Sobre a condenação de Roma à teologia liberal marxista, o vaticanista John Allen comenta que "foi uma má sorte histórica para os teólogos da libertação terem-se cruzado com Joseph Ratzinger, que ia ser um formidável opositor"[1].

Ratzinger foi nomeado Prefeito da Congregação para Doutrina da Fé em 1981. Antes, porém, havia exercido o cargo de professor de Teologia Dogmática em diferentes universidades alemãs, dentre elas, a de Tubinga, onde lecionava também outro teólogo conhecido: Hans Kung. O clima teológico de então - conta Bento XVI em sua autobiografia - estava sob o domínio da filosofia marxista de Ernst Bloch e da teologia política de Metz e Moltmann. Tinha-se a impressão de que tudo estava para ruir; o cristianismo era agora mitigado por uma esperança utópica, cuja finalidade não dizia mais respeito à salvação eterna e aos sacramentos, mas a uma práxis de libertação política, alinhada aos interesses do Partido. Com pesar, Ratzinger se lamentava da "maneira blasfema como então se zombava da cruz como sendo um sadomasoquismo, [d]a hipocrisia com que alguns - quando lhes era útil - continuavam se apresentando como fiéis à religião, a fim de não correrem o risco de perder os instrumentos para suas próprias finalidades"[2].

A experiência com os teólogos da libertação, por conseguinte, fez com que o Cardeal - já à frente da Congregação para Doutrina da Fé - se lembrasse imediatamente dos anos em que teve de enfrentá-los na Universidade de Tubinga. Ora, era óbvio que, como exímio teólogo, ele não podia passar ao largo daquela discussão, como se se tratasse apenas de uma divergência de ideias. A Teologia da Libertação minava todo o fundamento da fé cristã, substituindo-o por um pietismo ateu, por uma ação política do ser humano em que permanecia a esperança, "mas no lugar de Deus entreva o partido, e com isso o totalitarismo de uma adoração ateísta, pronta para imolar a seu falso deus todo humanitarismo"[3]. Sendo assim, durante o tempo em que lecionou em Tubinga, Ratzinger lançou mão de todos os meios justos e possíveis - tal qual faria anos mais tarde - para frear os desejos da incipiente - mas não menos perigosa - Teologia da Libertação; inclusive aliando-se a dois teólogos protestantes. Ele explica:

[...] A situação na Faculdade Teológica Evangélica era essencialmente mais dramática do que a nossa. Mas, afinal, estávamos no mesmo barco. Com dois teólogos evangélicos, o patrólogo Ulrich Wickert e o especialista em missiologia Wolfgang Beyerhaus, elaborei um plano comum de ação. Achávamos que as controvérsias confessionais anteriores eram de somenos importância em comparação com o desafio diante do qual agora estávamos, e no qual tínhamos de representar, conjuntamente, a fé no Deus vivo e no Cristo, o Verbo encarnado.[4]

A atitude de Joseph Ratzinger, num primeiro momento, pode parecer desconcertante e incoerente, haja vista a sua má fama de "intolerante" e "cardeal panzer". Mas não o é. Tendo em mente os perigos que tal teologia traria tanto para o fundamento da fé católica quanto para o da fé protestante, ele soube enxergar que não era possível discutir as 95 teses de Lutero enquanto Roma pegava fogo. Era preciso primeiro apagar o incêndio ou nem mesmo os protestantes teriam mais algo contra o que protestar, uma vez que era o próprio Cristo agora que estava em xeque. Com efeito, não fossem os esforços conjuntos de Ratzinger e dos dois teólogos protestantes, as sequelas mais ou menos visíveis da Teologia da Libertação, "feitas de rebelião, divisão, dissenso, ofensa, anarquia"[5], teriam tido um efeito muito mais feroz do que o que já se sente hoje.

O exemplo do então professor de Teologia Dogmática, Joseph Ratzinger, serve como parâmetro para os cristãos, sobretudo numa época em que o cristianismo se torna cada vez mais perseguido e odiado. Obviamente, dentro de seus respectivos templos, os padres continuarão ensinando que a Igreja Católica é "a única Igreja de Cristo [...] que o nosso Salvador, depois da sua ressurreição, confiou a Pedro para apascentar (cf. Jo 21,17)"[6], ao passo que os protestantes continuarão condenando o culto à Virgem Maria como idolatria. Não se trata de relativismo. Bento XVI sempre defendeu que, na base de todo diálogo, deve-se existir antes uma profunda consciência de sua própria identidade. Mas isso não pode ser um empecilho para a defesa da vida desde a sua concepção até à morte natural, para a defesa da família entre um homem e uma mulher e para a defesa da educação dos filhos pelos pais. Esses são temas que afetam a todos e não podem, sob pretexto algum, ser negligenciados.

A divisão dos cristãos constitui um escândalo que clama aos céus; e este escândalo poderá ser ainda maior caso se deixe reinar no Brasil a cultura da morte.

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