Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Lucas
(Lc 19,45-48)
Naquele tempo, Jesus entrou no Templo e começou a expulsar os vendedores. E disse: “Está escrito: ‘Minha casa será casa de oração’. No entanto, vós fizestes dela um antro de ladrões”. Jesus ensinava todos os dias no Templo. Os sumos sacerdotes, os mestres da Lei e os notáveis do povo procuravam modos de matá-lo. Mas não sabiam o que fazer, porque o povo todo ficava fascinado quando ouvia Jesus falar.
I. Reflexão
O Evangelho de hoje, ao menos à primeira vista, nos deveria causar perplexidade. De fato, vimos ontem as lágrimas de Jesus por Jerusalém; hoje, assistimos à sua colérica indignação, que o leva a expulsar do Templo os oportunistas que ali faziam comércio. A que se deve essa repentina mudança de comportamento? Apesar da aparente contradição, há uma harmoniosa continuidade entre as leituras de ontem e de hoje, e o seu fio condutor, isto é, a motivação de Cristo, permanece o mesmo: o amor e a misericórdia. Em outras palavras, por trás seja da tristeza, seja da ira de Deus, subjaz sempre a mesma realidade ou força motriz: o seu infinito amor. O amor misericordioso de Deus, com efeito, não se contenta em compadecer-se pelo amado; o Senhor vai além e, com amor autêntico e sincero, diz “não” às indiferenças e aos desrespeitos dos filhos desobedientes.
Deus, que quer dar-se inteiramente ao homem, não o castiga só por castigar; não o chicoteia nem lhe envia dores ou contrariedades pela vã complacência de vê-lo atormentado. Ele nos castiga, a fim de que a nossa tristeza nos leve à penitência (cf. 2Cor 7,9), para que a nossa dor nesta vida nos faça abrir os olhos para a verdadeira felicidade que nos espera na outra. Se Deus vem ao templo do nosso coração e o flagela e chicoteia, é porque deseja expulsar dele tudo o que nos faz esquecer de nossa finalidade: amá-lo e vê-lo um dia face a face, tal como ele é (cf. 1Jo 3,2). Se o Senhor nos “macera” com tribulações, doenças, fracassos, é porque deseja assimilar-nos ao seu Filho, cujas dores nos conquistaram muito mais do que merecêramos, colocar o templo do nosso coração no devido lugar e direciona-lo ao único Bem que o poderá satisfazer. Esse o sentido cristão do sofrimento; essa a atitude, de gratidão e humildade, que devemos ter diante daquele que, de tanto nos amar, não diz “sim” às nossas loucuras e nos impede de cair no abismo.
II. Comentário exegético
Purificação do Templo (cf. Mt 21,12-17; Mc 11,15-19). — A cena em nada difere da que supõe Jo 2,13ss. Note-se porém que, desta vez, não se menciona o azorrague de cordas (cf. Jo 2,15). Jesus invoca a autoridade das Escrituras: Está escrito: A minha casa é casa de oração (Is 57,7), e vós fizestes dela um covil de ladrões (cf. Jr 7,11), donde pode inferir-se que os negociantes em questão eram também sacerdotes, oficialmente encarregados de servir o Templo e organizar o culto divino. Jo acrescenta (cf. 2,17) que os discípulos, ou na mesma hora, ou (o que é mais provável) após a Ascensão, lembraram-se das palavras do salmista: O zelo da tua casa devorou-me (Sl 68,10), claramente alusivas ao Messias. — Mc acrescenta: E não consentia que alguém transportasse qualquer vaso (σκεῦος, em sentido latíssimo = instrumento, utensílio, objeto etc.) pelo Templo (11,16). — Ainda segundo Mc, ao ouvirem isto, os príncipes dos sacerdotes e os escribas encheram-se de tanta raiva, que procuravam modo de o perder (11,18). No entanto, o temor ao povo, transportado de admiração por Cristo, impedia-os de lançar-lhe as mãos.
NB — Aquando das festas pascais, muitos acorriam ao Templo não para rezar, mas para fazer negócio. Na parte exterior, no chamado átrio dos gentios, havia uma espécie de empório onde se vendia aos peregrinos todo o necessário para os sacrifícios rituais (e.g. óleo, vinho, sal, touros, cabras, ovelhas, rolas e outras vítimas prescritas pela lei). Era comum a presença de cambistas para trocar o dinheiro profano que circulava nas províncias do Império pelo shekel hebr., única moeda permitida no Templo.
Não está claro se o episódio narrado por Mt (cf. 21,14-17) ocorreu logo após a expulsão dos vendilhões, ou no dia anterior, depois da entrada triunfal na Cidade. No Templo, aproximaram-se de Jesus alguns cegos e coxos, e ele os curou. — Em seguida, irrompe mais uma vez a inveja dos inimigos, sobretudo ao ouvirem os meninos gritando no Templo e dizendo: Hosana ao Filho de David. (O evangelista tampouco esclarece se se trata de um grupo de meninos que costumavam cantar no Templo ou de crianças que seguiam as multidões atraídas pela pregação de Cristo.) — Por esse motivo, à indignação dos fariseus responde o Senhor: Nunca lestes: Da boca das crianças e meninos de peito preparastes louvor (gr. κατηρτίσω, lt. perfecisti), i.e. alcançastes perfeito louvor (Sl 8,3)? Muito vertem assim o texto hebr.: ‘Da boca dos infantes (i.e. das crianças) e dos lactentes encontrastes poder’ (עֹ֥ז = força, fortaleza etc.), i.e. tirastes a mais firme defesa de vossa glória contra as contumélias dos inimigos (1). As palavras, ditas pelo salmista em sentido geral, aplicam-se de modo particular ao Messias.
Meditação. — 1. Transformam o templo em covil de ladrões os que vão à igreja depois de perpetrar alguma rapina. Vê se isto não se aplica a ti. És ladrão, se alguma vez feriste com a língua a fama do próximo, porque mais vale o bom nome do que muitas riquezas (Pr 22,1). Chora, pois, este vício, repara como podes o dano causado e refreia tua língua de agora em diante. — 2. Transformam o templo em covil de ladrões os que vão à igreja depois de perpetrar algum homicídio. Isso vale para os que, após cometer algum pecado grave, se atrevem a participar dos sagrados mistérios sem as devidas disposições. Com efeito, torna-se a crucificar Jesus Cristo toda vez que se comete qualquer pecado mortal. Se tiveres consciência de algum, acusa-te dele logo e satisfaze a pena correspondente. — 3. Estão na igreja como num covil de ladrões os que vivem atormentados pela consciência, que os acusa de crimes não confessados, de vícios não corrigidos ou de confissões sacrílegas. Se a consciência te acusa de algo, procura-lhe o remédio adequado, para que voltes a rezar no templo com a paz dos filhos de Deus. — 4. Lembra-te de como é grave o pecado de irreverência na igreja, mesmo nas coisas necessárias ao templo e ao sacrifício, como era o caso da compra e venda de pombas, comparada por Cristo a um latrocínio. Ora, não é porventura muito mais grave a tua irreverência quando, no templo, te ocupas com os olhos ou a mente de coisas, não já necessárias, mas de todo alheias ao culto divino? Ou quando te diriges a Deus tão distraidamente, como não falarias nem sequer a um inimigo? Ou quando o recebes na Eucaristia com uma indiferença e um descaso com que não ousarias tratar em tua casa qualquer visitante? Se te sabes culpado de alguma destas faltas, envergonha-te, chora e propõe-te emendar teus modos (cf. M. Łęczycki, SJ, Meditationes, Liège, 1838, p. 354s).
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