A única província brasileira com nome de mulher homenageia, para a maior parte dos católicos hoje, uma ilustre desconhecida. Isso porque o estado de Santa Catarina não se refere nem à italiana Catarina de Siena, nem à francesa Catarina Labouré, da Medalha Milagrosa (que sequer existia em 1526, quando se batizou o lugar), mas a uma egípcia, virgem e mártir: Santa Catarina de Alexandria

Mas, se foram os europeus que nos colonizaram, por que batizaram o estado brasileiro com o nome de uma santa africana? Quem foi esta Santa Catarina, afinal?

História de Santa Catarina

Segundo a Legenda Áurea e os outros relatos biográficos à disposição, tratou-se de uma jovem mulher de ascendência nobre, bem educada nas artes liberais e que, com sua pouca idade, já a muitos superava em conhecimento. Na infância, ela teria visto a si mesma casando com Nosso Senhor: apareceu-lhe o Menino Jesus e pôs-lhe no dedo uma aliança. Esse matrimônio místico prefigurava a participação de Catarina na Paixão de Cristo, seu Esposo.

Por volta do ano 305, quando o Imperador Maximino começou a perseguir os cristãos, Catarina resistiu a ele com coragem e inteligência. Sentindo-se insultado, mas ao mesmo tempo incapaz de responder a seus argumentos, Maximino a encarcerou e convocou dezenas de filósofos para debater com ela. Catarina não se intimidou: respondeu brilhantemente às objeções deles e ainda ganhou uma multidão para Cristo. Depois, juntaram-se aos convertidos a própria esposa de Maximino e o comandante de suas tropas, Porfírio. Todos foram mortos por ordem do imperador.

Vendo que suas chantagens não tinham poder algum sobre a jovem, Maximino condenou Catarina a um suplício especial: rodas com serras de ferro e pregos pontiagudos moeriam todo o seu corpo, deixando o exemplo aos outros cristãos. À vista de todos, porém, o cruel instrumento de execução foi quebrado pela oração da santa e, como resultado, ainda mais conversões aconteceram. Tomado de ódio ainda maior, o imperador mandou enfim que a menina fosse decapitada

A tradição conta que, depois de sua morte, Catarina teve o corpo transportado por anjos e depositado no Monte Sinai — dado que constava na oração Coleta de sua festa até a reforma litúrgica pós-conciliar: 

Deus, qui dedísti legem Móysi in summitáte montis Sínai, et in eódem loco per sanctos Angelos tuos corpus beátæ Catharínæ Vírginis et Mártyris tuæ mirabíliter collocásti: præsta, quæsumus; ut, ejus méritis et intercessióne, ad montem, qui Christus est, perveníre, valeámus: Qui tecum vivit et regnat... — Ó Deus, que destes a Lei a Moisés no alto do monte Sinai, e que milagrosamente colocastes nesse mesmo lugar, por intermédio dos anjos, o corpo da bem-aventurada Catarina, fazei que, pelos seus merecimentos e intercessão, possamos subir também àquele monte que é Jesus Cristo, que convosco vive e reina… [i]

No século VI, o imperador bizantino Justiniano mandou construir no sopé do Sinai um monastério. Dedicado inicialmente à Transfiguração do Senhor, o lugar receberia no século IX o nome de Santa Catarina, pois foram seus monges que descobriram suas relíquias, com o cabelo ainda crescendo e um óleo milagroso a emanar de seus ossos. Desde então, o local se tornou alvo frequente de peregrinações.

“O transporte milagroso do corpo de Santa Catarina de Alexandria até o Sinai”, por Karl von Blaas.

Amigos de Santa Catarina

Foi justamente com o retorno dos cruzados da Terra Santa, nos séculos XII e XIII, que o culto à santa se espalhou em toda a Europa, aumentando o número de seus devotos. Os padres começaram a benzer o óleo extraído do corpo da santa, usando-o como remédio para artrite, asma e úlceras de pressão. Os fiéis assolados pela Peste Negra, no século XIV, invocavam-na como um dos “quatorze santos auxiliares” contra a doença e a morte repentina.

Sua condenação inicial ao suplício pelas rodas, retratada com frequência na arte, tornou-a padroeira de todos os profissionais ligados a esse instrumento: carpinteiros, costureiras, tecelões, moleiros, alfaiates e oleiros. Sua instrução e conhecimento fizeram também advogados, oradores, filósofos, teólogos e estudantes em geral pedir a sua proteção. Pelo modo como morreu, Catarina também passou a ser invocada contra dores de cabeça, enxaquecas e tumores cerebrais; e por seu matrimônio virginal com Cristo, viu-se nela uma protetora especial da pureza e também uma arranjadora de casamentos. Até contra naufrágios os navegantes e marinheiros recorriam à santa, talvez por nenhum outro motivo senão sua fama de forte intercessora.

Catarina também ajudou outros santos ao longo da história. 

“Santa Catarina de Alexandria”, por Caravaggio.

Santa Gertrudes, a Grande (1256–1302), tinha um amor especial pela santa de Alexandria, desde a infância. Ao perguntar uma vez a Jesus quão grandes eram os méritos de Catarina, Nosso Senhor mostrou-lhe numa visão “um trono tão elevado e magnífico que, se não houvesse no céu rainha maior, a glória desta pareceria suficiente para o encher completamente” [ii].

Ela também apareceu com Nossa Senhora ao Beato Reginaldo de Orleans (1180–1220) e a São Domingos (1170–1221), razão pela qual também os dominicanos a elegeram como padroeira especial. Uma terciária homônima da Ordem, a propósito, ficou sabendo de seus esponsais místicos com Nosso Senhor, rezou quando criança para gozar da mesma sorte e foi atendida, aos 21 anos. Assim como os esponsais da virgem de Alexandria a prepararam para o martírio, os da virgem de Siena a prepararam para receber as chagas de Cristo em seu corpo. Assim se associaram intimamente Santa Catarina de Alexandria e Santa Catarina de Siena (1347–1380).

Enfim, entre as vozes celestiais que conduziram por sete anos Santa Joana d’Arc (1412–1431), até que ela tomasse a peito a missão de sua vida, estavam São Miguel, Santa Margarida de Antioquia e… Santa Catarina de Alexandria. Perguntada, no curso do processo eclesiástico que levou à sua condenação, se via o arcanjo e as santas de maneira corporal e real, a donzela de Orleans respondeu com toda naturalidade: “Quando nos juntávamos, eu as sentia e as tocava… Via ambas com meus olhos corporais como vos vejo a vós; e quando se retiravam, eu me punha a chorar, pois queria que me levassem com elas a seu Paraíso…” [iii]

Mas não foi só nas vidas destas santas mulheres que Catarina deixou suas marcas. Por sua popularidade, principalmente na Idade Média, a santa de Alexandria também influenciou bastante a cultura. Sua festa litúrgica, em 25 de novembro, pouco a pouco foi sendo celebrada com cada vez mais solenidade, e o povo também a festejava fora das igrejas, como uma espécie de “carnaval” a preceder o tempo mais austero do Advento. Na arte, foram inúmeros os pintores a retratá-la, como Caravaggio, Guido Reni, José de Ribera e Guercino; e na literatura sacra pelo menos Bossuet e Pe. Antônio Vieira dedicaram a ela sermões e panegíricos.

Devoção a Santa Catarina hoje

Diante de todo esse fenômeno de piedade ao redor de Santa Catarina, por que quase não ouvimos mais falar dela hoje em dia? Como ela saiu dos altares das igrejas, do imaginário popular e do próprio calendário litúrgico, e acabou caindo no esquecimento?

A resposta deve ser procurada numa busca sincera das autoridades eclesiásticas pela verdade histórica, em resposta principalmente aos protestantes, que atacavam o culto aos santos e mártires visando minar a credibilidade da Igreja.

“O Martírio de Santa Catarina”, por Guercino.

Não são de hoje essa investigação e preocupação legítimas: no auge da Contrarreforma, o Cardeal Barônio foi encarregado pelo Papa de corrigir as vidas dos santos no Breviário e no Martirológio — trabalho criterioso ao qual o ofício de Santa Catarina sobreviveu intacto (aparentemente, contra o conselho de São Roberto Belarmino).

Entenda-se bem: não há por que duvidar da existência de Santa Catarina — assim como a crítica moderna (a honesta, não a ateia) não questiona que São Valentim, São Jorge ou São Cristóvão tenham existido. 

No entanto, pela época remota em que se deram os martírios desses santos, é óbvia e praticamente impossível obter dados convincentes que comprovem a exatidão minuciosa dos registros que contam as suas vidas. Em sua maioria, os relatos biográficos em questão foram compostos muito tempo depois dos fatos que registram, e a tradição oral ao longo dos séculos certamente acrescentou muitos elementos aqui e ali, ao mesmo tempo deixando passar outros, de maior importância [iv]. Como resultado, sobre esses santos sabemos muitas vezes o quê, mas quase sempre sem poder assegurar o como.

Por outro lado, também não é honesto tachar simplesmente de fake news os relatos antigos da vida dos santos — por exemplo, a Legenda Áurea — como se nossos ancestrais tivessem simplesmente “inventado fantasias” para enganar a si mesmos e às gerações futuras. Não, foi antes com o intuito de instruir e edificar que essas histórias foram escritas, e o fato de ter sido um bem-aventurado a compô-las — o Beato Tiago de Varazze — já deveria nos dizer muito a esse respeito. Não estamos falando de “artigos de fé”, mas estas “pontes” entre os cristãos medievais e o passado alimentaram a piedade dos fiéis cristãos por séculos e foi inclusive atravessando várias delas que Santo Inácio de Loyola se converteu, deixou o mundo e veio a fundar depois a sua Companhia de Jesus. (Sim, o livro da conversão de Santo Inácio foi nada menos que a Legenda Áurea.)

Além disso, quanto do moderno “rigor científico” para com os santos antigos não parte de puro “preconceito” e “ceticismo” contra os milagres e o sobrenatural? 

“Os Esponsais Místicos de Santa Catarina de Alexandria”, por Anthony van Dyck.

Por exemplo: se os milagres narrados no Antigo Testamento e no Evangelho aconteceram de fato — como devemos crer —, não deveríamos estar abertos também, ao menos a priori, à possibilidade de que maravilhas iguais ou até maiores se repetissem nas eras subsequentes à vinda de Cristo? Não foi o que Jesus profetizou aos seus discípulos quando disse: “Aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço, e fará ainda maiores do que estas” (Jo 14, 12)? 

Não dizemos que se deva dar crédito a tudo que consta nas hagiografias antigas, mas também não podemos, como tantos críticos e teólogos modernos fazem, excluir de pronto a possibilidade de que esses milagres extraordinários tenham acontecido (com sejas quais forem as nuances que se devam dar). Afinal, se nada disso é sequer possível, os primeiros edifícios a cair não são as capelas de São Cristóvão ou as estátuas de São Jorge, mas a própria Revelação divina, que inclui desde a travessia do Mar Vermelho até a Ressurreição de Nosso Senhor. — Sim, pois — perguntemos diretamente — se Deus pôde abrir o mar para o seu povo passar a pé enxuto, por que não poderia destruir também a roda preparada para triturar a carne de Santa Catarina de Alexandria? 

Seja como for, o fato é que na reforma litúrgica de 1969 a Igreja removeu a memória de Santa Catarina do calendário romano geral. A explicação dada fôra a seguinte: “Não só a paixão de Santa Catarina é completamente fabulosa, mas da própria pessoa de Catarina não há nada de certo que se possa afirmar” [v]. Aparentemente, São João Paulo II não concordava com a decisão dos reformadores: em 2002, seja por um aceno ecumênico aos ortodoxos, seja por uma devoção pessoal à padroeira dos filósofos, Karol Wojtyla pôs a santa de volta no Missal Romano, no mesmo dia 25 de novembro, dando à Igreja universal a faculdade de celebrar novamente a sua memória. 

O ato do Papa polonês nos lembra que uma devoção e influência de séculos não se apagam do dia para a noite. No Brasil mesmo, ninguém pensa em mudar de nome o estado de Santa Catarina (muito embora tenham “desterrado” Nossa Senhora da capital). Na verdade, à medida que os católicos redescobrem sua tradição e história, a tendência é que esses santos voltem cada vez mais à tona — com suas biografias, para povoar o imaginário dos nossos filhos, e com sua intercessão, para levar nossas preces e súplicas até o trono de Deus.

Referências

  1. Missal Romano Quotidiano, por D. Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de S. André. Trad. dos Monges Beneditinos de Singeverga. Bruges: Biblica, 1963, p. 1389.
  2. Dom Prospero Gueranger, El Año Litúrgico, Tomo V. Burgos: Editorial Aldecoa, 1956, p. 916.
  3. Marie de la Sagesse Sequeiros, Santa Joana d’Arc: a cristera francesa. Rio de Janeiro: Centro Dom Bosco, 2020, p. 46.
  4. “Embora os hagiógrafos contemporâneos encarem a autenticidade dos vários textos que contam a história de Santa Catarina como mais do que duvidosa, não se pretende com isso lançar nem mesmo uma sombra de dúvida em torno da existência da santa. Mas a conclusão a que se chegou quando estes textos foram cuidadosamente estudados é que, se os principais fatos que formam o esboço devem ser aceitos como verdadeiros, a multidão de detalhes pelos quais estes fatos são quase obscurecidos, a maioria das maravilhosas narrativas com as quais são embelezados, e os longos discursos que são colocados na boca de Santa Catarina, devem ser rejeitados como invenções, puras e simples” (Léon Clugnet, “St. Catherine of Alexandria”. In: The Catholic Encyclopedia. Nova Iorque: Robert Appleton Company, 1908).
  5. Calendarium Romanum. Typis Polyglottis Vaticanis, 1969, p. 147.

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