Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
(Mc 3,1-6)
Naquele tempo, Jesus entrou de novo na sinagoga. Havia ali um homem com a mão seca. Alguns o observavam para ver se haveria de curar em dia de sábado, para poderem acusá-lo. Jesus disse ao homem da mão seca: “Levanta-te e fica aqui no meio!” E perguntou-lhes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram. Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada. Ao saírem, os fariseus com os partidários de Herodes, imediatamente tramaram, contra Jesus, a maneira como haveriam de matá-lo.
No Evangelho de hoje, Jesus mais uma vez entra em controvérsia a respeito do dia de sábado, mas agora Ele realiza uma cura milagrosa, o que nos coloca diante de uma pergunta importante: qual é o significado dos milagres de Jesus? Por que Jesus realizava milagres?
Os milagres de Cristo, na realidade, são sinais, e a palavra “sinal” quer dizer que, no fundo, não eram somente prodígios e portentos, eram parábolas. Ou seja: sempre que Jesus faz um milagre, Ele está querendo ensinar alguma coisa através dele.
Uma das provas de que Jesus realmente está querendo ensinar alguma coisa é que, na maior parte das vezes, Ele exige das pessoas fé. Por quê? Ele podia fazer perfeitamente o milagre sem fé, aliás se encontra isso na Bíblia, por exemplo na travessia do Mar Vermelho: Moisés abriu o Mar Vermelho, mas o povo não estava acreditando; estava todo o mundo morrendo de medo, exatamente o contrário daquilo que é a fé. Foi incredulidade, e no entanto Deus pode fazer milagres com a incredulidade do povo.
Mas Jesus exige fé. Ele exige fé exatamente porque o mais importante não é o milagre, mas o significado do milagre — no caso, a cura de um homem de mão seca em dia de sábado. É como se Jesus dissesse “Vocês que seguem a revelação do Antigo Testamento, que foi desejada por Deus e feita por Ele, não entendem nem compreendem. Vocês são incapazes de cumprir a Lei. As suas obras estão secas como a mão deste homem”.
Ora, que é a mão? É um instrumento, é o órgão do nosso corpo com o qual nós fazemos nossas obras. Pois bem, o homem estava com a mão seca. Isso significa que Deus, no Antigo Testamento, quis fazer um povo para si.
Deus, no Antigo Testamento, deu a esse povo uma Lei. No entanto, a dureza do coração impedia que as pessoas cumprissem a Lei no seu significado mais profundo. Por quê? Porque o nosso egoísmo era o grande impasse.
Moisés deu a Lei, depois vieram os profetas, que começaram a denunciar constantemente este povo de coração duro porque não cumpre a Lei, até chegarmos a um impasse. O impasse é exatamente esse. Ezequiel faz então uma profecia: “Dar-vos-ei um coração novo”, ou seja, Deus vai tirar o nosso coração de pedra e nos dar um coração de carne para que nós possamos cumprir a Lei.
Ora, Jesus vê os fariseus apegados à Lei, cumprindo de forma meticulosa pequenos mandamentos, mas perdendo a essência do que é a mensagem de Deus. Ele vê, portanto, que já não são capazes de realizar boas obras, pois as obras brotam de um coração que ama. Não é só uma questão de obediência externa, mas de amor, que brota desde dentro.
Então, Jesus, na sinagoga, diz ao homem: “Põe-te aqui no meio e estende a mão”, a mão seca, que não é capaz de operar nem de realizar boas obras. Jesus a cura, e eis então a grande notícia para nós: o nosso coração é incapaz de amar, mas Ele quer curá-lo; nós somos incapazes de realizar obras de amor, mas Ele quer nos curar, e Ele vem nos dar a graça interior, por isso essa cura em dia de sábado nos tira da nossa inatividade, da nossa “mão seca”, e nos dá a capacidade de amar dando passos de gigante.
* * *
COMENTÁRIO EXEGÉTICO
A cura do homem de mão seca (Mc 3,1-5; cf. Mt 12,9-13; Lc 6,6-10). — a) As circunstâncias de lugar e tempo são indicadas apenas de modo geral pelos evangelistas: Aconteceu num dia de sábado que Jesus entrou na sinagoga (em Mt: na sinagoga deles, i.e., dos judeus ou, talvez, dos habitantes de Cafarnaum, entre os quais ele costumava demorar-se) e começou a ensinar.
b) O milagre. — V. 1-4. Achava-se ali um homem que tinha a mão (direita, acrescenta Lc) seca (ἐξηραμμένην), i.e., tábida, sem suco vital ou, como se diz em pt., atrofiada [1]. Ora, como Jesus tivesse feito milagres outras vezes também em dia de sábado, por ser maior nesse dia o afluxo de pessoas na sinagoga, por isso os escribas e os fariseus o observavam, para ver se iria curá-lo em dia de sábado. Jesus porém disse ao doente: Levanta-te e fica aqui no meio, e em seguida interrogou seus inimigos: O que é permitido fazer no sábado: o bem ou o mal, salvar uma vida ou deixar que se perca? É o modo hebraico de dizer: “É lícito ou não fazer o bem em dia de sábado? É lícito salvar alguém da morte ou de um grave perigo?”
N.B. — A casuística dos rabinos acerca das curas e cuidados médicos em dia de sábado regia-se por três regras: 1) havendo perigo de morte, era lícito administrar e tomar qualquer remédio apto; 2) tratando-se de qualquer outra enfermidade, era lícito usar o que não tinha função exclusivamente medicinal apenas na medida necessária ao cuidado e à nutrição física de um homem saudável; 3) de resto, era proibido qualquer ação, ainda que mínima, cujo fim único fosse a cura da doença. Ora, enfermidades como uma atrofia muscular não representavam perigo de morte, e a ação de Cristo dirigia-se unicamente à cura da doença; daí a indignação farisaica dos judeus.
Em Mt reforça-se a pergunta com um argumento tomado de um costume comum e reconhecido: se a ovelha de alguém cair num poço em dia de sábado, quem de vós não a irá procurar e retirar? Ora, não vale o homem muito mais que uma ovelha? [4] Mas eles se calavam, por um lado, convencidos da verdade dos fatos e, ademais, pela sua atitude habitual; coagidos, por outro, pela interpretação estrita de suas tradições.
V. 5. Então, lançando (περιβλεψάμενος = lit. olhando em derredor, cf. Mc 3,34; 5,22; 9,8; 10,23; 11,11) um olhar indignado, i.e., com rosto severo, sobre eles, mas ao mesmo tempo contristado (συλλυπούμενος = condoído, apiedado [2], cf. Rm 9,2) interiormente com a dureza (lt. cæcitate, gr. πωρώσις = ato de endurecer, ou vício de quem tem a mente calejada, dura, embotada, i.e., cega [3]) de seus corações, i.e., com sua dureza e obstinação, diz ao homem: Estende tua mão! Ele estendeu-a e a mão foi curada.
c) Os fariseus decidem matar Jesus (cf. Mt 12,14; Mc 3,6; Lc 6,11). — Vê-se assim que a prática e a doutrina de Jesus acerca da lei sabática opõem-se pelo diâmetro à prática e à doutrina dos fariseus. São, por assim dizer, duas concepções diferentes sobre a natureza da religião. Consequentemente, Jesus tornou-se alvo do ódio e da inveja deles. Saindo pois dali os fariseus, ficaram com muita raiva (acrescenta Lc, em gr., ἀνοία, lt. insipientia = lit. fúria, ira insana), i.e., ficaram como loucos e dementes de raiva, e começaram a discutir entre si sobre o que poderiam fazer contra Jesus. Mt e Mc dizem explicitamente qual foi o desfecho da discussão: e deliberaram logo com os herodianos (que tinham muita influência junto de Herodes Antipas) como o haviam de prender.
* * *
NOTA SOBRE OS MILAGRES DE CRISTO
Finalidade. — O fim com vistas ao qual Jesus realizou milagres era tríplice: 1.º demonstrar sua missão divina [4], 2.º socorrer os miseráveis e 3.º significar o poder divino que possuía para curar as doenças da alma e manifestar outras coisas de ordem sobrenatural. Com efeito:
a) Todo o que se apresenta aos homens como enviado de Deus deve confirmar sua missão com um testemunho divino, i.e., mediante milagres. A razão disto é que, afora o milagre, i.e., um efeito sensível cuja causa só pode ser Deus, não há qualquer meio proporcionado de atestar com certeza a origem divina de alguém ou de alguma doutrina [5]. Eis por que os judeus interpelavam Cristo, exigindo-lhe: Com que sinal nos mostras que tens autoridade para fazer estas coisas? (Jo 2,18). Ora, que tal fosse o objetivo primário do divino Taumaturgo, atestam-no mais de uma vez os próprios evangelistas (cf. Mt 9,5ss; 11,2-6; Lc 7,19-23; Jo 5,36; 10,25.37s). É verdade que, vez por outra, o Senhor não parece indicar nada além da simples condição de legado do Pai (cf., e.g., Jo 3,2; 5,17-20), porém o mais frequente é vê-lo operar milagres em nome próprio, como quem tem virtude e autoridade divinas para mandar aos mares, aos ventos, às doenças, aos demônios etc. (cf. Mt 8,1.5ss; 9,28 etc.); às vezes, atesta sua própria divindade em termos ora explícitos, ora implícitos (cf. Jo 10,36ss; 14,11s; Mt 9,1-6; Lc 5,20-25).
Objeções: 1.ª As palavras de Cristo em Jo 4,48: Se não virdes milagres e prodígios, não credes, parecem indicar que a intenção de Cristo era outra que não a assinalada: “Quem pronunciou estas palavras não pode ter pensado que a fé em seus milagres era o verdadeiro ou mesmo o único caminho para alcançar uma justa compreensão de sua pessoa e de sua missão” [6]. Uma, portanto, era a finalidade do Mestre, outra porém a que lhe atribuíram os discípulos. Resposta: A melhor resposta são as palavras mesmas de Cristo, dirigidas não só ao centurião, mas a aos galileus em geral, que, desejosos de prodígios e menos dispostos à fé do que os samaritanos (cf. Jo 4,39-42), se negavam a crer se não vissem com os próprios olhos os milagres do Senhor. — 2.ª Cristo ordenou mais de uma vez que seus milagres não fossem divulgados (cf., e.g., Mc 1,34; 5,43; Lc 4,41 etc.). Logo, é falso que os tenha realizado para que todo o mundo acreditasse. Resposta: Cristo agiu assim não porque quisesse manter os milagres em segredo, mas porque não queria vê-los divulgados pela boca de demônios, e para evitar que as multidões se exaltassem tanto, que viessem a pôr em perigo sua pregação e toda a obra messiânica.
b) Uma segunda finalidade dos milagres, subordinada à primeira, era a manifestação da bondade de Deus, nosso Salvador (Tt 3,4; cf. 2,11). Com efeito, o divino Médico quis curar não só as doenças invisíveis da alma como também as visíveis do corpo. Andou fazendo bem e sarando todos os oprimidos do demônio (At 10,38), — e ia percorrendo todas as cidades e aldeias . . ., curando toda doença e toda enfermidade (Mt 9,35), tomando sobre si as nossas fraquezas e enfermidade (Mt 8,17; cf. Is 53,4). Os evangelistas indicam mais de uma vez o afeto que impelia o Senhor a realizar milagres: Movido de compaixão para com ela, disse-lhe: Não chores etc. (Lc 7,13); Tenho piedade deste povo, porque há já três dias que não se afastam de mim (Mt 15,32; cf. Mc 8,2) etc. E aos filhos de Zebedeu, como quisessem precipitar fogo do céu sobre os samaritanos, respondeu: Vós não sabeis de que espírito sois (Lc 9,55).
Uma única vez realizou Jesus um milagre movido de indignação, a saber: na maldição da figueira (cf. Mt 21,18s; Mc 11,12ss.20.26); mas naquela ocasião, se considerarmos atentamente a passagem, notaremos sentimentos mais de misericórdia que de vingança, na medida em que sob o símbolo da figueira vemos a ameaça divina, sinal do amor de Deus aos homens e meio eficaz de os levar à penitência.
c) Simbolismo dos milagres. — Os milagres são como parábolas factuais, que manifestam, não menos do que as literárias, a admirável analogia que existe entre as ordens natural e sobrenatural. O divino Redentor fazia milagres com o fim de elevar a inteligência dos homens das coisas naturais para as sobrenaturais, das doenças do corpo às enfermidades invisíveis da alma, além do de mostrar-se, logicamente, como remédio de todos os males.
A existência deste simbolismo depreende-se do próprio Evangelho: 1) Cristo nos ensina a íntima relação que pode haver, ao menos em certos casos, entre as doenças do corpo e as do espírito (cf. Mc 2,1-11); — 2) não raro, aproveita-se dos milagres como de ocasiões favoráveis para significar algum fato ou verdade de ordem sobrenatural (cf. Mt 4,19; Jo 11,23); — 3) obriga os demônios a que eles mesmos confessem que a destruição do império diabólico é representado, entre outras coisas, pela libertação dos possessos; — 4) por último, não há melhor argumento desta analogia do que o texto de Isaías (cf. 53,4) citado por Mt (cf. 8,17), no qual o evangelista aplica às doenças corporais saradas por Cristo o que Isaías vaticinara acerca das enfermidades espirituais que o Messias tomaria sobre si.
Eis o que diz Agostinho a esse respeito: “Perguntemos aos milagres o que nos dizem sobre Cristo. Têm eles, se bem entendidos, sua própria linguagem. Pois se Cristo é a Palavra de Deus, também os feitos de Cristo são palavra para nós” (Tract. XIV in Ioh.: ML 35,1593); “Nosso Senhor Jesus Cristo queria fossem entendidas também espiritualmente as coisas que fazia corporalmente. Ele, com efeito, não fazia milagres pelos milagres, mas para que aquilo que fazia fosse admirável a quem o visse, e verdadeiro a quem o entendesse, assim como quem vê as letras de um livro bem escrito, e não sabe ler, pode até elogiar a mão que as escreveu . . . mas ignora o que indicam e querem dizer aqueles traços” (Serm. XCVIII 2: ML 38,592).
O que achou desse conteúdo?