Na Idade Média, ele era reverenciado como “o Filósofo”. Seu pensamento fascinou professores e estudantes da Universidade de Paris e de outras escolas da Europa. Com toda a paixão que empregavam na busca pela verdade, os medievais entraram em debates sem fim sobre o que este filósofo pagão teria a dizer à cristandade. Hoje, as obras de Aristóteles podem não suscitar debates tão ardentes, mas a história de como um antigo pensador grego veio a influenciar o desenvolvimento da teologia católica é uma crônica envolvente de intrigas, disputas e controvérsias.

A história começa no Oriente Médio. Os cristãos na Síria conheciam os escritos de Aristóteles e os transmitiram ao mundo árabe islâmico, a partir do século VIII. Os árabes produziram dois notáveis comentaristas de Aristóteles: Avicena e Averróis. Mas a tarefa deles não foi fácil. Avicena confessou que leu a Metafísica quarenta vezes sem compreendê-la! Depois de memorizar o texto, um dia ficou boquiaberto com seu significado num lampejo de compreensão. Para comemorar, ele organizou um banquete e distribuiu presentes aos pobres. 

Outro notável comentarista de Aristóteles foi o pensador judeu Moisés Maimônides, que, como Averróis, nasceu em Córdoba, Espanha. A obra mais famosa de Maimônides foi o Guia dos Perplexos, que ele escreveu por temer que a ciência e a filosofia estivessem fazendo as pessoas perder a fé em Deus.

As notícias desta efervescência intelectual se espalharam da Espanha para Paris. As novas ideias vindas do Sul geraram muito entusiasmo entre os professores de filosofia. Até então, o filósofo grego Platão era quem mais influenciara o pensamento cristão. Os Padres da Igreja, especialmente Agostinho, foram inspirados pelas ideias platônicas. Aristóteles, por sua vez, era desconhecido em grande parte, exceto por suas obras sobre lógica, que o filósofo Boécio traduzira no início do século V. Na ocasião, porém, as outras obras de Aristóteles — como a Física, a Metafísica, a Ética e a Política (para mencionar só algumas) — “inundaram” rápido o Ocidente.

Platão e Aristóteles, no centro da famosa “Escola de Atenas”, de Rafael.

Esses livros foram traduzidos para o latim do árabe, que por sua vez foram traduzidos do sírio, e alguns deles podem ter sido traduzidos primeiro do persa. Assim, as versões latinas distavam duas ou até três línguas do grego original. Além disso, os comentadores islâmicos, sobretudo Averróis, interpretaram algumas coisas de Aristóteles de uma forma que tornava seu ensino aparentemente incompatível com a fé cristã. Então, surgiram discussões sobre Aristóteles: como poderia um filósofo pagão ensinar alguma coisa aos cristãos? 

A disputa girou em torno de questões como a imortalidade da alma, a criação do mundo e a natureza da mente. Segundo Averróis, a filosofia de Aristóteles negava a imortalidade pessoal, contradizendo a doutrina cristã da vida após a morte. Além disso, a afirmação de Averróis de que o mundo era eterno parecia negar que Deus o tivesse criado. Outro problema dizia respeito à ideia de uma mente universal. Averróis dizia haver apenas um intelecto, no qual os indivíduos tomariam parte, por não possuírem intelectos pessoais. Isso contradizia o ensinamento cristão sobre a alma, com as suas faculdades de inteligência e de vontade.

Em resposta a isso, foram emitidas algumas advertências eclesiásticas, proibindo o estudo das obras de Aristóteles. Em seu livro Escolástica, o autor Josef Pieper escreve: “Entre 1210 e 1263, houve uma longa sucessão de admoestações, restrições e proibições eclesiásticas dirigidas contra palestras públicas sobre Aristóteles em universidades”. Em 1231, o Papa Gregório IX estabeleceu uma comissão para examinar as obras de Aristóteles e indicar o que era ou não aceitável nos seus ensinamentos. Mas esse trabalho não chegou muito longe.

Duas frentes estavam começando a formar-se. De um lado, havia os que aceitavam com entusiasmo as obras de Aristóteles, mesmo naquelas coisas que pareciam ir contra a doutrina católica. Na Universidade de Paris, Siger de Brabante liderou este grupo. Mais tarde, eles seriam chamados de averroístas latinos por sua adesão a Averróis. Do outro lado, estavam os estudiosos mais prudentes, que viam o aristotelismo como fundamentalmente incompatível com a fé cristã. Em vez disso, eles favoreceram a tradição agostiniana inspirada em Platão. Boaventura estava neste grupo, embora também tivesse utilizado alguns elementos do pensamento de Aristóteles. E as coisas poderiam ter se arrastado assim, com os dois lados se digladiando, não fosse pela genialidade de um homem: Tomás de Aquino.

“Santo Tomás de Aquino”, por Carlo Crivelli.

Tomás sobressaía a todos, literal e figurativamente. A sua altura e constituição física faziam-no parecer um gigante, mas sua disposição tranquila e amigável deixava os outros à vontade diante dele. O Doutor Angélico nunca falou de si mesmo em seus escritos, mas podemos deduzir de sua leitura que ele deve ter sido uma pessoa equilibrada e sociável. Como escreveu na Suma Teológica (II-II 168 4c.): “É contra a razão ser pesado para os outros, não se mostrando nada agradável e ainda impedindo os divertimentos das outras pessoas… Os que não sabem se divertir… são chamados de inflexíveis e intratáveis” [i]. 

Quando jovem, Tomás ingressou na incipiente Ordem dos Pregadores. São Domingos, seu fundador, queria que os frades estudassem teologia a fim de pregarem com mais eficácia. Os dominicanos notaram a inteligência rápida do Aquinate e enviaram-no para os estudos superiores. Em 1252, ele começou a ensinar teologia na Universidade de Paris. E foi graças ao seu gênio, em grande parte, que a Igreja foi capaz de extrair o que havia de bom em Aristóteles e incorporá-lo à filosofia cristã

Tendo sido apresentado às obras de Aristóteles durante seus primeiros estudos em Nápoles, Tomás desenvolveu uma estima tão grande pelo autor grego que sempre se referia a ele como “o Filósofo”. O santo já conhecia a obra de Aristóteles quando chegou a Paris. Uma vez lá, ele tomou conhecimento da polêmica que se formava e estudou mais profundamente para ver onde estava a verdade. Além de lecionar na universidade, começou a escrever comentários sobre as obras de Aristóteles. Não sabendo grego, teve de usar versões latinas, mas conseguiu usar traduções mais recentes, feitas diretamente do grego para o latim. Um colega dominicano, Guilherme de Moerbeke, iniciara essas traduções a pedido do Papa Urbano IV.

O Aquinate não caiu em nenhum dos dois campos opostos, embora fosse frequentemente atacado por ambos os lados. Ele ficou intrigado com as ideias de Aristóteles e viu quantas delas poderiam ser usadas no desenvolvimento de uma filosofia cristã, mas também não tomou o lado de Aristóteles tão completamente a ponto de não conseguir enxergar as inadequações do seu pensamento. Santo Tomás não seguiu servilmente o grego, mas usou-o como base para desenvolver sua própria síntese de filosofia. De uma forma altamente original, ele usou elementos da doutrina de Aristóteles para iluminar a teologia cristã.

O Doutor Angélico examinou atentamente o pensamento de Aristóteles e distinguiu-o dos erros dos comentaristas árabes. Num pequeno trabalho intitulado De æternitate mundi contra murmurantes [“Sobre a eternidade do mundo contra os murmuradores”], reafirmou a doutrina da fé cristã de que o mundo não é eterno. E mesmo que assim fosse, como pensava Aristóteles, o Aquinate mostrou que nem isso eliminaria a necessidade de um Criador. O mundo ainda teria de ser criado por não conter em si razão suficiente para a própria existência. Toda a questão estaria em definir “se repugna à inteligência que algo tenha sido criado por Deus e, por outro lado, exista desde sempre” [ii]. Tomás demonstrou que não, esclarecendo assim uma das principais objeções a Aristóteles.

“Aristóteles com um busto de Homero”, por Rembrandt.

O trabalho do santo abriu caminho para um melhor uso e compreensão dos ensinamentos de Aristóteles, mas a controvérsia ainda persistiu. Em 1277, três anos após a morte do Aquinate, o bispo de Paris Stephen Tempier condenou certas proposições que estavam sendo ensinadas na época. Isso foi dirigido contra os averroístas latinos, mas também incluiu algumas ideias extraídas do Aquinate. No fim das contas, o bispo agiu de modo precipitado e o Doutor Comum foi inocentado com justiça.

Santo Tomás de Aquino foi canonizado em 1323, e os defensores dominicanos de seus ensinamentos garantiram uma vitória para a causa do aristotelismo cristão. Este movimento ficou conhecido como Escolástica. Continuou a exercer grande influência até a época da Renascença e da Reforma, quando uma reação contra Aristóteles se instalou em toda a Europa. Dos séculos XIV ao XVIII, os movimentos humanistas e científicos deixaram o aristotelismo de lado em favor de novas abordagens do pensamento. Ainda assim, Aristóteles nunca perdeu completamente a influência, pois alguns estudiosos continuaram a estudá-lo. Conforme observa a Nova Enciclopédia Católica, “ainda em 1624, o Parlamento francês ameaçava de morte todos os que ensinassem algo contrário à sua doutrina”.

Aristóteles foi estudado especialmente nos círculos católicos. Na época do Concílio de Trento, o estudo da filosofia a partir de Santo Tomás (conhecido como tomismo) foi renovado juntamente com sua base em Aristóteles. Isto começou na Itália e floresceu em Portugal e na Espanha, nomeadamente na escola dominicana de Salamanca. Em 1879, o Papa Leão XIII encorajou novamente o estudo do tomismo na encíclica Æterni Patris. Isso ajudou a estimular a neoescolástica que se desenvolveu no século XX com filósofos como Jacques Maritain e Étienne Gilson. Embora o interesse por Tomás e Aristóteles tenha diminuído após o Concílio Vaticano II, nos últimos anos ele voltou a aumentar. Por exemplo, uma renovação da teologia moral está a ser levada a cabo por pensadores como Germain Grisez e John Finnis, que não só voltaram ao que Tomás e Aristóteles disseram sobre o direito natural, mas estão a desenvolvê-lo ainda mais numa perspectiva moderna [iii]. 

Desde a sua pequena escola em Atenas, Aristóteles nunca poderia ter previsto o impacto que o seu pensamento teria na civilização ocidental. Através da influência decisiva de Santo Tomás, ele “ganhou o Ocidente”, não com exércitos batalhando entre si, mas com a força mais poderosa conhecida na história: as ideias.

Notas

  1. Est autem contra rationem ut aliquis se aliis onerosum exhibeat, puta dum nihil delectabile exhibet, et etiam delectationes aliorum impeditIlli autem qui in ludo deficiunt… dicuntur duri et agrestes.
  2. Utrum in his duobus repugnantia sit intellectuum, quod aliquid sit creatum a Deo et tamen semper fuerit.
  3. É importante levar em conta que este texto foi publicado, originalmente, no dia 9 de janeiro de 1998.

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