suas palavras, como se significassem que era necessário se mutilar. Ninguém saiu dizendo: “Este ensinamento é muito difícil; não posso seguir um homem que me pede isso”. Em Jo 6, porém, a linguagem usada e a reação da multidão mostram claramente que Cristo estava sendo literal, não hiperbólico ou metafórico.

Ao longo de todo esse capítulo, o verbo “comer” é usado 12 vezes para descrever o ato de comer maná no deserto, comer o pão da vida e comer a carne de Cristo. No texto grego original do Evangelho, até o versículo 54, o verbo era o mesmo: φάγω (phago), que significa “comer”: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna; e eu o ressuscitarei no último dia”. Mas, no versículo 55, quando a multidão já está confusa e murmurando, Cristo muda o verbo usado para τρώγω (trógó), que significa “roer, mascar ou triturar” — e que também é traduzido como “mastigar”.

Pense na sequência de eventos. Cristo diz à multidão, no versículo 51, que eles precisam “comer” sua carne. A multidão questiona isso diretamente no versículo 52 e, então, o que Jesus faz para responder à sua pergunta no versículo 54? Ele não diz: “Não, foi apenas uma analogia, você não vai realmente consumir minha carne”. Em vez disso, Ele desce o nível, muda o verbo e diz que, sim, você realmente precisa “roer” ou “mastigar” a carne dele. Aqui, Jesus vai além para garantir que sua mensagem não se perca na assembleia.

A outra palavra direta e provocativa que Cristo usa sete vezes neste capítulo é a palavra “carne”. Algumas traduções da Bíblia traduzem essa palavra como “corpo”, mas, se você ler, no grego, trata-se de σάρκα (sárka ou sarx), que se traduz literalmente como “carne” e que é a raiz da palavra grega para “carnívoro”: σαρκοβόρος (sarkovóros), enquanto a palavra grega genérica para “corpo” é σώμα (sóma).

Cristo diz, portanto, que sua “carne” deve ser “mastigada”, e a multidão acha isso difícil de aceitar: “Muitos dos seus discípulos, ouvindo-o, disseram: ‘Isto é muito duro! Quem o pode admitir?’” (v. 60).

E aqui eles realmente deixam de seguir a Cristo: “Desde então, muitos dos seus discípulos se retiraram e já não andavam com ele” (v. 66).

Ao ler Jo 6, portanto, fica claro que a multidão, que ouviu pessoalmente o discurso do pão da vida, entendeu o que Cristo estava dizendo: Ele havia dito que é preciso consumir sua verdadeira carne. Por qual outro motivo eles teriam ido embora? E, se eles entenderam mal, por que Jesus não tentou esclarecê-los e impedi-los de ir embora por causa de um mal-entendido? Eles sabiam exatamente o que Ele queria dizer, assim como todos os primeiros cristãos que escreveram sobre esse assunto.

Os escritos dos primeiros Padres da Igreja apoiam fortemente a interpretação católica. Irineu, Justino Mártir, Inácio de Antioquia e Clemente de Alexandria, todos eles escreveram sobre isso no séc. II; Orígenes, Hipólito e Tertuliano escreveram sobre isso no III; e a lista dos primeiros cristãos que acreditavam no ensinamento de Cristo sobre consumir a sua carne continua indefinidamente. Afora os Apóstolos, esses homens eram os que sabiam melhor o que Jesus queria dizer em Jo 6, e eles teriam agido rápido para corrigir quaisquer mal-entendidos ou heresias decorrentes de uma interpretação errada. Aqui estão apenas algumas citações dos primeiros Padres cristãos: 

Como podia o Senhor, se fosse Filho de outro pai, confessar com justiça, ao tomar um pão desta condição, que é conforme a nós, que ele é o seu corpo, e confirmar que a mistura do cálice era o seu sangue? (Irineu, Contra as Heresias IV, 33, 2: PG 7, 1073 [189 d.C.]).

Considerai porém os que opinam de outro modo sobre a graça de Jesus Cristo, aquela que veio até vós: como são contrários aos pensamentos de Deus… Eles se abstêm da Eucaristia e da oração porque não confessam que a Eucaristia é a carne do nosso Salvador Jesus Cristo, a qual padeceu por nossos pecados e que o Pai, por sua benignidade, ressuscitou. Aqueles pois que contradizem este dom de Deus morrem altercando (Inácio de Antioquia, Carta aos Esmirniotas VI, 2–VII, 1: PG 5, 711-714 [110 d.C.]).

Assim pois como o pão e o vinho da Eucaristia, antes da invocação santa da adorável Trindade, eram puro pão e vinho, feita porém a invocação, o pão torna-se o corpo de Cristo, e o vinho, o sangue de Cristo (Cirilo de Jerusalém, Catequeses Mistagógicas XIX, 7: PG 33, 1071 [350 d.C.]).

Tinha-vos prometido aos que fostes batizados um sermão em que explicasse o sacramento da mesa do Senhor… Aquele pão que vedes no altar, santificado pela palavra de Deus, é o corpo de Cristo. Aquele cálice, antes, o que contém o cálice, santificado pela palavra de Deus, é o sangue de Cristo (Santo Agostinho, Serm. 227 [411 d.C.]).

Muitos dirão que grande parte deste artigo é irrelevante porque Cristo provavelmente não falou grego; logo, seria inútil analisar um texto nessa língua. Mas, se tivermos fé em que os escritores dos Evangelhos foram inspirados pelo Espírito Santo, podemos olhar para as nuances e especificidades da língua em que eles escreveram e saber, com confiança, que o seu texto representa as palavras que Cristo usou em aramaico ou hebraico. 

Além disso, o texto em grego não constitui a argumentação inteira, nem tampouco são distinções insignificantes o que ele apresenta, como expus várias vezes através do argumento Eu sou, da crença dos primeiros cristãos, e do fato de as pessoas, nos dias de Jesus, terem se afastado por acharem o seu ensinamento difícil — o que não teria acontecido se ele tivesse empregado apenas uma linguagem simbólica.

Se você ler o capítulo 6 de João, usar uma ferramenta tão básica como o Google Tradutor e estudar qualquer escrito dos primeiros cristãos sobre o assunto, perceberá que o ensinamento católico quanto à presença real de Cristo na Eucaristia é inegável e vem diretamente das Escrituras.

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