Uma das maiores dádivas de se recitar com fidelidade, ao longo dos anos, a Liturgia das Horas (também chamada de Breviário) é que as Escrituras ficam profundamente gravadas na mente, no coração, na memória e na imaginação. Isso é especialmente verdadeiro no caso dos Salmos que se repetem a cada quatro semanas, o ano todo, todos os anos [1]. 

Mas há omissões significativas no Breviário moderno. Isso é verdade devido à perda não só dos próprios textos, mas também das reflexões sobre eles. Os versículos excluídos são classificados por muitos como imprecatórios, pois clamam por maldições, ou desejam que calamidades venham sobre os outros.

Aqui vão dois exemplos desses Salmos: 

Derrama sobre eles a tua indignação e o furor da tua cólera os alcance… Acrescenta culpas às suas culpas, e não sejam proclamados justos diante de ti (Sl 68, 25.28).

Sejam envergonhados e perturbados para sempre, sejam confundidos e pereçam (Sl 82, 18).

Antes de publicar a Liturgia das Horas, o Papa Paulo VI decretou que os Salmos imprecatórios fossem omitidos. Como consequência, aproximadamente 120 versículos (três Salmos inteiros: 58 [57], 83 [82], e 109 [108], além de versículos de 19 outros) foram removidos. A introdução à Liturgia das Horas cita, como razão para essa supressão, uma certa “dificuldade psicológica” causada por tais passagens. Isso não obstante o fato de que alguns desse Salmos de imprecação são usados como orações no Novo Testamento (e.g., Ap 6, 10), e sem o sentido de incentivar o uso de maldições (cf. Instrução Geral [sobre a Liturgia das Horas], n. 131). Seis cânticos do Antigo Testamento e um do Novo têm versículos que foram excluídos pela mesma razão.

Muitos (eu inclusive) acreditam que a remoção desses versículos é problemática. 

Primeiro porque ela não resolve de fato o problema da imprecação no Saltério, já que tais ideias permanecem em muitos dos Salmos restantes. Até mesmo no popular Salmo 22 nós nos deleitamos enquanto os inimigos, famintos, veem-nos a comer com fartura (cf. Sl 22, 5). Outro exemplo: “(Louvai-o a ele) que feriu os egípcios nos seus primogênitos, porque a sua misericórdia é eterna [...]; que feriu grandes reis, porque a sua misericórdia é eterna; que matou reis poderosos, porque a sua misericórdia é eterna” (Sl 135, 10.17-18). Remover os “piores” versículos não remove o “problema”.

“Jeremias lamentando a destruição de Jerusalém”, de Rembrandt.

Em segundo lugar, é preocupante sugerir que os textos inspirados das Escrituras devam ser relegados ao campo da “dificuldade psicológica”. Os críticos asseguram que é nossa a responsabilidade de buscar a compreensão de tais textos dentro do contexto mais amplo do amor e da justiça de Deus. São as passagens “tenebrosas” e difíceis [da Bíblia] que nos proporcionam, muitas vezes, os momentos de maior aprendizado. Quanto maior a “dificuldade psicológica” ou perturbação espiritual que esses textos nos causam, mais motivos temos para refletir a respeito de seu propósito. Por que Deus permitiria declarações como essas no texto sagrado? O que Ele quer que aprendamos ou compreendamos a partir disso? Teria a nossa perspectiva do Novo Testamento algum insight a acrescentar aqui? 

Embora alguns queiram minimizar essas declarações como pertencentes a um povo e a um tempo rústico, primitivo ou desafortunado, esta me parece ser uma explicação insensata e generalizada demais. Com a mesma facilidade, essa visão nos permitiria classificar quase tudo que acreditamos ser desgradável ou antiquado como fruto de uma era “mais primitiva”. Ainda que, de fato, [a observância de] certos costumes, práticas, punições e normas — por exemplo, os alimentos kosher [2]— tenha caído no período bíblico ou na era apostólica, a menos que algo diferente nos seja proposto pelos textos sagrados ou pelo Magistério, devemos considerar o texto sagrado como sendo de valor perene. Mesmo que não deva ser levado ao pé da letra, ele deve ser levado a sério, e ponderado a partir de seu sentido mais profundo e duradouro.

Santo Tomás de Aquino ensina-nos de forma sucinta que um versículo imprecatório pode ser entendido de três maneiras: 

  1. Como um prenúncio, em vez de um desejo de que o pecador seja condenado. Os pecadores não arrependidos serão punidos, de fato, e possivelmente excluídos para sempre do Reino dos Justos.
  2. Como uma referência ao caráter justo da punição, em vez de regozijo pela destruição dos inimigos. É justo e apropriado que pecados não arrependidos e atos de injustiça sejam punidos; não é errado alegrar-se com a justiça.
  3. Como uma alegoria para a abolição do pecado e a destruição do seu poder. Nós, que somos pecadores, devemos nos regozijar ao ver removidos, dentro de nós, todos os impulsos pecaminosos; nesses versículos, eles são muitas vezes personificados como nossos inimigos ou adversários.

Portanto, como ensina o Aquinate, até mesmo versículos inquietantes e imprecatórios podem transmitir-nos pontos importantes. Eles nos recordam que o pecado, a injustiça e todo o mal são graves, e que estamos envolvidos em uma espécie de guerra até que tais coisas sejam removidas (junto com os que a elas se apegam). (Para reflexões mais completas de Santo Tomás, consulte-se a Suma Teológica, II-II, questão 25, artigo 6 ad 3. Também é possível ler um ensaio cuidadoso escrito por Gabriel Torretta, O.P., que serviu de base para minhas reflexões.)  

“Rei Davi tocando harpa”, por Gerard van Honthorst.

A tudo isso eu gostaria de acrescentar uma reflexão mais profunda sobre o valor e o papel da imprecação no Saltério (inclusive nos versículos omitidos). 

Como a Instrução Geral fala de “dificuldade psicológica” em relação à imprecação, creio que seja bom recordar que o contexto geral da oração bíblica é de revelação sincera de nossas emoções e pensamentos a Deus, até aqueles mais obscuros. Moisés lamentou amargamente o peso de seu ofício e chegou a pedir a Deus que o matasse a certa altura (cf. Nm 11, 15). Jonas, Jeremias (cf. Jr 15, 16) e outros profetas proferiram lamentos semelhantes. Davi e outros salmistas clamaram contra a demora de Deus, e ressentiram-se de que os maus prosperavam enquanto padeciam os justos. Por vezes, eles chegaram a usar a linguagem de um processo judicial. Frequentemente soam clamores de Úsquequo?, “Até quando, Senhor?”, nos Salmos. Até no Novo Testamento os mártires pedem a Deus que vingue-lhes o sangue (cf. Ap 6, 10). Mais adiante Jesus é descrito matando os iníquos com a espada (de sua palavra) que sai-lhe da boca (cf. Ap 19, 15). Sim, a cólera, a vingança, o desespero, a dúvida e a indignação, todos eles são usados na linguagem orante das Escrituras. É um tipo de oração honesta e com os pés no chão. É como se Deus estivesse dizendo: 

Eu quero que tu fales comigo e rezes [a partir] de tuas verdadeiras disposições, mesmo que obscuras e aparentemente desrespeitosas. Quero que faças delas o tema da tua oração. Não desejo orações falsas e fingidas. Eu escutarei tuas palavras mais sombrias. Encontrar-me-ei contigo e, depois de ter-te ouvido, não te darei simplesmente o que pedis, mas com certeza te escutarei. Por vezes, vou mostrar-te a minha justiça final, chamar-te à paciência e exortar-te a que não te vingues (cf. Rm 12, 19). Noutras ocasiões, falarei como fiz a Jó (cf. 38–41) e repreender-te-ei o modo de pensar a fim de instruir-te. Ou então: avisar-te-ei do pecado que se oculta atrás de tua cólera e indicar-te-ei uma saída, como fiz a Caim (cf. Gn 4, 7) e a Jonas (cf. Jn 4, 11). Outras vezes, ainda, vou limitar-me a ouvir-te em silêncio, pois compreendo que a tua tempestade passa quando falas a mim com sinceridade. Mas eu sou teu Pai. Amo-te e quero que rezes a mim em tua raiva, tristeza e indignação. Não te deixarei sem instrução e, portanto, sem conselho.

Não me parece óbvio que falar desses sentimentos tão comuns seja causa de sofrimento psicológico. Pelo contrário, é o ocultamento e supressão de tais coisas que causa sofrimento psicológico. 

“Moisés, o amigo de Deus”, por Frank O. Salisbury.

Como sacerdote, deparo-me com muitas pessoas que acham que não devem revelar a Deus suas emoções sombrias e negativas. Isso não é saudável. Leva a uma raiva latente e à depressão. Confrontar nossas emoções negativas — sem as demonizar nem canonizar — e apresentá-las a Deus como nos mostra a Escritura é a forma mais segura de evitar “sofrimento psicológico”. Deus é aquele que nos cura; e, se devemos aprender a falar sinceramente com um médico, quanto mais com o Senhor. Entendidos de forma apropriada (viz. S. Tomás), os versículos imprecatórios e outros trechos das Escrituras tornam-se para nós um modelo de oração.

Discussões desse tipo devem seguramente continuar no seio da Igreja. Os versículos imprecatórios podem ser restaurados um dia. Por ora, a Igreja escolheu omitir as imprecações mais severas. Acredito que deveríamos reconsiderar isso. O Saltério completo dado por Deus Espírito Santo é o melhor Saltério.

Ouça esta leitura de um dos Salmos omitidos (109 [108]) e repare na intensidade da linguagem. Mas recorde as reflexões de Santo Tomás, e que tais versículos, mesmo duros, tornam-se momentos de aprendizado. Por fim, lembre-se que estes Salmos eram rezados pela Igreja até 1970.

Notas

  1. No original: This is especially true of the psalms that are repeated every four weeks, all year long, every year. Se o sentido de every four weeks for “todo mês”, como traduzimos, o autor está falando dos Salmos como um todo, pois o Saltério da atual Liturgia das Horas está distribuído ao longo de quatro semanas. Mas também é possível entender, aqui, que ele está falando especificamente dos Salmos que se repetem “a cada semana” — ou seja, os Salmos das Completas, o Miserere, o Dixit Dominus e o Salmo 8 (sobretudo porque não há uma vírgula depois de psalms, o que dá à oração subordinada subsequente um sentido restritivo). Também porque é algo que já notamos: é muito mais fácil gravar os Salmos no antigo Ofício Divino que no novo. Pois no antigo todos os Salmos se repetem a cada semana; no novo, não. (N.T.)
  2. Alimentos kosher são os que cumprem as normas estabelecidas pela lei judaica tradicional (N.T.).

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