A liturgia da Quaresma dá um lugar de particular destaque à história do patriarca José sendo vendido como escravo por seus irmãos, tal como narrado em Gênesis 37. No rito tradicional, ela é lida como Epístola da Missa desta Sexta-feira da 2.ª Semana da Quaresma (vv. 6-22) e repetida depois de forma mais longa (vv. 2-28) no Ofício de Matinas para o 3.º Domingo da Quaresma.

O lecionário pós-conciliar manteve a história no mesmo dia, mas a conta agora por meio de uma seleção diferente de versículos, sem nenhuma das referências, exceto duas, aos sonhos proféticos de José (cf. Gn 37, 3s.12s.17b-28). Os versículos acrescentados à versão tradicional das leituras (vv. 23-28), nos quais os irmãos vendem José como escravo em vez de o matar, não são mais lidos no Ofício, encontrando lugar na Missa. 

“Cristo Escarnecido”, de Antonio de Bellis.

Também foi mantido o Evangelho tradicional: a parábola dos vinhateiros homicidas, na versão de São Mateus (cf. Mt 21, 33-46). A história guarda muitas semelhanças com a de José do Egito, e também com a Paixão e Morte do Senhor. Daí seu uso na liturgia quaresmal desde tempos imemoriais: o Liber Comitis, um lecionário do século V atribuído a ninguém menos que São Jerônimo, põe tanto a leitura quanto o Evangelho na mesma Sexta-feira da 2.ª Semana da Quaresma.

Não obstante ter preservado esse arranjo antiquíssimo, o novo Lecionário censura o versículo 44 de Mt 21 (assim como fez com os Salmos e outras palavras duras de Nosso Senhor): “Aquele que tropeçar nesta pedra, far-se-á em pedaços; e aquele sobre quem ela cair será esmagado”. O contexto é o seguinte: Jesus acabara de usar o Sl 119, 22s em referência a si próprio: “A pedra que os pedreiros rejeitaram tornou-se agora a pedra angular”. 

Mas a continuação não deveria assustar ninguém. Isaías também havia profetizado a vinda do Messias com palavras parecidas: “Ele será um santuário, mas também pedra de tropeço e rochedo que derruba” (Is 8, 14). E Simeão disse à Virgem Maria: “Este é destinado a ser causa de queda e de reerguimento de muitos em Israel, e a ser sinal de contradição” (Lc 2, 34). Ora, considerando que a salvação é individual, que a graça de Deus pode ser acolhida ou rejeitada pelos corações dos homens, nada mais natural que uns tropecem na pedra e outros a tomem por “pedra angular”; que uns se ergam, portanto, e vão para o Céu, e outros caiam, e se condenem ao Inferno.

Mas voltemos a José do Egito. 

No rito romano antigo, a leitura de sua história no Ofício faz parte do cursus regular do Gênesis, que começa com o Domingo da Septuagésima. Ou seja, o ciclo pascal perfaz sempre o mesmo caminho, retomando a história da salvação desde o seu princípio, com a criação do homem, o Dilúvio, a história de Esaú e Jacó etc. Hoje, o Ofício das Leituras da Quaresma começa um pouco mais à frente, sempre com o livro do Êxodo (aonde o rito tradicional só chegava na quarta semana da Quaresma).

Os responsórios matinais para a terceira semana da Quaresma, porém, são retirados dos capítulos subsequentes da história de José, nos quais ele vai para o Egito, torna-se braço direito do Faraó e, finalmente, salva a família da grande carestia de sete anos.

“José é vendido ao Egito”, de James Tissot.

Na Missa, a história de José do Egito é escolhida especificamente para ser lida em uma sexta-feira, em vista da Paixão de Cristo e devido à interpretação que lhe deram os Padres da Igreja. 

Já no início do século III, Tertuliano explicou os sofrimentos de José como prefiguração da Paixão do Senhor: “Também José figurou a Cristo [...] porque foi perseguido pelos irmãos e vendido ao Egito por graça de Deus, assim como Cristo, em favor de Israel, também foi vendido por seus irmãos, ao ser traído por Judas” (Adversus Iudæos 10: PL 1, 636B).

Para Santo Ambrósio, a condição de José como caçula de Jacó também faz dele uma imagem de Cristo, que vem como o último dos enviados de Deus, como o filho da parábola lida no Evangelho. Em seu tratado Sobre as Bênçãos dos Patriarcas, que explica as bênçãos de Jacó a seus filhos em Gênesis 49, ele escreve:

“Meu filho”, diz, “mais novo” [i]. De fato, era mais novo o que tinha nascido quase por último. Em seguida, diz também a Escritura: “Amava-o Jacó, pois era-lhe o filho da velhice” (Gn 37, 3). O que se refere também a Cristo. Com efeito, brilhando para o mundo, já velho e decadente, veio tarde o Filho de Deus pelo parto de Maria Virgem e, qual filho da velhice segundo o mistério, tomou um corpo o que esteve sempre desde os séculos junto do Pai (De Benedic. 11, 48: PL 14, 722B).

A túnica de José, mergulhada em sangue de bode pelos irmãos para que Jacó acreditasse que ele fora morto por um animal, é lida assim como símbolo do corpo que Cristo assumiu na Encarnação, a fim de poder sofrer a Paixão. A túnica foi “ensanguentada” assim como o corpo de Cristo foi ensanguentado, o que mais uma vez ainda vincula esta sexta-feira à da Paixão. Santo Ambrósio diz explicitamente em sua Exposição do Evangelho segundo Lucas (5, 107): “A túnica de José foi ensanguentada à semelhança do corpo do Senhor”. 

“A túnica de José”, por Diego Velázquez.

A Quaresma é também, naturalmente, o período em que a Igreja prepara os catecúmenos para receber o sacramento do Batismo na noite de Páscoa, e muitas das leituras tradicionais das Missas quaresmais são escolhidas para os instruir. De acordo com Santo Agostinho, José prefigura a entrada dos gentios na Igreja mediante o Batismo. Comentando as palavras do Salmo 80, 6, “uma lei que foi imposta a José, quando ele entrou em luta com o Egito”, diz:

José traduz-se por aumento. Lembrai-vos, conheceis a José, vendido ao Egito: [é] Cristo que vai aos gentios […]. Portanto, a José dizem mais respeito os gentios, e por isso é aumento, porque muitos são os filhos da abandonada, mais do que os daquela que tem marido (cf. Gn 37, 28; 41, 37 etc.; Is 54, 1; Gn 4, 27). [ii] Quando saiu José da terra do Egito, isto é, o povo multiplicado por José, atravessou o Mar Vermelho […]. A passagem então do povo pelo mar não indicava em figura senão a passagem dos fiéis pelo Batismo; é testemunha o Apóstolo: “Não quero que ignoreis, irmãos, que os nossos pais estiveram todos sob a nuvem, todos passaram pelo mar, e na nuvem e no mar, todos foram batizados em Moisés” (1Cor 10, 1s). Nada, pois, significava a passagem pelo mar senão o sacramento dos batizados (In Ps. 80, 6 [n. 8]: PL 37, 1037).

Essa interpretação da passagem pelo Mar Vermelho também é extremamente antiga. A cena aparece em muitos sarcófagos cristãos antigos, e a história é lida na Vigília Pascal em todos os ritos históricos da Missa.

Em seu livro escrito especificamente sobre José, Santo Ambrósio explica um dos sonhos como profecia de um aspecto diferente da vida de Cristo.

Enfim, menino ainda, nele refulgiu a divina graça. Com efeito, sonhou que, tendo atado — segundo lhe parecia pela visão — feixes com seus irmãos, levantou-se o dele e parou em pé; os feixes dos irmãos, porém, voltaram-se para o seu e o adoraram (cf. Gn 37, 7). No que, de fato, a futura ressurreição do Senhor Jesus foi revelada, a quem, como o vissem em Jerusalém, adoraram os onze discípulos (De Joseph Patriarcha 2, 7: PL 14,675).

A história de José desta sexta-feira, por conseguinte, profetiza não só o que acontece na Sexta-feira Santa, a Paixão, mas aponta ainda para a sexta-feira da Oitava da Páscoa, quando se lê como Evangelho tradicional Mt 28, 16-20, no qual Cristo encontra os onze discípulos. “Quando o viram, adoraram-no” (v. 17).

Referências

  • Grande parte deste texto foi aproveitada de: Gregory DiPippo, “The Patriarch Joseph in the Liturgy of Lent”. In: New Liturgical Movement, 5 mar. 2021. De nossa parte são a tradução, alguns esclarecimentos e várias omissões do original (que vale a pena a leitura, de todo modo, especialmente por quem aprecia a liturgia antiga).

Notas

  1. A citação de Ambrósio de Gn 49, 22, filius meus adolescentior, deriva da leitura da Septuaginta, de uma passagem famosamente difícil. (Nota de Gregory DiPippo.)
  2. Agostinho entende por “filhos da abandonada” os gentios, e por filhos “daquela que tem marido” os filhos de Israel. (Nota de Gregory DiPippo.)
  3. Os Padres da Igreja e os intérpretes judeus da Bíblia antes deles viam José como modelo de castidade, porque rejeitou as investidas da esposa de Potifar, e de prudência, pela maneira como salvou da fome não só a própria família como todo o Egito. (Nota de Gregory DiPippo.)

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