— Escrevendo no final do século XIII, o comentarista litúrgico medieval Guilherme Durando descreve a Purificação como uma “festa dupla” [1]:

Em relação àquele que nasceu, a festa é chamada de “Hypapante”, isto é, “o encontro” (em grego), porque naquela solenidade a profetisa Ana e Simeão encontraram Nossa Senhora quando ela foi ao templo para oferecer seu Filho, o Cristo. A vinda do Senhor ao templo significa sua vinda à Igreja e à mente de cada alma fiel, que é um templo espiritual. O Senhor profetizou essa vinda por meio do profeta Malaquias: “Vou mandar o meu mensageiro para preparar o meu caminho” (3, 1-4). Segundo, em relação àquela que deu à luz, a festa também é chamada de Purificação porque a Santíssima Virgem, embora não tivesse necessidade de purificação, e não estivesse sujeita à lei da purificação, quis mesmo assim cumprir o preceito da Lei (cf. Lv 12, 1-8).

Esse preceito declara que, quarenta dias depois de dar à luz, uma mulher “levará até a porta do tabernáculo do testemunho um cordeiro de um ano de idade para o holocausto, e uma jovem pomba ou rola em sacrifício pelo pecado, entregá-los-á ao sacerdote, que os oferecerá perante o Senhor”. Por essa razão, a Purificação serve como o encerramento formal do tempo do Natal e é celebrada exatamente quarenta dias depois dele

Sua ligação com o Natal é expressa com clareza nas Primeiras Vésperas (da Forma Extraordinária do Rito Romano), cujas antífonas são as mesmas da Oitava de Natal. Cada uma delas fala da Virgem especificamente em referência ao nascimento do Salvador, como, por exemplo, a segunda: “Quando natus es ineffabíliter ex Vírgine, tunc implétæ sunt Scriptúræ: sicut plúvia in vellus descendísti, ut salvum fáceres genus humánum: te laudámus, Deus noster — Ao nascerdes da Virgem de modo inefável, a palavra de Deus se cumpriu plenamente: como chuva na relva descestes dos céus e viestes salvar-nos! Glória a vós, nosso Deus!” 

No Breviário de São Pio V, essas antífonas são cantadas com os salmos vespertinos para as festas da Virgem, mas em outros lugares eram usados os salmos das Vésperas de Natal. Em Liège e em outros lugares, o hino das Laudes do Ofício de Natal, A solis ortus cardine, era cantado nessas Vésperas no lugar do hino mariano Ave maris stella. Em muitas igrejas, o branco, cor litúrgica do tempo do Natal, era usado nas Missas do tempo para o período entre a oitava da Epifania e a Purificação, e o uso do verde só começava depois do dia 2 de fevereiro. (Em Paris, esse costume continuou até 1870.) 

A liturgia também marca formalmente a Purificação como o fim de todo o ciclo de celebrações que forma a primeira parte do ano eclesial. No primeiro domingo do Advento, a oração pós-comunhão (no rito tridentino) começa com as palavras: “Que possamos receber (suscipiamus) vossa misericórdia, ó Senhor, no meio do vosso templo”, enquanto o Intróito da Purificação (abaixo), citando de modo mais exato o Salmo 47, começa com o verbo no indicativo: “Nós recebemos (suscepimus), ó Senhor, vossa misericórdia, no meio do vosso templo.” Essa mudança indica que aquilo que pedimos e aguardávamos no Advento foi completamente recebido no nascimento de Cristo

Deve-se notar, também, que a Quarta-feira de Cinzas pode cair, no máximo, no dia 4 de fevereiro. (Isso não ocorre desde 1818 e só ocorrerá novamente em 2285.) Portanto, o ciclo do Natal, incluindo o tempo preparatório do Advento, sempre ficará separado do ciclo da Páscoa, incluindo o tempo preparatório da Quaresma, por um intervalo de pelo menos um dia.

— No final do século IV, a peregrina Egéria escreveu no famoso relato de sua visita à Terra Santa que o Encontro do Senhor com Simeão no Templo foi celebrado lá com particular solenidade, “tal como a Páscoa”, quarenta dias depois da Epifania. Na época dela, a Epifania comemorava todos os eventos do nascimento do Senhor, e portanto o Encontro era celebrado no dia 14 de fevereiro. Esse arranjo é observado até hoje no Rito Armênio. Quando, pouco tempo depois, a festa do Natal foi adotada no Oriente (e, em alguns lugares, até antes disso), a Epifania oriental focava no Batismo do Senhor; o Encontro, por ser um evento de sua infância, foi então adiantado para 2 de fevereiro, contando os quarenta dias a partir de 25 de dezembro.

A Apresentação, por Vicente López y Portaña.

Afirma-se com frequência que, quando foi introduzido no Ocidente em meados do século VII, o Encontro tornou-se uma festa mariana, enquanto o Oriente continuou a observá-la como uma festa do Senhor [2]. Isso vem de uma análise bastante superficial de seu título litúrgico e de seus textos. É verdade que seu nome latino aparece muito cedo como “a Purificação da Virgem Maria”, como, por exemplo, no Sacramentário Gelasiano e no lecionário de Murbach, ambos de meados do século VIII. Também é verdade que ela foi considerada uma festa mariana na Idade Média. Porém, seu caráter de “festa dupla” de origem grega jamais foi esquecido; cerca de um século antes de Durando, Sicardo de Cremona escreveu: “Portanto, hoje é uma solenidade dupla, daquela que dá à luz e daquele que nasce, isto é, da Mãe e do Filho; em relação à Mãe, é chamada de ‘a Purificação’; em relação ao Filho, ‘Hypapante’, que é traduzido por ‘o Encontro’” [3]. 

A tradicional Missa Romana da Purificação se refere à Virgem apenas onde ela é mencionada no Evangelho, e quase secundariamente na oração pós-comunhão. Da mesma forma, os ritos que precedem a Missa se referem a ela uma vez na primeira oração da bênção das velas (mais uma vez, de modo quase secundário) e duas vezes nas antífonas processionais. O duplo caráter da festa observado por Sicardo e Durando é expresso de forma mais clara no Ofício, do qual muitas partes são tomadas das festas comuns da Virgem. No entanto, mesmo neste caso o invitatório, as leituras e os responsórios das Matinas, bem como as antífonas das Laudes (também usadas nas Horas seguintes), referem-se todas ao Encontro de Cristo com Simeão.

De acordo com o Liber Pontificalis, o Papa São Sérgio I (687-701) instituiu uma procissão da igreja de Santo Adriano no Fórum Romano até Santa Maria Maior, a ser realizada na Anunciação, na Dormição e na Natividade da Virgem, e na “festa de São Simeão”. Nascido na Sicília, mas de origem síria, com certeza esse papa tinha familiaridade, desde sua juventude, com as liturgias de tradição latina e bizantina. Há uma boa evidência de que uma procissão com velas foi associada à festa desde tempos mais remotos, como observam também as Butler’s Lives, mas ela desapareceu por completo no Oriente; hoje, nas poucas igrejas orientais nas quais é feita, trata-se de uma latinização muito recente. Não há menção a velas nas palavras do Liber Pontificalis sobre o Papa Sérgio, nem nos antigos livros litúrgicos romanos; a primeira referência a uma bênção das velas no dia 2 de fevereiro é encontrada no final do século X.

A bênção romana é tipicamente simples, e segue um padrão similar ao da bênção dos ramos. Cinco orações são feitas sobre as velas; em seguida, são aspergidas com água benta e incensadas. Finalmente, são distribuídas enquanto o cântico de Simeão Nunc dimittis é entoado com a seguinte antífona depois de cada verso: “Lumen ad revelationem gentium: et gloriam plebis tuae Israel — Uma luz para a revelação dos gentios, e a glória de vosso povo, Israel.” Após uma segunda antífona e uma breve coleta, vem uma procissão acompanhada pelo cântico de duas longas antífonas. A primeira delas é tomada da Liturgia Bizantina; a segunda é do Evangelho do dia:

Adorna, ó Sião, o teu leito nupcial e recebe nele Jesus Cristo que é o teu Rei. Recebe Maria em teus braços, que ela é a porta do céu e traz consigo o Rei da Glória, da nova luz. A Virgem aproxima-se trazendo ao colo o Filho que gerou antes do sol e que Simeão, tomando-o nos braços, apontou aos povos como o Senhor da vida e da morte e o Salvador do mundo.

Revelou o Espírito Santo a Simeão que não veria a morte sem primeiro ver o ungido do Senhor. E quando levaram o menino ao Templo, tomou-o nas mãos e bendisse ao Senhor, dizendo: “Agora, Senhor, podeis deixar partir vosso servo em paz.” V. Quando o pai e a mãe de Jesus o levaram ao Templo a fim de cumprirem por Ele as prescrições da Lei, Simeão tomou-o nos braços.

Enquanto a procissão entra na igreja, um dos responsórios das Matinas é cantado; repare como a repetição do verso completa de forma inteligente a doxologia no final. 

R. Ofereceram por Ele ao Senhor um par de rolas ou dois pombinhos: conforme está escrito na Lei do Senhor. V. Depois de se completar o tempo, em que, segundo a Lei de Moisés, Maria devia ser purificada, levaram Jesus a Jerusalém, a fim de o apresentar ao Senhor, segundo o que está escrito na sua Lei. Glória… * Segundo o que está escrito na Lei.

Segundo a tradição histórica romana, usavam-se paramentos violáceos na procissão e brancos na Missa celebrada após o retorno à igreja. Clero e fiéis seguram velas acesas (na medida do possível) durante a procissão, enquanto o Evangelho é cantado e do Cânon até a comunhão. 

— Foram feitas muitas tentativas improváveis de conectar a bênção e a procissão da Candelária com o antigo rito romano de purificação da Lupercália. O Venerável Beda, escrevendo por volta do ano 720, diz que o rei romano Numa dedicou fevereiro ao deus Fébruo, outro nome para Plutão, “que supostamente tinha poder sobre os ritos de purificação”, e o instituiu como um mês de vários ritos para purificar religiosamente a cidade. (O nome do mês e do deus deriva de “februare — purificar”.) Beda diz, então, que a religião cristã aprimorou “esse costume”, sem mencionar a Lupercália especificamente, ao instituir uma procissão com velas em seu lugar “no mesmo mês, no dia de Santa Maria” [4].

A Lupercália é mencionada várias vezes por outros Padres da Igreja, e até no final do século V o Papa São Gelásio I sentiu a necessidade de combater alguns vestígios dessa celebração. Ainda era realizada na cidade uma corrida que fazia parte do festival, e numa carta para um senador romano que defendia o evento o papa sugere com sarcasmo que os corredores deveriam retornar à prática mais antiga e correr nus. A ideia de Beda se torna mais tentadora como explicação para as origens da procissão quando consideramos que a Lupercália era celebrada entre os dias 13 e 15 de fevereiro, coincidindo com a data original da Purificação no Oriente; e que, além disso, o nome da festa cristã que inicia o mês romano da purificação foi alterado em Roma para “a Purificação”.  

Apesar disso, é muito improvável que quaisquer vestígios do rito pagão tivessem permanecido na época do Papa Sérgio, que instituiu a procissão quase dois séculos depois de Gelásio, e não somente para a Purificação, mas para todas as festas marianas. Nesse ínterim, Roma havia sofrido um considerável despovoamento durante as pragas e guerras do século VI, que deram um duro golpe nos antigos costumes e instituições da cidade. Além disso, não há razão para crer que a festa tenha sido celebrada no Ocidente numa data diferente do dia 2 de fevereiro.


Atualização [14 de fevereiro de 2022]: O que mudou após o documento Traditionis Custodes, do Papa Francisco? Na prática, a celebração do chamado rito tridentino, ou de São Pio V, diminuirá a olhos vistos, devido às novas restrições que lhe foram impostas. O usus antiquior, no entanto, não foi extinto e, ainda que novas medidas restritivas sejam tomadas agora ou no futuro, permanece o valor espiritual e cultural da Missa que por tanto tempo a Igreja celebrou — como um farol a iluminar o nosso caminho ainda hoje. Para mais conteúdo sobre este assunto, consultar a homilia “Em que, afinal, devemos acreditar?” e a aula “Sacerdócio e vida de oração”.

Referências

  1. Rationale Divinorum Officiorum 7, 7.
  2. Cf., por exemplo, os verbetes relevantes na antiga Enciclopédia Católica, as revisões de 1956 das Butler’s Lives, v. 1, p. 235, e o v. 3, p. 397, da obra The Sacramentary do Beato Ildefonso Schuster; esta se refere, de um modo um tanto incorreto, ao seu “caráter predominantemente mariano”.
  3. Mitrale 5, 11.
  4. De temporum ratione XII: PL 90, 351.

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