De 17 a 23 de dezembro, como forma de se preparar com ainda mais cuidado para a vinda de seu Senhor, a Igreja entoa em sua liturgia as célebres e antiquíssimas Antífonas Maiores, também chamadas “do Ó”, por começarem todas com essa interjeição invocativa, dirigidas a Nosso Senhor. É como se estivéssemos adentrando a “Semana Santa” do Natal

Nas palavras do grande liturgista Dom Próspero Guéranger:

A Igreja abre hoje o septenário que precede a Vigília de Natal, dias célebres na liturgia com o nome de Férias maiores. O Ofício ordinário de Advento torna-se mais solene; nas Laudes e nas Horas do dia as antífonas são próprias do tempo e relacionadas diretamente ao grande acontecimento. Nas Vésperas, canta-se todos os dias uma solene antífona que é um suspiro pelo Messias, na qual se lhe dá, diariamente, um dos títulos que lhe reserva a Sagrada Escritura [...].

O momento escolhido para dirigir esta sublime invocação à caridade do Filho de Deus são as Vésperas porque foi ao entardecer do mundo (vergente mundi vespere) que veio o Messias. São cantadas antes do Magnificat, para indicar que o Salvador esperado nos há de chegar por Maria [...].

Estas admiráveis antífonas, que contêm toda a medula da liturgia do Advento, são acompanhadas por um canto harmonioso e solene; e todas as Igrejas as ornaram de particular pompa, cujas demonstrações, sempre expressivas, variavam de acordo com os lugares. Entremos no espírito da Igreja, e recolhamo-nos a fim de unir-nos a ela com todo nosso coração, quando dirija a seu Esposo estas últimas e ternas invitações às quais terá de ceder finalmente [1].

Essas antífonas têm história: remontariam, para muitos, a São Gregório Magno († 604), embora o próprio Boécio († 524), em seus escritos, faça referência a elas. Seu lugar foi sempre na oração de Vésperas — de modo que só depararia com elas quem tem o costume de rezar a Liturgia das Horas —; com a reforma litúrgica de Paulo VI, porém, sua presença também se faz notar nos versículos aleluiáticos das Missas dos mesmos dias (ou seja, na chamada “aclamação ao Evangelho”, acompanhando o canto do Aleluia). 

Sobre elas, Padre Paulo Ricardo gravou em 2011 um episódio especial, que vale a pena ver de novo, abaixo:

O editor do site New Liturgical Movement, Gregory DiPippo, escreveu há alguns anos uma excelente reflexão sobre esses textos à luz da história da salvação. Abaixo você confere a tradução dessas considerações, feita por nossa equipe, para meditação nestes dias que antecedem o Natal do Senhor.


É sabido que a primeira letra de cada um dos títulos das Antífonas do Ó formam o anagrama ERO CRAS quando lidas ao revés, expressão que em latim significa “Estarei [aí] amanhã”. A ordem em que as antífonas são cantadas não é de todo casual, mas tampouco está organizada em função do anagrama, e constitui ainda uma catequese sobre a história da salvação em Cristo.

O Sapientia, “Ó Sabedoria”, refere-se à pré-existência eterna do Verbo e ao seu papel na Criação, ideia sobre a qual os Padres da Igreja falam com frequência. São Paulo chama a Cristo “a sabedoria de Deus” em 1Cor 1,24; a antífona diz que a Sabedoria “veio da boca do Altíssimo”, ou seja, é pronunciada como o Verbo. Santo Hilário de Poitiers escreve em Sobre a Trindade (III 21), ao comentar a figura da Sabedoria em Provérbios 8: “Está junto de Deus a Sabedoria, gerada antes dos mundos; e está não apenas junto dele, mas está ordenando, pois ela os estava colocando em ordem junto com Ele. Lembra-te desta palavra: ordenar, ou arranjar. O Pai, por meio de suas ordens, é a Causa; o Filho ordena as coisas ao executar aquilo que é determinado pelo Pai”.

As palavras da antífona fortiter suaviterque disponens omnia, “ordenando todas as coisas com poder e suavidade”, são de Sabedoria 8,1, conclusão de uma passagem (7,21–8,2) em que o autor lista os atributos da Sabedoria: “a formadora de todas as coisas… santa, una, todo-poderosa, controla todas as coisas, contém todos os espíritos… mais ativa do que as coisas ativas: e alcança tudo por causa de sua pureza… certa emanação pura da glória de Deus todo-poderoso… brilho da luz eterna e espelho imaculado da majestade de Deus, imagem de sua bondade”. Os comentários bíblicos católicos observam corretamente que essas palavras são semelhantes ao início da Carta aos Hebreus, que descreve o Filho de Deus como “o resplendor da sua glória e a figura da sua substância, sustentando tudo com a sua poderosa palavra”.

O Adonai fala de Cristo como aquele que apareceu a Moisés na sarça ardente e lhe deu a lei no Monte Sinai; “Adonai”, termo hebraico para “meu Senhor”, é a palavra que os judeus, quando leem a Bíblia, pronunciam em lugar do nome divino, YHWH, revelado a Moisés em Êxodo 3. A oração “vinde nos redimir com o braço estendido” refere-se às próprias palavras de Deus ao falar a Moisés em Êxodo 6,6: “Eu sou o Senhor, que vos tirarei de sob o jugo dos egípcios, vos livrarei da escravidão, vos resgatarei com o braço estendido e com grandes juízos”, bem como o cântico que Moisés entoa depois de cruzar o mar Vermelho: “O terror e a angústia caíram sobre eles. Foram petrificados pelo poder do teu braço” (Ex 15,16).

O Radix Jesse, “Ó Raiz de Jessé”, cita dois capítulos do profeta Isaías (11 e 52), mencionados por São Paulo em Romanos 15, embora as citações não sejam exatamente as mesmas. (Depois dos Salmos, Isaías é o livro do Antigo Testamento mais citado no Novo.) Esta antífona e a anterior demonstram que, no Antigo Testamento, a lei e os profetas dão testemunho da vinda de Cristo, assim como Moisés e Elias apareceram ao lado dele na Transfiguração, aquele representando a lei, este os profetas. Num sermão sobre a Transfiguração, São Leão Magno afirma que, na pregação da Palavra, “as páginas de cada Aliança concordam entre si, e o esplendor da glória presente mostra de modo manifesto e claro aquilo que os sinais que a antecederam haviam prometido sob o véu dos mistérios”. 

As Antífonas do Ó não mencionam explicitamente a Encarnação, à qual o tempo do Advento é dedicado. Tampouco antecipam o nascimento de Cristo, celebrado no Natal. Do mesmo modo, não seria coerente com a natureza festiva do período fazer qualquer referência explícita à Paixão e Morte de Cristo; em vez disso, elas são mencionadas indiretamente na quarta e quinta antífonas.

O Clavis David, “Ó Chave de Davi”, e o termo de que vem em seguida (“cetro da casa de Israel”) se referem às palavras do anjo Gabriel à Virgem Maria na Anunciação, segundo as quais o Filho dela herdaria o trono de Davi e reinaria na casa de Jacó, cujo nome é Israel. No trecho em que a antífona reza para que Cristo venha “libertar o prisioneiro da prisão, aquele que está na escuridão e na sombra da morte”, o prisioneiro é Adão, ancestral da raça humana e, por inferência, todos os justos que morreram antes de a morte e a ressurreição de Cristo terem aberto as portas do céu e que, portanto, permaneceram “na escuridão e na sombra da morte”. Repare-se nesta imagem como Cristo, na descida ao inferno, aparece segurando uma cruz com a forma sugestiva de uma chave. Atrás, as fechaduras e as grades do Limbo dos Patriarcas são quebradas. Naturalmente, a descida ao inferno é precedida necessariamente pela Paixão e Morte de Cristo, que, por sua vez, são necessariamente precedidas pela Encarnação.

O Oriens, “Ó Oriente” [N.T.: “Ó Sol nascente”, na tradução litúrgica brasileira] trata da Ressurreição, já que oriens significa “aquele que se levanta”. Esta antífona descreve Cristo como “esplendor da luz eterna, o sol da justiça”, ou seja, a luz e o sol que não se põem. Aqui a Igreja professa sua esperança na ressurreição futura ao falar da “luz eterna” no dia 21 de dezembro, do solstício de inverno e dos dias mais curtos [no hemisfério norte]. Certamente não é coincidência que esta seja a mais breve das Antífonas do Ó. O objeto da oração ao final dela é o mesmo que o do dia anterior, mas posto dessa vez no plural: “Vinde e brilhai sobre aqueles que estão na escuridão e na sombra da morte”. Isso indica que os frutos da Paixão e Ressurreição de Cristo devem ser participados a toda a espécie humana em cada um de seus membros.

O Rex gentium, “Ó Rei dos gentios”, portanto, refere-se à Ascensão, a Pentecostes e à fundação da Igreja. Na festa da Ascensão, as primeiras palavras da antífona do Magnificat nas II Vésperas são O Rex gloriæ, cantadas no mesmo modo e com as mesmas notas do início das Antífonas do Ó. Estas são as duas únicas antífonas do antigo corpus em geral usadas em todo o rito romano que começam com essas palavras. A palavra gloriæ, “da glória”, é substituída por gentium, “dos gentios”, para simbolizar as nações que passam a fazer parte da Igreja, começando pela pregação dos Apóstolos às nações de diferentes línguas em Pentecostes. 

Cristo é, portanto, o desideratus earum, “o desejado delas [das nações]”, palavras retiradas da profecia de Ageu 2,8, na qual Deus diz que encherá sua casa, isto é, a Igreja, com glória quando levantar todas as nações. Ele também é chamado de lapis angularis, “pedra angular”, em referência à pedra rejeitada pelos construtores no Salmo 117, e também ao hino de Laudes para a dedicação de uma igreja: Angularis fundamentum, “Cristo é enviado como pedra angular e fundamento”. 

Na manhã do dia 23 de dezembro, a Igreja canta o Benedictus com a antífona: “Cumpriram-se todas as coisas ditas pelo anjo sobre a Virgem Maria”. Assim, a última Antífona do Ó, O Emmanuel, se refere a Cristo como “Deus está conosco”, nome da criança cuja vinda fora profetizada por Isaías ao dizer: “A virgem conceberá e dará à luz um filho”.

Daí seguem os títulos: “nosso rei e legislador, esperança das nações e seu Salvador”. Na antífona anterior, a palavra desideratus, “o desejado” (das nações) é um particípio passado, indicando que a espera das nações pela primeira vinda de Cristo chegou ao fim. Aqui, Ele é a “esperança das nações”. A palavra latina exspectatio indica uma ação contínua, enquanto esperamos a segunda vinda de Cristo, que “deverá vir novamente na glória para julgar os vivos e os mortos, e seu reino não terá fim”. Isso nos leva outra vez a um tema presente desde o início do Advento, que recorda a primeira vinda de Cristo na plenitude dos tempos e sua segunda vinda no fim do mundo.

Referências

  1. El Año Litúrgico, v. 1: Advento y Navidad. Burgos: Aldecoa, 1954, p. 632s, tradução nossa.

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