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Christo Nihil Præponere"A nada dar mais valor do que a Cristo"
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Texto do episódio
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Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São João
(Jo 12, 24-26)

Naquele tempo disse Jesus a seus discípulos: “Em verdade, em verdade vos digo: Se o grão de trigo que cai na terra não morre, ele continua só um grão de trigo; mas se morre, então produz muito fruto.

Quem se apega à sua vida, perde-a; mas quem faz pouca conta de sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Se alguém me quer servir, siga-me, e onde eu estou estará também o meu servo. Se alguém me serve, meu Pai o honrará”.

I. Reflexão

Celebramos hoje a festa do grande diácono São Lourenço, um dos santos mais importantes da liturgia latina por ser um mártir romano que deu seu testemunho de fé durante as grandes perseguições. Celebrar São Lourenço é recordar qual é verdadeiramente a identidade cristã. Vivemos numa época em que se propagou bastante a ilusão de que, se formos bons cristãos, seguidores de Cristo, Deus de amor, iremos viver a concórdia, a paz, a conciliação de todos os povos, e no fim “tudo dará certo”. Mas isso não corresponde à realidade. É um sonho ingênuo, para não dizer ideologia maliciosa. Se olharmos para Nosso Senhor Jesus Cristo, para seus Apóstolos e para a Igreja, não só a dos primeiros séculos, mas a de todos os séculos, veremos que é próprio do cristão encontrar-se, cedo ou tarde, numa encruzilhada, posta em seu caminho na forma de uma escolha: ou tornar-se idólatra, adorando outras coisas que não ao Deus verdadeiro, ou ser coroado mártir. Alguma coisa iremos perder.

Desde o início, a Igreja vive desta profunda convicção. Nosso Senhor, na Última Ceia, anunciou o drama: Odiaram a mim, odiarão também a vós; em seus discursos escatológicos, previu: Irão levar-vos diante dos tribunais, sereis odiados por causa de mim. Olhando para os vinte séculos de cristianismo, o que vemos é uma constante. Quando Jesus, há dois mil anos, disse: Quem quiser me seguir, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me, Ele não estava fazendo poesia. É verdade, Jesus fala da cruz como metáfora da tribulação, do sofrimento, mas para descrever o que realmente há de acontecer com quem o ama e quer seguir. Por mais que amemos a humanidade e queiramos — como o quis Cristo morrendo por todos na cruz — a salvação do nosso próximo, se amamos Jesus, então seremos odiados como Ele o foi. Por quê? Porque num mundo onde impera o egoísmo e o pecado, isto é, o reinado de Satanás, qualquer um que viva a caridade divina, o amor de Cristo, Deus encarnado por amor ao homem, será odiado, rejeitado, rechaçado, perseguido.

Foi o que aconteceu com São Lourenço. A vida dele é exemplar nesse sentido. Que fazia São Lourenço? Qual era a função do diácono? São Lourenço era o encarregado da caridade. Ele devia ser muito amado por todos os romanos porque, afinal de contas, poderíamos aplicar a Lourenço o que nos Atos dos Apóstolos se diz de Jesus: Passou por este mundo fazendo o bem. Lourenço era o incumbido de recolher dinheiro e ajudar os pobres, as viúvas, os órfãos, os coxos e aleijados etc. Ele passou a vida fazendo o bem. Foi, digamos assim, uma espécie de “irmã Dulce”, para usar uma comparação brasileira. Quem não amaria uma pessoa que, desapegada das coisas materiais, faz o bem a todos os pobres e necessitados? No entanto, havia um “problema”: ele amava a Cristo, por isso se recusava a adorar o imperador. 

Ora, os cristãos sempre foram bons cidadãos. Os imperadores romanos não poderiam sonhar em os ter melhores, mais dóceis e obedientes, bondosos e zelosos do que eles. Mas a César o que é de César, a Deus o que é de Deus. Na época, César pretendia usurpar o que era de Deus, ou seja, a adoração. Ora, como convém antes obedecer a Deus que aos homens, São Lourenço entregou a vida por fidelidade a Cristo, juntamente com seus companheiros mártires, entre os quais estava o próprio papa, Sisto II, martirizado três dias antes. Todos sabiam ser grave pecado pôr qualquer criatura no lugar do Criador.

É exatamente a isso que somos tentados hoje em dia. Somos cristãos do século XXI, mas temos também nossas encruzilhadas, aqueles momentos em que é preciso decidir-nos por Cristo ou por Belial. A encruzilhada existe e é inevitável. Quando, por exemplo, saímos com os amigos, vamos a uma festa ou conversamos sobre temas “polêmicos”, chega sempre o momento em que temos de decidir professar e viver o que sabemos ser a verdade cristã, mesmo que isso nos custe certo constrangimento diante dos outros. Iremos manter a castidade, mesmo diante dos pedidos da namorada ou do namorado? Iremos persistir na retidão dos valores cristãos, mesmo diante daquela conversa indecente com os colegas? Iremos permanecer honestos, mesmo quando nos pedem no serviço uma “trapaçazinha”? Iremos continuar abertos à vida no casamento, ainda quando todo o mundo diga: “Está louco! Para que mais filhos?” Iremos testemunhar a fé de que Jesus Cristo é Deus feito homem, realmente presente nos sacrários da Igreja Católica, fora da qual não há salvação, ou preferiremos ceder aos sabores da moda e dizer: “Todas as religiões são boas. O importante é crer em alguma coisa”? São essas as encruzilhadas da vida, nas quais todos temos de escolher entre agradar a Deus ou aos homens, mesmo que o resultado seja o mesmo de São Lourenço — a grelha.

Peçamos a Deus que faça arder em nossos corações o amor a Jesus Cristo. São Lourenço sofreu, sim, as dores das chamas, dos carvões em brasa, mas aguentou firme porque, dentro do coração, trazia uma fornalha ainda mais ardente: a fornalha do amor a Nosso Senhor. Como ofender um Senhor tão bom, só para agradar ao mundo e salvar por breve tempo a vida do corpo, perdendo porém a da alma? Não. Se Cristo morreu por nós, morramos também nós por Ele. O martírio é a vocação de todo cristão. Talvez não cheguemos a derramar o sangue, mas algum preço, cedo ou tarde, teremos de pagar. Há encruzilhadas, e nós devemos escolher entre ser idólatras ou permanecer firmes. Até o martírio.

II. Comentário exegético

Argumento. — A morte de Cristo será condição necessária da redenção dos homens e da glorificação do próprio Cristo. João vincula esta cena às imediatamente precedentes; mas é incerto, pela falta de uma indicação explícita de tempo, se ela aconteceu no mesmo domingo ou no dia seguinte, uma vez que Mateus diz claramente (cf. 11, 1) que, como fosse tarde, Jesus voltou em seguida para Betânia.

V. 20s. Ora, havia lá alguns gregos entre aqueles que tinham ido adorar a Deus durante a festa. Esses gregos (gr. Ἕλληνές) = de origem étnica ou gentílica, embora iniciados na religião do verdadeiro Deus [1], não devem ser confundidos com os helenistas (cf. At 6, 1; 9, 29), i.e., com os judeus que falavam grego e viviam fora da Palestina, i.e., em diáspora. — Estes aproximaram-se de Filipe, que era de Betsaida da Galileia (cf. Jo 1, 44), distinto pois do diácono Filipe (cf. At 6, 5; 8, 5.13.26-40 etc.) e fizeram-lhe este pedido: Senhor, desejamos ver Jesus, i.e., falar com Ele. Filipe, talvez por timidez, não se atreveu a avisar o Mestre, razão por que falou primeiro a André, e ambos foram levar a notícia a Jesus [2].

V. 23ss. Não é dito se Jesus acedeu ao pedido dos étnicos. As palavras que seguem, ao que tudo indica, foram dirigidas aos discípulos, não aos gregos:

V. 23. Chegou a hora (gr. ἐλήλυθεν = eis que já está aqui) em que o Filho do homem será glorificado, i.e., a hora de sua morte (cf. Jo 7, 6.30; 8, 20), que será o início de sua verdadeira glória, glória universal e perpétua (por oposição à glória popular de um triunfo efêmero). — V. 24. Condição necessária desta glorificação será a morte, expressa figurativamente: Se o grão de trigo (que contém em si o princípio de sua propagação) que cai na terra (ao ser semeado) não morrer (i.e., ser dissolvido pelo calor da terra e privado da antiga vida), fica infecundo (torna-se estéril, sem dar fruto algum); mas, se morrer, produz muito fruto; noutras palavras, para que frutifique, é necessário que morra ou seja destruído. É óbvio o sentido da semelhança (não é uma alegoria) [3]. — “Ensina Cristo que sua claridade, ou a glória antes dita, lhe virá pela morte e pela cruz, para que eles não turbem nem se escandalizam com ela” (a Lapide, In Joan. 12, 24).

V. 25. A partir desta regra da divina sabedoria, expressão da verdadeira economia da redenção, Cristo formula uma doutrina na qual todo o Evangelho está contido: O que ama sua vida, i.e., quem, para conservar esta vida terrestre ou os bens temporais, transgride os mandamentos de Deus, perdê-la-á, i.e., será condenado eternamente; pelo contrário, quem odeia sua vida neste mundo, preferindo a ela a lei divina, conservá-la-á para a vida eterna [4]. Semelhante ideia encontra-se em Mt 10, 38s; 16, 25; Mc 8, 35; Lc 9, 24; 17, 33. — Cf. Santo Agostinho, In Joan. 12, tract. 51, 10: “Grande e admirável sentença: que o homem pereça como tiver amado sua alma, e não pereça como a tiver odiado! Se amares mal, então te odiaste; se odiaste bem, então te amaste. Felizes os que se odeiam guardando [o que é bom], para que não se percam amando [o que é mau]”!

Comentário espiritual: “Esta sentença de Cristo é o axioma, a base, o fundamento e um compêndio da vida cristã. Ela, com efeito, é a raiz e o princípio de todas as virtudes, que dela decorrem como as conclusões das premissas. Quem pois deseja tornar-se douto, exímio e perfeito na escola de Cristo deve ruminar assiduamente esta γνώμη, meditá-la, imprimi-la na vontade, levá-la à prática, para adaptar, adequar e conformar a ela como uma pedra-da-lídia todas as suas ações. Assim irá tornar-se um verdadeiro e singular discípulo, assecla e imitador de Cristo, e em troca da vida temporal, que despreza, entrará nos gozos bem-aventurados da vida eterna” (a Lapide, In Joan. 12, 25, in fine).

V. 26. É o mesmo ensinamento, aplicando a doutrina acima: Se alguém me quer servir, i.e., professar-se meu ministro e discípulo, siga-me até o sacrifício da própria vida, como se depreende dos versículos anteriores. Mas não há que temer a morte, porque grande será a recompensa: E, onde eu estou, i.e., nos céus, estará ali também o que me serve, participante de minha glória e bem-aventurança. Cf. Santo Agostinho, In Joan. 12, tract. 51, 11: “O salário da obra que é servi-lo é estar com Ele; ora, onde se poderia estar bem sem Ele, ou quando se poderá estar mal com Ele?” — Exalta ainda mais a glória futura de seu discípulo: Se alguém me servir, meu Pai o honrará, i.e., pelas humilhações e opróbrios que, para me servir, houver suportado será cumulado por Deus mesmo de honra e glória (cf. Fp 2, 9) “celeste, diante dos anjos, dos beatos e de todo o mundo” (a Lapide, In Joan. 12, 26).

III. Comentário de Santo Tomás (In Matt. XII, l. 4, nn. 1638-1648)

A) A PAIXÃO DE CRISTO. Em seguida, quando diz: Em verdade, em verdade vos digo etc., insinua a necessidade de sua paixão, e primeiro a põe; depois, sua utilidade, onde: Se morrer, produz muito fruto.

1. Sua necessidade. — Ora, a necessidade de sua paixão é causada pela conversão dos gentios, que não pode dar-se senão pelo Filho de homem glorificado pela paixão e ressurreição, e é isto o que diz: Em verdade, em verdade vos digo, i.e., na verdade, se o grão de trigo, que cai na terra, não morrer, fica infecundo.

Acerca do qual, quanto à letra, se deve saber que usamos o grão de trigo para duas coisas, a saber: para pão e para plantio. Ora, o que é dito aqui se entende do trigo enquanto semente para plantio, e não enquanto matéria de pão porque, neste caso, ele nunca germina para dar fruto. Diz, porém, Se morrer, não porque perca a virtude germinativa, mas porque se transforma noutra espécie: O que semeias não toma vida, se primeiro não morre (1Cor 15, 36). Ora, do mesmo modo que a palavra de Deus é semente na alma do homem, enquanto é revestida de voz sensível [i.e., pela pregação, pois fides ex auditu], a fim de produzir o fruto da boa obra: A semente é a palavra de Deus (Lc 8, 11), assim também o Verbo de Deus revestido de carne é a semente enviada ao mundo, da qual devia germinar uma grande messe; daí ser comparado a um grão de mostarda (cf. Mt 13, 31).

Diz, portanto: “Eu vim como semente para frutificar, e por isso vos digo verdadeiramente: Se o grão de trigo que cai na terra não morrer, fica infecundo”, i.e., “a não ser que eu morra, não se dará o fruto da conversão dos gentios”. Por isso se compara a um grão porque para isso veio, restaurar e sustentar as mentes humanas. Ora, é sobretudo isto que o pão de trigo faz: O pão robustece o coração do homem (Sl 103, 15); e acima: O pão que eu vos darei é minha carne para a salvação do mundo (Jo 6, 52).

Dubium: Mas então a multidão dos gentios não haveria de converter-se senão pela morte de Cristo. Haveria, segundo a virtude de Deus, mas não segundo a determinação de Deus por Ele ordenada, para que se fizesse por este modo, na medida em que era mais congruente: Sem efusão de sangue não há remissão (Hb 9, 22); abaixo: Se eu não for, o Paráclito não virá a vós (Jo 16, 7) [5].

2. Sua utilidade. — Põe-se a utilidade da paixão, quando diz: Se morrer, produz muito fruto, como se dissesse: “Se não cair na terra pela humildade da paixão” — Humilhou-se a si mesmo, fazendo-se obediente até a morte (Fp 2, 7) —, “não se segue nenhuma utilidade, porque fica infecundo, mas se morrer,” i.e., for mortificado e morto pelos judeus, produz muito fruto”. — a) A remissão dos pecados. E primeiro o fruto da remissão do pecado: Eis todo o fruto, a expiação do pecado (Is 27, 9), e a paixão de Cristo deu este fruto segundo aquilo: Cristo morreu uma vez pelos nossos pecados, o justo pelos injustos, para nos levar a Deus (1Pd 3, 18). — b) A conversão dos pagãos. Segundo, o fruto da conversão dos gentios a Deus; abaixo: Eu vos destinei para que vades e deis fruto, e para que o vosso fruto permaneça (Jo 15, 16), e a paixão de Cristo deu este fruto como se diz abaixo, no mesmo lugar: Eu, quando for levantado da terra, atrairei todos os homens a mim (Jo 12, 32). — c) A glorificação. Terceiro, o fruto da glória: O fruto dos bons trabalhos é glorioso (Sb 3, 15); acima: O que sega recebe recompensa e junta o fruto para a vida eterna (Jo 4, 36). E a paixão de Cristo também deu este fruto: Portanto, irmãos, tendo nós confiança de entrar no santuário pelo sangue de Cristo pelo caminho novo e vivo que nos abriu através do véu, isto é, através da sua carne (Hb 10, 19s).

B) A PAIXÃO DO CRISTÃO. Aqui põe a necessidade da morte de outros que, por amor de Cristo, se expõem a paixões, e primeiro põe a necessidade desta morte; depois, exorta à morte mesma, onde: Se alguém me quer servir, siga-me.

1. Sua necessidade. — Acerca do primeiro, faz duas coisas: primeiro, fala da necessidade de suportar a morte por causa de Cristo; depois, fala da utilidade desta morte, onde: E quem odeia a sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna.

Diz, pois, quanto ao primeiro: O que ama a sua vida. E, com efeito, todo homem ama sua alma. Mas alguns absolutamente [simpliciter], e outros por certo ângulo [secundum quid]. Ora, amar alguém é querer-lhe o bem; logo, o que ama sua alma quer-lhe o bem. Por conseguinte, quem quer para sua alma o que é bom absolutamente, ama-a absolutamente; mas quem quer para ela um bem particular, ama-a por certo ângulo. Ora, os bens absolutos da alma são aqueles pelos quais a alma torna-se boa, a saber: o sumo bem, que é Deus. Quem, portanto, quer para sua alma o bem divino e espiritual, ama-a absolutamente; mas quem quer para ela bens temporais, como riquezas e honras, prazeres e coisas parecidas, ama-a por certo ângulo: O que ama a iniquidade odeia sua alma (Sl 10, 5); Se condescenderes com a tua alma no que deseja, ela fará de ti a alegria dos teus inimigos (Eclo 18, 31).

Logo, pode-se entender esta passagem num duplo sentido. De um modo, assim: O que ama sua alma, i.e., absolutamente, em ordem aos bens eternos, perdê-la-á, i.e., irá expor-se à morte por causa de Cristo. Mas este não é o sentido verdadeiro. E por isso se diz: O que ama sua alma por certo ângulo, a saber: em ordem aos bens temporais, perdê-la-á absolutamente. Que aproveitará a um homem ganhar todo o mundo, se vier a perder a sua alma? (Mt 16, 26). E a verdade deste sentido é patente pelo que segue: Quem odeia sua vida neste mundo conservá-la-á para a vida eterna. Por isso, o que ama sua vida neste mundo, i.e., em ordem aos bens mundanos, perdê-la-á quanto aos bens eternos: Ai de vós os que agora rides! porque gemereis e chorareis (Lc 6, 25); e no mesmo lugar: Lembra-te que recebeste os teus bens em tua vida, e Lázaro, ao contrário, recebeu males; por isso ele é agora consolado, e tu és atormentado (Lc 16, 25).

2. Sua utilidade. — Fala-se da utilidade desta morte, quando diz: E o que odeia sua alma neste mundo, i.e., quem nega à sua alma os bens presentes e suporta por causa de Deus o que parecem males neste mundo, conservá-la-á para a vida eterna: Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o reino dos céus (Mt 5, 10); Se alguém vem a mim, e não odeia pai e mãe… ou mesmo sua alma, não pode ser meu discípulo (Lc 14, 26).

Deve-se atender a que o dito acima sobre o grão de trigo compete [também] a esta sentença. Pois assim como Cristo foi enviado ao mundo como certa semente para dar fruto, assim também tudo o que nos é dado temporalmente por Deus não nos é concedido como fruto, senão que por meio dele somos conduzidos ao fruto da eterna recompensa. Ora, nossa vida é certo dom temporal concedido a nós por Deus. Quem portanto a expõe por causa de Cristo produzirá muito fruto. Este é o que odeia sua alma, i.e., quem a expõe e semeia por causa de Cristo em ordem à vida eterna: Vão andando e chorando, os semeadores na hora da sementeira; quando voltarem, virão com alegria, trazendo os seus feixes (Sl 125, 6). E semelhantemente o que expõe por causa de Cristo suas riquezas e os outros bens que possui e os compartilha com outros em ordem à vida eterna: Aquele que semeia em profusão, em profusão ceifará (1Cor 9, 6).

C) A GLORIFICAÇÃO DO CRISTÃO. Mas por parecer duro que o homem tenha ódio à sua alma, o Senhor exorta a isso em seguida, dizendo: Se alguém me quer servir, siga-me, e primeiro põe-se a exortação; depois, a razão da exortação, onde: Se alguém me servir, meu Pai o honrará.

1. Exortação à imitação de Cristo. — Acerca do primeiro faz três coisas: primeiro, descreve as condições de seus fiéis; segundo, induz à imitação de si; terceiro, declara a remuneração dos que o imitam.

a) A dignidade do fiel. E atente-se, quanto ao primeiro, para a dignidade dos fiéis de Cristo, porquanto ministros de Cristo: São ministros de Cristo como eu também o sou (2Cor 11, 23). Servem a Cristo os que procuram o que é de Cristo; mas os que procuram o que é do próprio interesse não são servidores de Cristo, mas de si mesmos: Todos buscam seus próprios interesses (Fp 2, 21). Os prelados são servidores na medida em que dispensam aos fiéis os sacramentos dele: Todos nos considerem como servidores de Cristo e dispensadores dos mistérios de Deus (1Cor 4, 1). Também o é qualquer fiel que guarda os mandamentos de Cristo: Em todas as coisas nos mostramos como ministros de Deus (2Cor 6, 4).

b) A honra do fiel. Quanto ao segundo, atente-se para a glória e a nobreza de Cristo, onde diz: Siga-me, como se dissesse: “Os homens seguem seus senhores, aos quais servem; logo, o que me quer servir, siga-me, de modo que, assim como eu me entrego à morte para dar muito fruto, também ele o faça”. Ora, seguir a Cristo é uma grande glória: É uma grande glória seguir o Senhor (Eclo 23, 38); acima: As minhas ovelhas ouvem a minha voz; eu conheço-as, e elas seguem-me (Jo 10, 27).

c) A bem-aventurança do fiel. Quanto ao terceiro, atente-se para a bem-aventurança dos fiéis, porque onde eu estou, não só quanto ao lugar, mas também quanto à participação da glória, estará ali também o que me serve: Onde estiver um cadáver aí se ajuntarão as águias (Mt 24, 28); Aquele que vencer, fá-lo-ei sentar comigo no meu trono (Ap 3, 21).

2. Razão da exortação. — Fala-se da razão da exortação, quando diz: Se alguém servir, meu Pai o honrará. De fato, o Pai honra ao que serve a Cristo. Mas acima é dito: A fim de que todos honrem o Filho como honram o Pai (Jo 5, 23); por conseguinte, é o mesmo glorificar o Filho que glorificar o Pai. Ora, o Pai diz: Glorificarei a quem me glorificar (1Sm 2, 30); portanto, o Pai de Jesus glorificará ao que serve a Jesus buscando não o que é seu, mas de Jesus Cristo. Mas não diz: “Eu o glorificarei”, senão: O meu Pai, porque ainda não tinham dele a opinião de que fosse igual ao Pai.

Ou se deve dizer que Ele diz essas coisas em sinal de maior familiaridade, na medida em que serão glorificados por aquele que glorificará também o Filho. Pois a honra que o Filho tem por natureza, eles a têm por graça. Daí dizer Agostinho: “Não poderá receber maior glória o [filho] adotivo do que estar onde está o [Filho] único”; Também os predestinou para serem conformes à imagem de seu Filho, para que ele seja o primogênito entre muitos irmãos (Rm 8, 29).

Referências

  1. Estes são os prosélitos, que no NT são chamados muitas vezes piedosos e tementes a Deus (cf. At 13, 43.50; 16, 14; 17, 4; 18, 7 etc.).
  2. Uma antiga opinião, consignada já por Eusébio (cf. HE I 3), afirma que estes gentios seriam legados de Abgar, rei de Edessa. Mas é muito duvidoso o fundamento em que se baseia tal tradição.
  3. Segundo os peritos, não é absolutamente necessário para a frutificação que todo o grão seja destruído, mas Jesus fala aqui conforme o sentir comum dos homens, no que não há qualquer inconveniente. Afinal, também os astrônomos, v.gr., dizem vez por outra que o Sol “nasce” e “se põe”, embora saibam que não é assim. — Cf. J. Pujiula, “Comentario científico a los vv. 24-25 del capítulo XII del Ev. de S. Juan”, em: Ibérica 40 (1933, II), p. 62ss: “Não é raro ouvir comentar o Texto sagrado assim: ‘Se a semente apodrece, produz fruto…, se não apodrece, permanece só ela’. De fato, a semente esgota no todo ou em parte a reserva orgânica… Mas à absorção da reserva orgânica pelo germe ou pelo embrião em desenvolvimento não se pode chamar putrefação a não ser em sentido muito metafórico”. 
  4. Cf. a Lapide, In Joan. 12, 25: “Entendiam mal esta passagem os hereges chamados circunceliões, que, de acordo com Santo Agostinho, se suicidavam para conseguir a vida eterna prometida aqui por Cristo. Ora, uma coisa é odiar a alma, outra é matá-la, o que é absolutamente proibido”.
  5. A potência divina costuma ser dividida pelos teólogos em absoluta e ordenada num triplo sentido: a) diz-se absoluta quando considerada em Deus “antes” de qualquer ato livre, e ordenada quando considerada “depois” do decreto criador, no qual estão virtualmente incluídos todos os decretos referentes ao governo das coisas a seus fins, tanto em geral quanto em particular, na ordem tanto natural como sobrenatural; b) diz-se absoluta a potência em virtude da qual Deus opera certos efeitos à margem do curso normal das coisas, e ordenada — ou ordinária — aquela em virtude da qual opera certos efeitos segundo o curso normal delas; c) diz-se absoluta quando concebida pelo intelecto sem outros atributos, ou em conjunção com apenas algum(ns) deles (v.gr., justiça, bondade, sabedoria etc.), e ordenada quando concebida como é em si mesma, i.e., em união e identidade real com todos os atributos divinos (cf. G. Huarte, De Deo creante et elevante ac de novissimis. 2.ª, Roma: Pontifícia Universidade Gregoriana, 1935, p. 401ss, n. 381). Embora utilize outra terminologia, Santo Tomás de Aquino recorre aqui à divisão entre potência absoluta (virtus Dei) e ordenada (determinatio ordinata) tomada no primeiro sentido: se quisesse, Deus poderia converter os gentios sem a morte de Cristo, mas determinou convertê-los por ela.

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