No rito romano [tridentino], a história de Susana é lida como epístola do sábado da 3.ª semana da Quaresma. Trata-se da leitura mais longa de todo o ano. Esse episódio não se encontra no texto hebraico de Daniel, mas, nos manuscritos da Septuaginta, aparece no início do livro, provavelmente porque no versículo 45 Daniel é chamado de puer iunior (“rapaz mais jovem”), expressão que aparentemente era entendida como “mais jovem do que ele era quando o resto da história aconteceu”. 

Quando São Jerônimo produziu o conjunto de traduções agora conhecido como Vulgata, ele relegou a história ao final do livro, junto com outro episódio “apócrifo” conhecido como “Bel e o dragão” — daí a designação comum de Susana como capítulo 13 de Daniel. 

Bem antes da época de Jerônimo, no entanto, o grande exegeta bíblico Orígenes defendera a canonicidade de Susana numa carta a seu amigo Africano (Africanus). Segundo este, os jogos gregos de palavras presentes no livro provavam que ele não poderia ser parte do texto original. É muito importante notar que a defesa da história por Orígenes, bem como dos outros livros deuterocanônicos, repetidamente se refere ao “uso” do livro nas igrejas, isto é, na liturgia. Ele também cita um dito do livro dos Provérbios: “Vós não deveis remover os marcos antigos que puseram vossos pais” (22, 28), uma passagem que há muito fôra entendida por comentaristas judaicos como um preceito para se preservar os costumes religiosos antigos. A opinião dele, diferente da de S. Jerônimo, é claramente a da maioria dos cristãos primitivos, como consta não só em considerações de natureza teórica, mas também na primeva arte cristã, bem como nas tradições antigas acolhidas nos lecionários.

Um contemporâneo de Orígenes fornece uma base exegética para entender a importância da história de Susana na Igreja primitiva. Entre os fragmentos de um comentário a Daniel escrito por Hipólito de Roma (que morreu por volta do ano 236), lê-se em relação a Susana que ela “prefigurava a Igreja; Joaquim, seu esposo, a Cristo; o jardim ou pomar, a vocação dos santos, que como árvores frutíferas foram plantados na Igreja. Babilônia é o mundo. Os dois anciãos são figura dos dois povos que armam insídias contra Igreja: o da circuncisão e o dos gentios” (In Susannam 7: PG 10, 690) [i]. E mais à frente:

Ora, pode-se ainda entender verdadeiramente o que aconteceu a Susana. Com efeito, vê-lo-ás cumprir-se hoje também na Igreja. Quando os dois povos acordam em perder alguns da Igreja, buscam o momento oportuno; entram na casa de Deus, enquanto todos ali rezam e louvam a Deus, arrastam presos [para fora] a alguns deles e, segurando-os, dizem-lhes: “Vinde! Tende os mesmos sentimentos que nós, e prestai culto aos deuses! Se o não quiserdes, levantaremos contra vós [falso] testemunho!” Aos que se recusam, levam-nos aos tribunais e os acusam de agir contra as ordens de César e os condenam à morte (In Susannam 22: PG 10, 694).

Não podemos dizer com certeza se é especificamente a interpretação de Hipólito que influenciou a Igreja primitiva a inserir a história de Susana na Quaresma. Mas é certo que as leituras quaresmais para a Missa eram escolhidas, em grande parte, como lições para os catecúmenos que seriam batizados na Páscoa, e a história de Susana era lida para preparar os novos cristãos para a realidade da perseguição no Império Romano. Isso se reflete na arte das catacumbas, onde histórias do lecionário quaresmal são sempre muito proeminentes — entre elas a de Susana. Na Catacumba de Pretextato, por exemplo, ela aparece como um cordeiro (o nome Susana está escrito sobre ela), com dois lobos em cada um dos lados intitulados de seniores (“anciãos”).

Na Catacumba de Priscila, a história aparece em três partes na câmara funerária conhecida como Capela Grega, feita na segunda metade do século II d.C. À direita, os dois anciãos apontam para o abdômen de Susana, indicando que “ardiam de paixão por ela” (v. 8); à esquerda, os dois anciãos, depois de rejeitados por Susana, acusam-na de adultério diante do povo e põem as mãos sobre a sua cabeça (v. 34). Ela é condenada à morte, mas o profeta Daniel, inspirado pelo Senhor, salva Susana questionando os dois anciãos em separado onde exatamente no jardim de Joaquim eles viram acontecer o suposto adultério. Quando eles dão respostas diferentes, os judeus da Babilônia percebem que ela era inocente e condenam à pena capital os dois velhos; na cena final, Daniel e Susana dão graças a Deus pela libertação dela.

Igreja de Santa Susana, em Roma. Obra arquitetônica de Carlo Maderno.

Em Roma, a estação do sábado da 3.ª semana da Quaresma é mantida na igreja de Santa Susana [ii], que segundo a tradição morreu martirizada, assim como seu tio, o Papa São Caio (283-96), e seu pai, São Gabino, sob o Imperador Diocleciano. Essa estação claramente foi escolhida devido à coincidência dos nomes; no rito de Paulo VI, a história de Susana foi transferida para a segunda-feira da tradicional Semana das Dores [iii], ainda que as estações não tenham sido rearranjadas de acordo. No lecionário de 1969, ela também pode ser lida numa forma abreviada, que começa diretamente com a condenação de Susana (no versículo 41). 

Na liturgia ambrosiana, que em muitos aspectos inspirou as revisões pós-conciliares, a associação com a Paixão do Senhor é feita de modo ainda mais explícito. A leitura é assinalada para a Quinta-feira Santa, a qual no lecionário milanês é muito mais focada na Paixão que na instituição da Eucaristia. Num ofício de leituras e orações recitado depois da hora Terça, a primeira leitura é a de Susana; o psalmellus (equivalente ao gradual no rito romano) que se segue é tirado do Salmo 34: “Levantaram-se testemunhas injustas: interrogavam-me sobre o que eu ignorava. Tornavam-me males por bens” (v. 11s). A segunda leitura é do livro da Sabedoria (2, 12-25), começando com as palavras: “Naqueles dias disseram os ímpios um ao outro: Armemos laços ao justo, porque nos é molesto, contrário às nossas obras; lança-nos em rosto as transgressões da lei, acusa-nos de falta contra a nossa educação”. O Evangelho imediatamente subsequente, Mt 26, 14-16, fala da traição de Judas, que vende o Senhor por trinta moedas de prata.

Ainda que a leitura tenha sido escolhida a fim de preparar os catecúmenos para a pertença a uma seita perseguida, ela continuou em uso depois da liberdade da Igreja, assim como muitas outras referências litúrgicas à “era dos mártires”. No Breviário de São Pio V, vemos uma explicação para isso no II Nocturne do Domingo da Paixão, tirado do IX Sermão para a Quaresma do Papa São Leão Magno: 

Das solenidades cristãs, diletíssimos, não ignoramos ser o sacramento pascal a principal de todas, e para o receber digna e adequadamente nos educam as celebrações de todo o tempo [litúrgico]; exigem porém nossa devoção sobretudo os dias presentes, que sabemos são os mais próximos daquele sublimíssimo sacramento da divina misericórdia. Por isso ordenaram os Apóstolos, instruídos pelo Espírito Santo, que neles se fizessem maiores jejuns, a fim de que, pela comum união à cruz de Cristo, também nós fizéssemos algo do que Ele mesmo fez por nós, como diz o Apóstolo: “Se compadecemos, então seremos conglorificados”, pois é certa e segura a esperança da bem-aventurança prometida onde se participa da Paixão do Senhor.

Ninguém há, diletíssimos, a que se negue, por sua condição temporal, associar-se a esta glória, como se a tranquilidade da paz não fora também ocasião de virtude. Com efeito, prega o Apóstolo, dizendo: “Todos os que piamente desejam viver em Cristo sofrerão perseguição”, e por isso nunca há de faltar a tribulação de ser perseguido, se nunca faltar a observância da piedade. O Senhor mesmo, em suas exortações, o diz: “Quem não toma a sua cruz e me segue não é digno de mim”. Tampouco devemos duvidar que estas palavras se dirigem não só aos discípulos de Cristo, mas a todos os fiéis e a toda a Igreja, a qual ouvia universalmente, nos que estavam presentes, os preceitos da salvação.

Notas

  1. O leitor entenderá que a citação não foi escolhida para corroborar os sentimentos antissemitas de Hipólito (N.A.).
  2. Chamavam-se “estações” (stationes) as igrejas de um determinado lugar onde os fiéis católicos paravam (e permaneciam em pé, stantes), durante procissões, para assistir à celebração da liturgia em dias penitenciais. O termo foi perdendo seu sentido ao longo do tempo, mas Roma preservou praticamente todos os registros de suas igrejas “estacionárias” — embora essas celebrações acontecessem também, como se sabe, em Jerusalém e Constantinopla. É por isso que, nos Missais da forma antiga do Rito Romano, os ofícios dos dias quaresmais vêm sempre acompanhados da “estação” em alguma igreja romana (N.T.).
  3. A semana que antecede a Semana Santa é conhecida simplesmente como Semana das Dores, em alusão à devoção das Sete Dores de Nossa Senhora, celebrada na sexta-feira anterior à da Paixão. No rito antigo, era chamada também de 1.ª Semana da Paixão (N.T.).

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