No Evangelho de hoje (Mc 2,18-22), por ocasião de uma pergunta a respeito do jejum, Jesus ensina a diferença do que Ele veio fazer em relação aos preceitos da Antiga Aliança: “Vieram perguntar a Jesus: ‘Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, e os teus discípulos não jejuam?’”
Primeiro, é importante notar que, no contexto do Evangelho de Marcos, a pergunta é feita sem malícia. Mas em uma sociedade pautada pelas prescrições da Lei de Moisés, causa espanto e curiosidade o fato de que os discípulos de Jesus não jejuem, e as pessoas querem entender o porquê.
O que é o Antigo Testamento? É a revelação de Deus no tempo anterior a Nosso Senhor Jesus Cristo. Para resumirmos os preceitos desse período, podemos dividi-los em três categorias: as Leis Naturais (ou Morais), as Leis Civis e as Leis Religiosas (ou Cerimoniais).
Os preceitos que podemos chamar de naturais estão resumidos nos Dez Mandamentos: as leis que já estavam escritas por Deus na própria natureza das coisas desde a Criação. São preceitos que o próprio homem, com sua inteligência, é capaz de descobrir. Nota-se, aliás, que muitos povos os descobriram, ainda que em parte. Não é preciso que alguém leia a Bíblia para saber que não matar é um preceito natural para a humanidade, ou que é preciso respeitar pai e mãe — basta um pouco de inteligência, afinal, sem esse tipo de relacionamento respeitoso, de confiança mútua, não seria possível ter família, nem desenvolver a educação. Desse modo, é natural que a criança não comece a vida invertendo as coisas, dizendo: “Eu sei o que é certo. Papai e mamãe, vocês vão me obedecer!”
Não é necessário, também, conhecer os Dez Mandamentos para saber que deve existir algum limite para a atividade sexual ou para o uso das coisas — condenando, por exemplo, o roubo, ou racionalizando como vamos usufruir o mundo material.
Todas essas verdades estão inscritas por Deus no ser das coisas. O homem, porém, com sua tendência ao egoísmo, fruto do pecado original, pode ter dificuldade de enxergar essas leis naturais. Por isso, Deus, como que para “facilitar a nossa vida”, revelou-se a Moisés e deu-lhe as Tábuas da Lei — lembremo-nos de que eram duas tábuas, a primeira mostrando os deveres que nós temos para com Deus (primeiros três mandamentos), e a segunda contendo os deveres que nós temos para com o próximo (sete mandamentos seguintes).
Quando Jesus veio ao mundo, os Dez Mandamentos não foram abolidos. Afinal, fazem parte da natureza da criação, e continuam valendo! Mas, no Antigo Testamento, também havia os outros dois tipos de lei que, por sua vez, foram abolidas por Jesus.
Havia as Leis Civis, relativas à organização jurídica do povo de Israel. A razão de sua existência na Antiga Aliança é que Deus elegeu e organizou um povo para ser portador de sua Revelação. Esse povo, como qualquer outro da Terra, tinha um governo político e a necessidade de julgar suas contendas internas, como os crimes e outras situações de conflito interno. Por esse motivo, Deus lhes deu um código básico e fundamental para orientar a sua organização social. Tudo isso foi abolido por Jesus. E o motivo é que, com a sua vinda, o Senhor veio instaurar um novo e definitivo povo de Deus, que não é mais o povo de Israel, mas o próprio Corpo de Cristo presente em todos os povos.
A instituição desse novo povo é importantíssima e tem consequências relevantes para o nosso dia a dia. Nós, católicos, sabemos: Deus não veio instaurar um regime político. O que Ele nos dá é a capacidade de usar a nossa inteligência e as nossas virtudes para trabalharmos em prol de uma política mais justa, racional e adequada, mas sem especificar a forma desse governo.
Para nós, isso parece algo óbvio, mas não é assim, por exemplo, para os muçulmanos. Na religião islâmica, as revelações de Maomé instauraram um regime em que um conjunto de leis, a sharia, precisa ser aplicada na “casa da obediência”, no Islã. Não se trata, aqui, de criticar os muçulmanos, mas explicar quem somos, por contraste. Isso se torna ainda mais necessário nestes tempos de crise que vivemos no Brasil, quando muitas pessoas ficam esperando uma palavra da Igreja que nos diga o que devemos fazer para resolver o nosso problema político e institucional. E a resposta mais simples é: a Igreja não tem um regime político “oficial”.
A solução que a Igreja propõe para a sociedade é o Evangelho, que deve inspirar as pessoas, com a convicção de que a nossa inteligência, quando virtuosamente aplicada, pode combater as ditaduras e a opressão dos povos, promover a liberdade e a dignidade das pessoas etc. Desse modo, quem deve construir essas soluções somos nós, seja olhando com sabedoria para a história e para o que a tradição nos deu em dois mil anos de experiência, seja de forma inovativa, criando caminhos que antes não existiam.
Existem católicos em países organizados com os mais diversos regimes: monarquias parlamentaristas, repúblicas e, infelizmente, também em ditaduras. Não estou, evidentemente, aprovando qualquer governo ditatorial, mas estou dizendo que a Igreja, com o seu Evangelho, com a racionalidade e a virtude do homem, pode transformar os regimes. Foi o que sempre fizemos. Mas fazemos isso no campo político e social, sem aparecer com a Bíblia mostrando como a política deve ser organizada. Nas Sagradas Escrituras estão os princípios, não uma descrição da solução.
Com base nesses princípios, usando a nossa inteligência, vamos ter que ir ao Parlamento. Teremos que debater para construir esses caminhos, com a esperança de encontrar soluções que não tenham de “reinventar a roda”, porque já temos dois milênios de experiência social.
Até agora, falamos de duas das três categorias de leis do Antigo Testamento: as naturais e as civis. As primeiras estão resumidas nos Dez Mandamentos, que jamais serão abolidos porque fazem parte da natureza das coisas criadas. O ser humano, com a sua inteligência, é capaz de enxergar essa lógica natural e entender que não se deve matar, roubar, cometer adultério, levantar falso testemunho etc.
Vimos também que Jesus, quando veio ao mundo, aboliu as duas outras categorias de lei. A primeira, da qual já discorremos, são as leis judiciárias e civis, que diziam respeito à organização política e social do povo de Israel. Entendemos que, no Novo Testamento, o povo de Deus está presente em várias nações, vivendo sob vários regimes e leis. Percebemos que, na polis, nas organizações políticas deste mundo, precisamos ser “sal da terra e luz do mundo”, munidos do Evangelho e da graça de Deus para transformarmos essas realidades concretas em realidades mais justas.
A terceira categoria, da qual falaremos agora, são as leis religiosas ou de culto. Referem-se a uma série de prescrições contidas no Antigo Testamento a respeito, por exemplo, da circuncisão, do sacrifício de touros, carneiros e bodes, de como deveria ser construído, em detalhes, o Templo de Jerusalém, da organização do sacerdócio levítico. Essas leis também foram abolidas.
Nós, cristãos, católicos, não precisamos mais seguir a circuncisão. Também não precisamos mais seguir as leis relativas aos animais impuros: ao contrário do povo de Israel naquela Aliança, nós podemos comer porco e peixes de couro — nós, cuiabanos, comemos pintado, por exemplo.
Ora, o que Jesus está começando a revelar neste Evangelho? A chegada do Esposo. Os discípulos de João e os discípulos dos fariseus seguiam, naturalmente, todos aqueles preceitos do Antigo Testamento. Agora, porém, como diz a Carta aos Hebreus (cf. Hb 5,1-10), nós temos um novo, sumo e eterno sacerdote, que veio abolir parte daquilo que tinha sido colocado no Antigo Testamento. Jesus preservou uma série de leis, como os Dez Mandamentos, e instaurou outras novas leis, como as leis dos sacramentos.
Portanto, podemos resumir dizendo que parte do Antigo Testamento não vale mais, e outras — como os Dez Mandamentos — seguem como antes. Jesus veio instaurar as leis necessárias para um novo tempo, o tempo da Igreja e seus sacramentos. Antes, não havia a Eucaristia. Com Jesus instituindo este sacramento, Ele determina as leis que lhe são próprias: é necessário ter pão, vinho, um sacerdote ordenado etc. Tudo isso faz parte da organização do culto do novo povo de Deus. A circuncisão não é mais necessária, mas agora há o Batismo. E como é obtido o perdão dos pecados? Não mais através do sacrifício de bodes e carneiros: Cristo morreu na Cruz e ofereceu o único e necessário sacrifício, que é renovado em cada Santa Missa.
Todas essas coisas foram instauradas agora neste tempo da Igreja, o tempo do Novo Testamento, que se inicia com a primeira vinda de Cristo até a sua segunda vida. E essas leis também serão abolidas quando Jesus voltar, porque no Céu os sacramentos não serão mais necessários, pois veremos Deus face a face.
Estamos expondo esses detalhes de forma bem sistemática, pois é importante termos as ideias claras. Isso é necessário para que, ao lermos o Evangelho, tenhamos a chave de leitura do que Jesus está nos dizendo. Uma vez entendido o porquê dessa diferença entre as leis da Antiga e da Nova Aliança, vamos reler o Evangelho para tirarmos frutos para a nossa vida prática.
Uma vez que está mais claro o que Jesus fez, o que ele está nos dizendo sobre o que era o jejum no Antigo Testamento? Naquele tempo, o jejum fazia parte daqueles sacrifícios ineficazes, que consistiam numa forma de “paliativo” instituído por Deus temporariamente, e que a vinda de Cristo viesse resolver o problema definitivamente. Imagine uma pessoa que está com uma infecção, precisando tomar antibiótico e, por isso, apresenta uma febre alta. Ela então toma um paliativo: um medicamento para baixar a febre — que aliviará este sintoma, mas não resolverá o problema. Analogicamente, podemos dizer que isso foi o culto do Antigo Testamento.
Os sacrifícios, o culto da Velha Aliança, foram uma solução provisória apresentada por Deus, que não resolvia radicalmente o problema da humanidade. Tanto é que os sacrifícios precisavam ser oferecidos constantemente, pois não eram suficientemente eficazes. Mas então finalmente veio o sacrifício de Cristo, veio o Esposo. Nesse sentido, jejuar, no Antigo Testamento, era a tentativa do homem de boa vontade, inspirado por Deus, de oferecer algo a Ele, mesmo que inadequado e insuficiente. E o motivo é que, para que houvesse um verdadeiro sacrifício, um jejum no Antigo Testamento que fosse eficaz, nós precisaríamos de um coração novo: santo, capaz de amar. Mas a humanidade ainda estava prisioneira de seu próprio egoísmo.
A Profecia de Ezequiel diz: “Eu vos darei um coração novo e porei em vós um espírito novo. Tirarei de vosso corpo o coração de pedra e vos darei um coração de carne” (Ez 36,26). Esse novo coração é Jesus, é o Esposo! Ele veio para se unir ao nosso coração como o Esposo se une à mais amorosa das esposas. Ele veio, Ele é o nosso coração — as pessoas apaixonadas não dizem isso umas para as outras? “Ai, meu coração, não faz isso.” Por quê? Porque é como se não tivéssemos um coração próprio. O coração torna-se da outra pessoa, que nos “roubou o coração”. A pessoa apaixonada sente-se apenas como um pedaço de quem realmente é quando está longe de quem ama.
Jesus é o Esposo, Ele é o nosso coração, longe de Nosso Senhor não temos coração. Mas, uma vez que estamos unidos a Jesus, o Esposo, a esse novo coração, agora nós podemos jejuar. Não estamos mais, como no Antigo Testamento, tentando oferecer um sacrifício ineficaz. Agora, o nosso jejum significa outra coisa: é a nossa forma de nos unirmos ao sacrifício de Cristo na Cruz.
Quem ofereceu o verdadeiro e definitivo sacrifício? Cristo, na Cruz. Quem nos proporcionou a verdadeira redenção? Não mais o sangue de bodes e touros, não mais os holocaustos ineficazes: mas o Preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por isso, agora podemos jejuar, sabendo que aquele sofrimento pequenino do nosso jejum é uma forma de, amorosamente, nos unirmos ao nosso Esposo que, na Cruz, disse: “Isso é o Meu Corpo, entregue por vós.”
O que o Esposo faz? Ele entrega o seu corpo, num sacrifício de amor. Nós então nos unimos a Ele em sua Paixão. Então, em todo sacrifício que fizermos — jejum, vigílias, rezar de joelhos, dormir no chão, peregrinações, abstinências — devemos ter a consciência de que não somos nós mesmos que estamos nos salvando. Vejam a liberdade, o alívio que Cristo nos deu! Que grande peso nos foi tirado das costas! Não temos mais a necessidade de oferecer sacrifícios salvadores: agora oferecemos sacrifícios que nos unem ao único sacrifício salvador. Tudo que fazemos é tomar posse, nos unirmos com o coração a esse grande amor que Cristo realizou na Cruz — e, por isso, é bom e necessário jejuar.
Diante dessa luz, agora podemos ler o Evangelho de hoje tranquilamente, com ideias um pouco mais claras: “Os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando. Vieram perguntar a Jesus: ‘Por que os discípulos de João e os discípulos dos fariseus jejuam, e os teus discípulos não jejuam?’ Jesus lhes respondeu: (...) ‘Ninguém costura remendo de pano novo em roupa velha…’”
O que é o remendo novo? É o jejum do Novo Testamento, o jejum dos cristãos. E o pano velho? É a lei do Antigo Testamento, que precisa ser abolida. Não vamos continuar no sistema de sacrifícios do Antigo Testamento, achando que temos de matar touros e bodes ou fazer jejuns, pensando que é isso que vai nos salvar. O tecido novo, o vinho novo, é sabermos que Cristo morreu por nós. Ele se ofereceu de uma vez por todas, definitivamente — ephapax, como diz a Carta aos Hebreus, “uma única vez”. E nós, então, agora podemos oferecer sacrifícios de união com o sacrifício de Cristo. Somos conscientes de que não somos nós que nos salvamos, mas somos nós que tomamos posse da salvação que Ele conquistou para nós. Eis o vinho e os odres novos!
Era necessário continuar fazendo “as mesmas coisas”, mas de uma forma completamente diferente — vinho novo. Então, quem faz sacrifícios no Antigo Testamento faz com uma mentalidade, quem faz sacrifícios no Novo Testamento faz com outra. Quem está no Novo Testamento agora está unido a Ele, ao Esposo. É com o coração dele que jejuamos, que fazemos sacrifícios, cientes de que foram os sacrifícios, os jejuns e as penitências dele que nos salvaram.
Fazendo isso, estamos tomando posse e unindo-nos a Ele, como uma esposa amorosa se une ao seu esposo.
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