O texto a seguir, de Léon Bloy, é um comentário às revelações de Nossa Senhora em La Salette, na França. 

Em determinado momento, o escritor diz que “a voz de Maria é a voz de Deus, tanto em La Salette quanto no Evangelho”. A sua frase precisa ser compreendida à luz do que a Igreja ensina sobre as revelações privadas: segundo o Catecismo (§ 67), “elas não pertencem… ao depósito da fé”; “a função delas não é ‘melhorar’ ou ‘completar’ a Revelação definitiva de Cristo, mas ajudar a viver dela com mais plenitude em determinada época da história”; além disso, “o senso dos fiéis sabe discernir e acolher o que nessas revelações constitui um apelo autêntico de Cristo ou de seus santos à Igreja”.

Se, pois, a Virgem Santíssima realmente apareceu a Mélanie Calvat e Maximin Giraud, deixando uma mensagem não só a eles, mas a toda a humanidade, La Salette não deixa de ser a “voz de Deus” a nos visitar. E quanto mais suas palavras se assemelham aos textos inspirados da Escritura, principalmente nas suas expressões ásperas e apelos proféticos à conversão, tanto mais difícil se torna negar um sem duvidar, ao mesmo tempo, do outro.

Sim, só a “Revelação definitiva de Cristo”, que se encerrou com a morte do último apóstolo, exige de nós fé, e fé católica; as demais revelações que surgiram ao longo dos séculos só devem ser aceitas na medida em que se tornam credíveis — em outras palavras, elas são objeto de fé humana. Mas não deixa de ser curioso que, em grande parte, aqueles que se recusam a acreditar nessas mensagens sejam justamente os hereges e apóstatas que já abandonaram, há muito tempo, os dogmas da Igreja

Também isto, trágica e infelizmente, é um sintoma do que a Santíssima Virgem denunciou em La Salette. Ouçamos, pois, o que nossa Mãe nos disse naquela ocasião, sejamos humildes e não duvidemos; antes, convertamo-nos.


Se dependesse apenas de Napoleão III, a conspiração de silêncio em torno de La Salette não lhe teria sobrevivido trinta e seis anos [1]. Mesmo a mais espantosa enfermidade humana que transforma em rotina o ressentimento das injúrias mais esquecidas; tudo aquilo que poderia, antes da catástrofe de 1870 [2], opor-se ainda a La Salette e às suas testemunhas, seria aproveitado depois, com a energia da seiva católica demolindo a muralha paulatinamente, a cada recomeço. 

Mas havia também algo que não se queria admitir, o julgamento intolerável, e que se recusava a qualquer preço

Os sacerdotes, ministros de meu Filho, os sacerdotes, por sua má vida, por suas irreverências e sua impiedade ao celebrar os Santos Mistérios, por seu amor ao dinheiro, seu amor à honra e aos prazeres, os sacerdotes transformaram-se em cloacas de impureza.

Sim, os sacerdotes pedem vingança, e a vingança está suspensa sobre suas cabeças. Infelizes dos sacerdotes e das pessoas consagradas a Deus que, por suas infidelidades e sua má vida, crucificam novamente meu Filho! Os pecados das pessoas consagradas a Deus clamam ao Céu e atraem a vingança, e eis que a vingança está às suas portas, pois não se encontra ninguém para implorar misericórdia e perdão pelo povo; não há mais almas generosas, não há mais ninguém digno de oferecer a Vítima sem mácula ao Eterno, em favor do mundo (Segredo de Mélanie, § 2.º).

Nolite tangere Christos meos… Qui vos audit, me audit; et qui vos spernit, me spernit, “Não ouseis tocar nos que me são consagrados” (Sl 104, 15); “Quem vos ouve, a mim ouve; e quem vos rejeita, a mim rejeita” (Lc 10, 16). Ouvistes bem, ó Mãe do Verbo, é para Vós esta frase. Ousastes tocar no clero. Alguém poderia pensar que era vosso direito, sendo sua Rainha, Regina cleri, mas isto não é nada e eis vossa punição: decidimos que Vós falastes em vão.

“Eles não querem fazer seu exame de consciência”, dizia Mélanie. Tu es ille vir, tu fecisti hanc rem abscondite!, “Tu és esse homem, tu tens agido em segredo” (2Sm 12, 7.12), diz o Espírito Santo. És tu o culpado!, diz a consciência. Seja qual for o crime cometido, não importa em que lugar do mundo, essa frase deve ser exata e rigorosamente aplicada a cada um de nós. Os santos sempre entenderam-na assim. E porque os sacerdotes estão mais perto de Deus e, portanto, são mais responsáveis, é natural que sejam atingidos primeiro

“Vós sois a luz do mundo”, disse-lhes o seu Mestre. Jamais haverá afirmativa tão certa. Mas sabemos que a mais pura chama terrestre, colocada sob o sol, projeta uma sombra. Assim a Luz de Deus, se brilhasse sobre a luz do mundo, esta última, no mesmo instante, projetaria uma sombra negra, viscosa, fuliginosa, da mais impenetrável opacidade. Essa deve ser a sensação de um humilde padre que faz seu exame de consciência. Como, então, poderia perturbar-se ou espantar-se com a energia de certas palavras? 

Era disto que se tratava, aliás. A Palavra de Deus é, por essência, incontestável, indiscutível, irrefragável, definitiva. Somos obrigados a recebê-la integralmente ou a declararmo-nos apóstatas. Ora, a voz de Maria é a voz de Deus, tanto em La Salette quanto no Evangelho. Se ela diz que nós somos “cães” [3], é a Sabedoria eterna que fala. Se decide acrescentar que os sacerdotes são “cloacas de impureza”, a única coisa que podemos fazer é acreditar que é assim, com humilíssimas ações de graças pelo benefício de uma revelação tão preciosa e sem pensar, um só minuto, em distinguir sofisticamente. Essa voz sabe o que diz, sabe-o infinitamente e, quanto a nós, não sabemos direito nem o que pensamos. 

Falaram de “expressões hiperbólicas”, tentou-se salvar o Segredo explicando que a palavra cloaca não tinha um sentido absoluto, como se Deus não falasse sempre absolutamente. Infidelidade, má vida, irreverência, impiedade, amor ao dinheiro, à honra e aos prazeres. Total: cloaca de impureza. Que pensar de um padre que dissesse: “Isto não é comigo”? São Francisco de Sales, São Felipe Néri, São Vicente de Paulo, o Cura d’Ars, cinquenta mil outros, sem falar dos mártires, teriam dito chorando: “Ah! Como é verdadeiro! Como nossa Soberana me conhece e como é inútil minha hipocrisia de cada instante!”. 

Mas é isto! Não há mais almas generosas. A verdade estrita que um homem determinado a dar sua vida por Deus jamais negará é que todo sacerdote que não busca a santidade é realmente, rigorosamente, absolutamente, um Judas e uma imundície.

Há pouco citei dois textos, o primeiro do Salmo 104: Nolite tangere…, “Não toqueis em meus ungidos”, para mostrar o belo proveito que podemos tirar dele. A outra metade do versículo parece uma fulminante resposta de Maria: et in prophetis meis nolite malignari, “e não maltrateis meus profetas”. Aqueles perseguidores de Mélanie e de Maximin que não tenham “recebido suas almas totalmente em vão” devem estremecer às vezes, ao ler essas palavras em seus breviários [4].

E quanto ao oráculo evangélico: “Quem vos ouve a mim ouve” etc., não é evidente que convém superiormente a Nossa Senhora de La Salette? “Fazei tudo o que ele vos disser”, havia dito, nas bodas de Caná, a Mãe de Jesus. “Quem te ouve a mim ouve e quem te despreza a mim despreza”, responde-lhe o Filho, dezenove séculos depois, vendo-a chorar em uma montanha.

Referências

  • Transcrito e levemente adaptado de Léon Bloy, Aquela que chora — e outros textos sobre Nossa Senhora da Salette (trad. de Roberto Mallet), Campinas: Ecclesiae, 2016, pp. 71-73.

Notas

  1. Em 1852, “Luís Napoleão, feito imperador ‘pela graça de Deus e vontade nacional’, apressou-se em declarar guerra a Mélanie. Este foi um dos seus primeiros atos e, certamente, um dos menos conhecidos” (Léon Bloy, op. cit., pp. 63-64).
  2. Referência à Guerra Franco-Prussiana.
  3. Depois de contar a Mélanie o segredo que só poderia ser publicado em 1858, Nossa Senhora disse que, “na quaresma, [as pessoas] vão ao açougue como cães”.
  4. O autor faz referência, aqui ao Salmo 23, versículo 4, tal como se encontra na Vulgata (tradução que era adotada até então nos Breviários): Innocens mánibus et mundo corde, qui non accépit in vano ánimam suam, nec iurávit in dolo próximo suo, “O inocente de mãos e limpo de coração, o que não entregou à vaidade a sua alma, nem fez juramentos dolosos ao seu próximo”.

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