Todos conhecem a história do Corcunda de Notre-Dame. Nos últimos anos, sobretudo depois do desenho animado da Disney, a obra de Victor Hugo é vendida mais com esse nome que com o de sua personagem principal — a Catedral de Notre-Dame, em Paris.

Sim, pode nos parecer estranho, mas Victor Hugo queria falar da catedral francesa, muito mais que de Quasímodo (embora, na apresentação que faz dele, o autor romântico o pinte como a “alma” da igreja parisiense). Não à toa o título original do livro é Notre-Dame de Paris, ou seja, “Nossa Senhora de Paris”. 

Há muito a dizer a respeito dessa obra, e de como ela literalmente salvou da ruína um dos símbolos mais belos e poderosos da arquitetura gótica cristã — e, no fundo, de toda a Idade Média. Mas o tempo pascal parece-nos propício para lembrar um outro fato, desconhecido de muitos: a razão pela qual o corcunda mais famoso do mundo tem o nome (estranho) de Quasímodo.

“Numa bela manhã de quasímodo…”

Victor Hugo apresenta assim a origem do corcunda: 

Dezesseis anos antes da época em que transcorre essa história, numa bela manhã de quasímodo, uma criatura viva fora depositada, depois da missa na igreja de Notre-Dame, no estrado de cama chumbado no adro, à esquerda da entrada, em frente a uma grande imagem de São Cristóvão [...]. Era nesse estrado que se costumava expor à caridade pública as crianças encontradas. Quem quisesse as pegava. Em frente ao estrado havia uma bacia de cobre para as esmolas.

A espécie de ser vivo que jazia nessa tábua, na manhã de quasímodo do ano do Senhor de 1467, parecia suscitar em alto grau a curiosidade do grupo considerável que se concentrara em torno do estrado. O grupo era formado em grande parte por pessoas do belo sexo, quase todas elas mulheres idosas [i].

Ora, o que seria essa “manhã de quasímodo” de que fala o autor, duas vezes?

A resposta encontra-se no Dicionário Caldas Aulete:

Quasímodo. s. m. || (liturg.) o domingo da Pascoela. F. lat. Quasimodo (palavras que começam o intróito da missa deste domingo).

Quasimodo, então, vem do intróito latino (que chamamos hoje “antífona de entrada”): Quasi modo géniti infántes, rationábile, sine dolo lac concupíscite, ut in eo crescátis in salútem, allelúia — “Como crianças recém-nascidas, desejai o puro leite espiritual para crescerdes na salvação, aleluia!” O trecho é tirado da Primeira Carta de São Pedro, capítulo 2, versículo 2. A associação entre o nome, portanto, e o infante deixado à porta da igreja, vem da própria liturgia.

Pascoela, por sua vez, é a Páscoa “menor”, a Oitava de Páscoa. Nesse mesmo dia litúrgico — vale lembrar —, em 1500, celebrou-se no Brasil a primeira Missa, conforme o registro de Pero Vaz de Caminha. Chamava-se assim porque a celebração da Ressurreição do Senhor se estende (ainda hoje) por uma semana inteira, como se fosse um único dia. Há, então, a Páscoa “maior” e a “menor”, a Páscoa de fato e a Pascoela

O pároco da Catedral de Notre-Dame, Claude Frollo, foi quem adotou Quasímodo e o batizou com esse nome,

seja porque quisesse marcar assim o dia em que o encontrara, seja por querer caracterizar com esse nome a que ponto a pobre pequena criatura era incompleta e apenas esboçada. De fato, Quasímodo, caolho, corcunda, torto, não era mais do que um quase [ii].

O autor de Notre-Dame de Paris faz aqui um trocadilho com a palavra “quase”. Mas a origem do nome deve ser buscada na liturgia católica mesmo. 

Ou seja, muito antes de ser o nome de uma famosa personagem de Victor Hugo, Quasímodo era o nome… de um domingo específico do ano — e por causa de uma Missa! 

Eis o nível de influência que tinha a Igreja na cultura: Victor Hugo não era católico e mesmo seu livro sobre Notre-Dame foi parar no famoso Index Librorum Prohibitorum — o “Índice de Livros Proibidos” pela Igreja. Mas ali estava ele, inserido numa cultura ainda católica, e tendo de se “render” a esses elementos para compor a sua obra literária (nem que fosse para criticar a própria Igreja e o celibato dos padres, como ele faz no livro).

Devolvendo o “Quasi modo” à liturgia

Hoje, infelizmente, os nomes que damos a certos domingos estão no mais das vezes restritos aos ambientes de Igreja (e às vezes nem isso, graças à pouca vivência de fé que têm os católicos): a Pascoela, por exemplo, hoje é a festa da Divina Misericórdia, instituída por São João Paulo II; o 4.º Domingo da Páscoa é chamado “do Bom Pastor”, pelo Evangelho que se proclama neste dia; os domingos mais famosos são os das festas mais importantes — Páscoa, Ascensão, Pentecostes e Assunção. Em geral, porém, os outros domingos se perdem nos mais de trinta “do Tempo Comum”, e num ciclo trianual de leituras dominicais que dificulta muito a criação de uma familiaridade com a divina liturgia [iii].

Seja como for, muitas coisas não são de nossa alçada; outras, porém, estão mais ao alcance de nossas mãos. 

As chamadas antífonas de entrada, por exemplo, não estão no Missal “de enfeite”. Ao falar da entrada do sacerdote para a celebração da Missa, a Instrução Geral do Missal Romano prevê o seguinte: 

47. Reunido o povo, enquanto entra o sacerdote com o diácono e os ministros, inicia-se o cântico de entrada. A finalidade deste cântico é dar início à celebração, favorecer a união dos fiéis reunidos e introduzi-los no mistério do tempo litúrgico ou da festa, e ao mesmo tempo acompanhar a procissão de entrada do sacerdote e dos ministros.

48. O cântico de entrada é executado alternadamente pela schola e pelo povo, ou por um cantor alternando com o povo, ou por toda a assembleia em conjunto, ou somente pela schola. Pode utilizar-se ou a antífona com o respectivo salmo que vem no Gradual Romano ou no Gradual simples, ou outro cântico apropriado à ação sagrada ou ao caráter do dia ou do tempo, cujo texto tenha a aprovação da Conferência Episcopal. 

Se não há cântico de entrada, recita-se a antífona que vem no Missal, ou por todos os fiéis, ou por alguns deles, ou por um leitor; ou então pelo próprio sacerdote, que também pode adaptá-la à maneira de admonição inicial.

Vejam a importância que a Igreja dá à antífona de entrada (antigo “intróito”). Ela é praticamente indicada como a primeira opção a usar na liturgia. Na Missa sem canto, sua recitação é até prescrita à assembleia ou ao sacerdote. Entretanto, quantas paróquias que você conhece têm o costume de usar esse texto inicial, previsto pelo próprio Missale Romanum

Esmeralda dá de beber a Quasímodo, por Luc-Olivier Merson.

Se houvesse esse costume, talvez nós associássemos mais facilmente o nome do Corcunda de Notre-Dame à Missa que acabamos de celebrar. Noutras palavras, o quasi modo estaria em nossas igrejas todos os anos. Como isso não acontece, perdemos a referência literária e permanecemos na ignorância. (Sem falar do nosso alheamento do tesouro da Igreja, que é de longe a perda mais significativa aqui.)

Graças a Deus, ótimas iniciativas têm surgido no âmbito do canto litúrgico para restaurar os textos tradicionais da liturgia ao seu lugar de dignidade — procurando fazer os ministérios de música cantarem a Missa, em vez de simplesmente cantarem nela. É o caso do projeto de edição bilíngue do Graduale Simplex (latim–português brasileiro), que já se encontra bastante avançado e à disposição na internet.

À medida que nossos ministérios de música redescobrem as pérolas do rito romano, subamos também nós com eles ao altar do Senhor, dispostos a aprender com nossos antepassados na fé o modo adequado de louvar a Deus em seu santuário.

(Sobre a conveniência de ler Notre-Dame de Paris: já se disse no decorrer do texto que Victor Hugo não era católico — o que, em tese, não o impediria de escrever bons livros; nesta obra em particular, porém, “a Igreja e os sacerdotes são apresentados negativamente em muitas ocasiões, como sendo hipócritas, e não se mostram imagens que equilibrem os juízos, com o que se transmite uma ideia depreciativa do celibato sacerdotal e da virgindade. Além disso, “em um capítulo se relata com detalhes uma cena bastante sensual”. Deve-se tomar bastante cuidado, portanto, com essa leitura, e decididamente não a recomendamos ao público infanto-juvenil.)

Notas

  1. Victor Hugo, O corcunda de Notre-Dame, trad. de Eduardo Brandão (cf. l. IV, c. 1: “As boas almas”). São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2018.
  2. Id. (cf. l. IV, c. 2 in fine).
  3. Exemplos que ilustram essa dificuldade: 1) O Sermão da Sexagésima, do Pe. António Vieira, precisaria de três versões diferentes na liturgia reformada pós-Vaticano II, pois as leituras deste domingo pré-quaresmal — que, aliás, nem existe mais no Novus Ordo — se alternariam ano após ano. 2) Os domingos da atual liturgia cujos Evangelhos sabemos de memória são justamente os que, não obstante a alternância entre os Sinóticos, proclamam sempre o mesmo episódio bíblico: é o caso do 1.º Domingo da Quaresma, que sempre narra as tentações de Jesus; do 2.º Domingo da Quaresma, que é sempre o da Transfiguração; e do 4.º Domingo da Páscoa, que é sempre o do Bom Pastor. Agora, arrisque um palpite (sem pesquisar na internet): qual será o Evangelho do 25.º Domingo do Tempo Comum este ano? Você dificilmente conseguirá acertar, mesmo participando da Missa todos os domingos ao longo de toda a sua vida!

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