Como todos os ritos antigos da Igreja, o rito romano tradicional está repleto de referências e alusões aos santos anjos e, mais do que isso, de orações a eles dirigidas, sobretudo se levarmos em conta o Asperges me e a oração a São Miguel Arcanjo. Citar todos esses belos textos, quanto mais comentá-los um a um, já seria o bastante para um longo artigo. Mas como o meu propósito aqui não é analisar os textos da Missa, senão oferecer uma introdução acessível sobre os anjos, deixarei de lado essa tentadora alternativa.
Não obstante, em sintonia com a antiga verdade segundo a qual legem credendi statuit lex orandi (ou, de forma mais concisa, lex orandi, lex credendi) [i], a melhor forma de começarmos é recordando algumas expressões litúrgicas da nossa fé.
A oração que se segue ao Asperges me pede ao Senhor: “Dignai-vos enviar do Céu o vosso santo anjo, para que guarde, sustente, proteja, visite e defenda todos os que se encontram nesta morada”. O Confiteor invoca São Miguel Arcanjo duas vezes, e na Missa solene o sacerdote benze o incenso durante o Ofertório com a seguinte oração: “Pela intercessão do bem-aventurado São Miguel Arcanjo, que está à direita do altar do incenso, e de todos os seus eleitos, digne-se o Senhor abençoar este incenso e recebê-lo qual suave perfume. Por Jesus Cristo Senhor nosso. Amém.” (Vale a pena recordar que, como o Confiteor é recitado três vezes — duas vezes no início, uma antes da comunhão —, na Missa solene se faz incensação e ao término da Missa rezada se recita a oração de São Miguel, o arcanjo chega a ser invocado sete vezes.)
A oração Munda cor meum baseia-se em Is 6, 6, passagem em que um serafim porta carvão incandescente [ii]. Como no relato da criação no Gênesis, o Credo niceno-constantinopolitano faz uma breve mas pungente menção ao mundo dos espíritos criados: Credo in […] factorem cæli et terræ, visibilium omnium et invisibilium, “Creio no […] criador do céu e da terra, de todas as coisas, visíveis e invisíveis”.
Lida em voz alta ou cantada, em toda Missa a referência mais conhecida aos anjos é o verso culminante do Prefácio, que, embora possa variar quanto à formulação, sempre aclama aos anjos como as principais vozes a entoar o Sanctus. Assim ouvimos no Prefácio da Santíssima Trindade: “[…] de tal modo que, ao proclamarmos a verdadeira e sempiterna divindade, nas pessoas adoramos a propriedade, na essência a unidade, na majestade a igualdade. É esta a quem louvam os anjos e arcanjos, os querubins e serafins, que não cessam nem um só dia de proclamar, repetindo a uma só voz: Santo, Santo, Santo é o Senhor, Deus dos exércitos” [iii].
Há uma misteriosa oração logo após a consagração: “Suplicantes vos rogamos, Deus onipotente, que façais que estas ofertas sejam levadas pelas mãos do vosso santo anjo ao vosso sublime altar, à presença de vossa divina majestade”. Entre os exegetas litúrgicos da Idade Média nunca houve pleno acordo sobre quem seria tal anjo. Alguns argumentaram que se trata de um anjo em sentido próprio, até mesmo São Miguel; outros, que se trata de uma referência simbólica a Cristo, “o Anjo do grande conselho”, como o chama Isaías num versículo da Septuaginta grega, introduzido em nossa liturgia no Intróito da terceira Missa de Natal, Puer natus est [iv]. (Santo Tomás prefere expor as duas interpretações, sem acrescentar mais nada [v].)
Além do que foi dito anteriormente, há referências indiretas e genéricas e, é claro, orações e leituras em homenagem aos anjos em certas festas [vi].
Os anjos no Antigo Testamento
Como deixa claro a etimologia da palavra (em grego, ἄγγελος; em latim, angelus, isto é, mensageiro), o termo “anjo” deve-se às missões para que Deus envia essas criaturas ao longo da história da salvação; mas a Sagrada Escritura também fala de “espíritos”, seres espirituais que servem diante do trono de Deus (cf. Is 6, 1-2; Ez 10; Ap 4, 5). “Louvai-o, vós todos os seus anjos, louvai-o, vós todos os seus exércitos!” (Sl 148, 2)
Embora o Gênesis não faça menção explícita à criação dos anjos, alguns Padres da Igreja veem uma referência a eles na criação da luz no primeiro dia (cf. Gn 1, 3). Como quer que se interprete o início do Gênesis, não há dúvida sobre a existência de anjos bons e maus, uma vez que as intervenções dele na história são evidentes desde o primeiro livro da Sagrada Escritura.
Quando Adão é expulso do paraíso, dois querubins são postos por Deus à entrada do Éden para impedi-lo de voltar (cf. Gn 3, 24); um anjo vai duas vezes a Hagar (cf. Gn 16, 7ss; 21, 17s); três anjos aparecem a Abraão (cf. Gn 18, 2.16); dois anjos visitam Lot (cf. Gn 22, 9-12); um anjo impede Abraão de sacrificar Isaac (cf. Gn 22, 9-12); anjos aparecem a Jacó em diferentes ocasiões (cf. Gn 31, 11.13; 32, 1s.23-28; num sonho, ele vê anjos a subir e a descer do Céu, cf. Gn 28, 12).
O Senhor promete que um anjo acompanhará o povo em sua jornada: “Eu enviarei o meu anjo, pra que vá adiante de ti, te guarde pelo caminho e te introduza no lugar que preparei” (Ex 23, 20). Um anjo leva comida a Elias no deserto (cf. 1Rs 19, 4-8). Lemos na visão de Ezequiel: “Estes são os mesmos seres vivos que vi debaixo do Deus de Israel, junto do rio Cobar; conheci que eram querubins” (Ez 10, 20), e na de Isaías: acima do trono do Senhor “estavam serafins […] que clamavam um para o outro, dizendo: Santo, Santo, Santo, é o Senhor Deus dos exércitos! Toda a terra está cheia da sua glória!”
Nas liturgias orientais e ocidentais, esse cântico tríplice dos serafins — Sanctus, ou Hino Triságio — é repetido em algum momento antes do início da Oração Eucarística. O Antigo Testamento como um todo mostra os anjos como mensageiros, guerreiros e guardiões enviados por um Deus misericordioso ao povo eleito ou a indivíduos privilegiados. Também vemos Satanás, príncipe dos anjos caídos, tentar enganar as almas e levá-las à perdição (cf. Is 14, 12-15; Jo 2, 1s).
Os anjos no Novo Testamento
O Novo Testamento revela que os anjos têm uma função ainda mais profunda na obra salvífica de Deus. “Porventura não são todos espíritos destinados a servir, enviados para exercer o seu ministério a favor daqueles que hão de receber a herança da salvação?” (Hb 1, 14).
O anjo Gabriel aparece primeiro a Zacarias para anunciar o nascimento de João Batista (cf. Lc 1, 11-19), e mais tarde, à Virgem Maria, com notícias da maravilha a ser nela realizada (cf. Lc 1, 26-35). Os anjos anunciam o nascimento de Cristo (cf. Lc 2, 8-14) e dizem a José que receba Maria por esposa, fuja para o Egito e volte a Israel depois da morte de Herodes (cf. Mt 1, 20; 2, 13; 2, 19s).
O demônio tenta Jesus no deserto, e anjos o servem depois de o demônio ir embora (cf. Mt 4, 11). No Horto de Getsêmani, um anjo conforta Cristo agonizante (cf. Lc 22, 41ss). Quando os guardas do Templo chegam para o prender, Jesus repreende Pedro: “Julgas porventura que eu não posso rogar a meu Pai, e que Ele me não porá aqui logo mais de doze legiões de anjos?” (Mt 26, 53). Uma legião romana constava de 4000 a 6000 soldados; cf. Ap 5, 11: “O número deles era de miríades de miríades e de milhares de milhares” de anjos. Anjos aparecem no sepulcro de Cristo ressuscitado para anunciar a ressurreição dele às mulheres (cf. Jo 20, 11ss).
Durante o seu ministério público, Jesus menciona os anjos diversas vezes. Os anjos encarregados de cuidar das crianças permanecem sempre na presença de Deus: “Vede, não desprezeis um só destes pequeninos, pois vos declaro que os seus anjos nos céus veem incessantemente a face de meu Pai, que está nos céus” (Mt 18, 10).
Segundo a interpretação tradicional deste e de outros textos, Deus confia cada ser humano a um anjo da guarda [vii]. No Juízo Final, os anjos acompanharão Jesus Cristo, “porque o Filho do homem há de vir na glória de seu Pai com os seus anjos” (Mt 16, 27), ensinamento reiterado por São Paulo: “Quando aparecer o Senhor Jesus [descendo] do céu com os anjos do seu poder, em uma chama de fogo” (2Ts 1, 7s).
Os anjos têm conhecimento dos assuntos humanos — um pecador que se arrepende é motivo de alegria para os os anjos de Deus (cf. Lc 15, 10) — e participam da glória do Céu com os eleitos: “Vós, porém, vos aproximastes da montanha de Sião e da cidade do Deus vivo, da Jerusalém celeste e da multidão de muitos milhares de anjos, da assembleia dos primogênitos, que estão inscritos nos céus” (Hb 12, 22s).
Jesus compara-se com a escada vista por Jacó: “Em verdade, em verdade vos digo: Vereis o Céu aberto, e os anjos de Deus subindo e descendo sobre o Filho do homem” (Jo 1, 51). O Filho e Palavra de Deus é aquele por quem e para quem todas as criaturas foram feitas, inclusive os anjos (cf. Col 1, 16ss; Jo 1, 3). É por meio de Cristo que Deus reconcilia consigo todas as coisas, “tanto as da terra como as do céu” (Col 1, 19s). Os anjos adoram a Cristo (cf. Hb 1, 6), que, ao assumir a natureza humana, “foi feito inferior aos anjos” para ser exaltado acima de toda a criação como Senhor de todos (cf. Hb 2, passim).
Em suas cartas, Paulo, assim como Pedro e Judas [viii], testemunha repetidas vezes a ação dos anjos bons e dos maus. Eles intervêm na história da Igreja primitiva, libertando da prisão os Apóstolos e (mais tarde) Pedro (cf. At 5, 18-23; 12, 6-11); dizem a Filipe que se dirija a Gaza (cf. At 8, 26) e a Cornélio que procure Pedro (cf. At 10, 3ss); ferem de morte Herodes Agripa I por causa de sua blasfêmia (cf. At 12, 21ss; trata-se do neto de Herodes [o Grande], que ordenou o massacre dos inocentes); confortam Paulo em sua pregação (cf. At 27, 22ss). Os anjos oferecem nossas orações a Deus (cf. Ap 5, 8; 8, 3ss; 12, 12-15). O arcanjo Miguel revela-se a João como o principal adversário de Satanás (cf. Ap 12, 7s) [ix], o que explica o costume de os católicos rezarmos a São Miguel para que ele nos defenda dos demônios.
A metafísica dos espíritos puros
Os anjos são espíritos puros, criaturas intelectuais desprovidas de matéria, mas capazes de organizá-la para formar um corpo temporário semelhante ao de um ser humano. Com isso, podem comunicar-se com os homens ou intervir “humanamente” numa dada situação, sem revelarem sua real natureza.
Por argumentos metafísicos pode-se demonstrar a existência necessária de um Ser espiritual supremo, Deus, causa eficiente, exemplar e final de todos os entes, dos quais é Criador e Senhor soberano. No entanto, como o homem, para chegar às causas últimas, deve necessariamente raciocinar com base nas coisas sensíveis, a Metafísica só pode demonstrar a possibilidade de existirem outros entes puramente espirituais, inferiores a Deus, possibilidade captada por quantos compreendem que o intelecto humano é imaterial e, consequentemente, incorruptível.
A perfeição do universo como um todo sugere ser conveniente que Deus tenha criado entes de todos os níveis: coisas materiais inanimadas (elementos e minerais), materiais animadas (plantas e animais), coisas materiais vivas dotadas de alma espiritual, ou intelectiva (o homem), e coisas vivas mas puramente imateriais (intelectos separados, ou anjos).
Embora a Igreja nunca tenha emitido um juízo definitivo sobre a “identidade” metafísica exata dos anjos, para a opinião mais provável — defendida por Santo Tomás de Aquino — cada anjo constitui uma espécie ou classe distinta, já que a matéria quantificada é o princípio de individuação dos entes compostos (só pode haver muitos indivíduos de uma mesma espécie graças à divisibilidade da matéria assinalada pela quantidade).
Além disso, segundo a interpretação de teólogos cristãos dos primórdios da Igreja, várias passagens da Sagrada Escritura indicam a existência de nove hierarquias ou grupos de anjos, a saber (dos mais inferiores entre eles aos mais elevados ou próximos de Deus): anjos (cf. Rm 8, 38s; 1Pd 3, 22), arcanjos (cf. 1Ts 4, 15; Jd 9), principados, potestades, virtudes, dominações, tronos (cf. Ef 1, 21; 3, 10; Rm 8, 38s; 1Pd 3, 22; Col 1, 16), querubins (cf. Gn 3, 24; Sl 17, 10s; Ez 10, passim) e serafins (cf. Is 6, 2). Os títulos são dados em razão de suas respectivas missões no mundo (por isso a hierarquia ínfima recebe um nome comum: “anjo” ou mensageiro) ou de alguma característica especial (os serafins são abrasados de amor, os querubins são perfeitamente iluminados pela luz divina etc.).
Sinal de que a existência de anjos está [de algum modo] ao alcance da razão natural é o fato surpreendente de muitos filósofos gregos (dentre os quais se destacam Sócrates, Platão e Aristóteles) terem admitido ou defendido a existência de entes imateriais intelectuais. (É conhecida a afirmação de Sócrates de ter sido impedido de consentir com a mentira ou a injustiça por inspiração de um dæmon, termo referente a algum tipo de espírito familiar, e não a um demônio, no sentido que atribuímos à palavra, apesar da semelhança de grafia.) Além disso, não há quase nenhuma religião na história da humanidade que não tenha reconhecido a existência de criaturas espirituais subordinadas a Deus, e como as religiões não cristãs possuem parcelas da verdade, apesar de mescladas com erros, esse testemunho quase universal tem relevância.
Em seu magnífico Ensaio sobre o Desenvolvimento da Doutrina Cristã, o Cardeal Newman observa que as crenças judaicas e cristãs sobre os anjos sofreram decerto influência de noções babilônicas sobre ministros angélicos, embora não haja por que se preocupar com tal genealogia. Na verdade, como diz C. S. Lewis, uma das provas mais convincentes da verdade da religião cristã é o fato de ela conter e superar de longe verdades vagamente prenunciadas nas religiões pagãs de diferentes povos e épocas.
Por outra parte, os que afirmam que os anjos não passam de uma forma “mitológica” de representar o modo transcendente de Deus interagir com a criação são incapazes de oferecer qualquer explicação razoável para o testemunho insistente e explícito da Sagrada Escritura. Nela, fala-se dos anjos como criaturas de Deus designadas para o servir e adorar. São seres pessoais (até nomes são revelados: Miguel, Rafael, Gabriel) a quem se atribui certa independência de ação (do contrário, nenhum anjo poderia ter se rebelado contra Deus, nem os anjos bons poderiam cuidar da salvação dos homens).
O Novo Testamento revela-nos uma vasta cosmologia, na qual os anjos têm lugar de destaque com respeito ao governo providencial dos assuntos humanos, à primeira e à segunda vinda de Cristo e à bem-aventurança eterna no Céu. Jesus fala abertamente dos anjos, e para os autores sagrados a presença deles na vida do Salvador e na Igreja nascente é um simples fato histórico.
O ceticismo quanto à existência dos anjos em alguns setores do cristinismo moderno e liberal origina-se da rejeição mais primária à ideia mesma de revelação sobrenatural. Por negarem a verdade sobre os anjos com a mesma contumácia com que negam a do nascimento virginal e a da ressurreição de Cristo, estes adversários devem ser convencidos primeiro da inspiração divina e da inerrância da Sagrada Escritura. Uma vez que se admite a veracidade da Bíblia e a autoridade da Igreja para interpretá-la legitimamente, torna-se impossível não admitir a existência e o ofício dos anjos.
Companheiros de adoração na liturgia celeste
A única resposta adequada diante de criaturas tão luminosas é de profunda veneração (virtude que Santo Tomás chama de dulia). Vemos ao longo da Bíblia como a aparição de um anjo provoca temor e respeito cheios de reverência.
Quando o príncipe da milícia celeste apareceu a Josué, este “caiu com o rosto por terra, prostrou-se e disse-lhe: ‘Que diz o meu Senhor ao seu servo?’” (Js 5, 13ss). Gideão temia perecer porque vira um anjo do Senhor face a face, tão grandes são sua majestade e poder; mas o Senhor o consolou: “A paz seja contigo; não temas, não morrerás” (Jz 6, 22s). Quando Rafael revelou quem era, Tobit e Tobias “ficaram fora de si, e, tremendo, caíram com o rosto em terra. O anjo disse-lhe: ‘A paz seja convosco, não temais’” (Tb 12, 16ss).
O mesmo temor tomou conta de Zacarias, e a mesma mensagem (“não temais”) foi pronunciada ao lhe aparecer um anjo no Templo para anunciar o nascimento de João Batista (cf. Lc 1, 11ss). As mulheres que foram até o sepulcro de Cristo ressuscitado se encheram de medo ao ver dois “homens” com vestes resplandecentes (cf. Lc 24, 4s). Naturalmente, jamais se deve prestar a um anjo culto de adoração (latria), devido unicamente a Deus. O anjo por cujo ministério São João recebeu visões apocalípticas lhe diz que adore apenas a Deus, pois “eu sou servo [de Deus] como tu, como teus irmãos, os profetas, e como aqueles que guardam as palavras da profecia deste livro” (Ap 22, 8s).
Os anjos são nossos companheiros de adoração ante o trono do Cordeiro, tanto no Céu, onde os santos veem o rosto de Cristo, como na terra, onde se unem de forma silenciosa e invisível à nossa adoração ao Senhor eucarístico. É bom (na verdade, é algo que nos consola e fortalece) saber que eles estão perto de nós e que podemos nos beneficiar disso, invocando-lhes a intercessão e confiando-nos (sob Deus) à sua poderosa proteção.
Além da amizade de caridade com as milícias celestes de que gozam todos os membros do Corpo místico de Cristo, a vida dos santos nos mostra em cores vívidas e às vezes surpreendentes o quanto os anjos desejam — por assim dizer — estreitar conosco laços de amizade pessoal, a qual será tanto mais real quanto mais recorrermos a eles com fé, confiança e estima. Para encorajar essa devoção e tornar essa amizade acessível, Deus confia cada um de nós, no momento em que somos concebidos, a um anjo da guarda, que irá caminhar conosco durante toda a vida — nós, em peregrinação rumo à Jerusalém celeste, e nosso anjo, contemplando o rosto de Deus e muito bem capacitado para nos conduzir até lá.
Esse anjo sabe perfeitamente quem e o que somos. É também extremamente delicado e gentil no modo de lidar conosco e de agir à nossa volta. Não nos obriga a nada; devemos recorrer a ele para pedir ajuda, e ele nos atenderá com alegria. Embora eu jamais tenha passado por uma experiência “mística” com o meu anjo da guarda (como a que teve Santa Gemma Galgani com o dela), nunca deixei de notar os sinais de sua presença e ação em minha vida. Ele realmente já esteve ao meu lado inúmeras vezes “para me reger, guardar, proteger e iluminar”.
Que dom tremendo da amável Providência de Deus! Quisera eu ter mais atenção e confiança em tal pessoa, pertencente a uma espécie e ordem do ser completamente diferentes, muito mais inteligente, poderosa, amável e zelosa do que eu!
Um voo de anjos — e o retorno deles
Começamos este artigo observando que o antigo rito romano nos ensina (e nos recorda, para não esquecermos) que os anjos estão presentes em todos os lugares, mas particularmente no santo sacrifício da Missa, como companheiros de adoração e intercessores. Parece óbvio que uma das razões fundamentais para a crença nos anjos (ou mesmo certa “consciência” de sua existência) ter se deformado tanto é o simples fato de eles terem, em grande medida, desaparecido dos textos usados no culto público da Igreja latina, ou ocidental. Eles continuam presentes nos textos, de fato, mas estão de algum modo marginalizados; por isso é fácil deixá-los de lado. Parece até que a função deles é antes decorativa que dogmática, “rebaixamento” confirmado ainda mais pelo distanciamento generalizado — litúrgico e paralitúrgico — da invocação, explícita e constante, dos santos (humanos ou angélicos).
Traduções arbitrárias e banais dos textos latinos contribuíram também para este fenômeno de marginalização [x]. No entanto, talvez o fato mais trágico seja a redução brutal das festas dedicadas aos anjos no calendário litúrgico. No calendário tradicional, há cinco festas: São Gabriel Arcanjo (24 de março), Aparição de São Miguel Arcanjo (8 de maio), Dedicação de São Miguel Arcanjo (29 de setembro, festa de São Miguel), Santos Anjos da Guarda (2 de outubro) e São Rafael Arcanjo (24 de outubro). Apenas duas delas sobrevivem no novo calendário: a dos Santos Arcanjos Miguel, Gabriel e Rafael (29 de setembro, uma compressão muito surpreendente, já que os três são os únicos anjos de que a Sagrada Escritura fala longamente, o que possibilita leituras próprias para cada um); e a dos Santos Anjos da Guarda (2 de outubro).
Há também perdas mais sutis, como o fato de o Intróito usado no 3.º Domingo depois da Epifania — repetido em todos os domingos até a Septuagésima, ou seja, são até quatro domingos com os mesmos próprios — declarar com alegria: Adorate Deum, omnes Angeli ejus: audivit et laetata est Sion: et exsultaverunt filiæ Judæ, “Adorai ao Senhor todos os seus Anjos: ouvi-o, e alegrou-se Sião. E regozijar-se-ão as filhas de Judá” (Sl 96, 7s).
Segundo a minha experiência com a sagrada liturgia, o Intróito, particularmente cantado por uma schola [xi], é um dos momentos mais importantes para uma participatio actuosa da congregação retamente entendida. O sacerdote vestiu a casula, talvez um sino tenha sido tocado e os neumas amontoados ganham vida numa canção majestosa. Agora a Missa está realmente iniciando; é hora de prestar bastante atenção para mergulhar novamente nos tesouros que o Senhor preparou hoje para os seus discípulos.
Dessa forma, o Intróito se torna emblemático e um sinal de todo o banquete de oração servido pelos ministros da Igreja aos que estão ávidos da Palavra. Como sabemos, o Intróito infelizmente já quase não existe mais no mundo. Para muitos católicos, a nobre antífona — cujas palavras ousam dizer aos anjos que se ocupem justamente do que já estão fazendo, de maneira muito superior à que poderíamos alcançar nesta vida — está enterrada no silêncio de livros raramente abertos.
À luz de nossa situação, uma parte importante mas negligenciada da “reforma da reforma” e do movimento para restaurar o rito tradicional deve ser uma catequese mais frequente e melhor a respeito dos santos anjos de Deus, sempre acompanhada de uma viva devoção a eles. Em nossa peregrinação, eles são nossos guardiões e guias; no bendito destino que nos aguarda, serão nossos companheiros. Como diz Jesus dos eleitos: “Na ressurreição […] serão como os anjos de Deus no céu” (Mt 22, 30; Mc 12, 25), “semelhantes aos anjos, e filhos de Deus, visto serem filhos da ressurreição” (Lc 20, 36) [xii]. Que nos leve a participar de sua ressurreição o Senhor ressuscitado, que com o Pai e o Espírito Santo, um só Deus, vive e reina eternamente. Amém.
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