Há uma lenda negra em curso: a de que o Papa Pio XII teria sido conivente com os crimes perpetrados pelos nazistas em meados do século XX.
Essa mentira nasceu de uma peça teatral, produzida por Rolf Hochhuth, no ano de 1963, de nome "O Vigário" (Der Stellvertreter, em alemão). Nela, Eugenio Pacelli é retratado como um homem pusilânime e covarde diante da deportação de judeus para campos de concentração. A obra de Hochhuth inspirou o filme Amen (Costa-Gavras, 2002). No decorrer da trama, um padre jesuíta tem pressa para falar com o Papa, para pedir a ele que se manifeste com mais veemência a favor dos judeus e contra o Holocausto. O clérigo é recebido com frieza pela personagem de Pacelli, que se limita a dizer que o coração do Pontífice sangra pelas vítimas do Holocausto... e nada mais.
O auge da difamação acontece em 1999, com a publicação de "O Papa de Hitler" (The Hitler's Pope). Mesmo que o seu autor, John Cornwell, tenha admitido que, ao escrever a dita biografia, "faltou equilíbrio" de sua parte[1], o mito permanece e não são poucos os acadêmicos que recorrem a todas estas obras mentirosas para acusar a Igreja de conluio com Hitler.
Os fatos, porém, são outros. Hoje, sabe-se que tanto barulho em torno da figura de Pacelli não passou de um plano arquitetado pela KGB para desacreditar a Igreja Católica[2]. Além disso, ainda que Pio XII tenha preferido a estratégia de ações concretas para poupar a vida de milhares de judeus, não é correto falar que o Pontífice tenha se "silenciado" diante da iniquidade que se passava na Alemanha.
A ação de Eugenio Pacelli contra o nazismo começa ainda no pontificado de Pio XI, quando ele era secretário do Estado do Vaticano. Em 1937, foi ele quem escreveu grande parte da famosa encíclica Mit Brennender Sorge ("Com ardente preocupação"), condenando os erros do nazismo. "Naquele tempo, Pio XI estava gravemente doente e lembro-me de [que] ele reteve o texto de Pacelli durante dois dias, corrigindo-o só levemente e assinando-o, depois. Portanto, esta encíclica que mostrava o verdadeiro rosto do nazismo, foi obra do cardeal Pacelli", conta o padre Roberto Leibier, colaborador de Pio XII[3].
A carta foi lida integralmente, durante a Missa, em mais de 11 mil igrejas da Alemanha. Suas palavras eram duras: "Só espírito superficiais podem cair no erro de falar de um Deus nacional, de uma religião nacional, e empreender a louca tentativa de encerrar Deus, criador do mundo, nos limites de um só povo e na estreiteza étnica de uma única raça". E ainda: "As leis humanas que estão em contraste insolúvel com o direito natural, estão feridas de vício original, não sanável nem com coações nem com desdobramento de força externa"[4].
Os nazistas tinham entendido a mensagem de Roma. Ainda que a carta de Pio XI em nenhum momento usasse as palavras "nazismo" ou "judeus", o órgão oficial da SS – a organização paramilitar ligada ao Partido Nazista – qualificara a encíclica como "um insulto à nova Alemanha". Também Hitler reagiu à ousadia da Igreja, no 1º de maio daquele mesmo ano: "Não podemos suportar que esta autoridade, que é a autoridade do povo alemão, seja atacada por quem quer que seja. Isto vale para todas as Igrejas. Enquanto elas se ocupam dos seus problemas religiosos, o Estado não se preocupa com elas. Mas, quando elas tentam, através de medidas de todo o gênero, com escritos, encíclicas, etc., atribuir a si mesmas direitos que competem exclusivamente ao Estado, nós reprimi-las-emos (...). Da moralidade do Estado e do povo alemão tratarão os dirigentes do Estado alemão".
A represália dos dirigentes do Partido Nazista foi grande. A imprensa católica foi suprimida e processos contra clérigos católicos ressuscitaram das cinzas. Quando o Papa Ratti faleceu e Pacelli foi eleito, ele sabia da responsabilidade que tinha diante de si, do perigo que corriam não só os judeus, mas os próprios católicos alemães. Se uma mensagem com expressões indiretas causara tamanho rebuliço, uma condenação mais direta poderia causar uma verdadeira tragédia.
Mesmo consciente disto, Pio XII não se calou. Mal assumira o trono de Pedro, Pio XII condenou "a premeditada agressão a um povo pequeno, trabalhador e pacífico, com o pretexto de uma ameaça que nem existe nem é querida e nem sequer é possível" e pediu o respeito "às verdadeiras necessidades e às justas exigências das nações e dos povos, como também das minorias étnicas", fazendo clara alusão ao povo judeu[5].
Quando o exército alemão invadiu os países baixos, novamente o Pastor Angelicus levantou a sua voz. Enviou telegramas aos soberanos da Holanda, da Bélgica e de Luxemburgo, deplorando as ações bélicas nazistas perpetradas "contra a sua vontade e o seu direito". De novo, as atitudes do Papa não agradaram nada às potências do Eixo. O texto das mensagens diplomáticas foi publicado por L'Osservatore Romano e "os ardinas do jornal vaticano foram maltratados tal como foram agredidos todos os que foram vistos com um exemplar do diário"[6].
Em dezembro de 1940, Pio XII oferece socorro aos refugiados da guerra e decide nominar diretamente os judeus. "Nem menor conforto é para nós ter tido condições de consolar, com a assistência moral e espiritual dos nossos representantes e com o óbolo dos nossos subsídios, um número enormíssimo de refugiados, de expatriados e de emigrantes, também entre os de estirpe semita..."[7].
As manifestações do Santo Padre não param aí. Nas grandes radiomensagens natalícias de 1941 e 1942, o Papa Pacelli não poupou tinta para condenar a totaler Krieg ("guerra total") de Hitler e "o conceito que reivindica para certas nações, raças ou classes o instinto jurídico, como último imperativo e norma sem apelação"[8]. Era uma denúncia direta do ódio pregado pelos orgulhosos advogados da "raça ariana", os nazistas.
Um fato particularmente curioso da vida de Pacelli ilustra sua inconformidade visceral com os projetos de Adolf Hitler. De acordo com a sua fiel serviçal, a irmã Paschalina Lehnert, Pio XII estava convencido, ainda nos tempos de nunciatura em Berlim, de que Hitler "estava completamente possesso"[9]. Tudo leva a crer que estas palavras devem ser lidas em seu sentido literal. Um de seus sobrinhos conta que "Pio XII teria até o hábito de rezar, durante a guerra, orações de exorcismo para tentar expulsar o diabo da alma de Hitler"[10].
Papa de Hitler? Pode-se até questionar a ação diplomática de Pio XII em tempos de guerra: se poderia ter sido mais prudente ou mais enfático, se poderia ter se pronunciado mais ou dito menos... Porém, falar de "silêncio" ou pior, de pacto com Hitler, é aderir à tática suja de quem usa qualquer pedaço de pau para bater na Igreja Católica. O Pastor Angelicus manifestou-se várias vezes em favor da vida dos inocentes e contra as arbitrariedades ideológicas dos partidários nazistas.
Isto não é apologia de católico papista; é apenas história.
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