O título tradicional da festa de hoje é Dedicação de São Miguel Arcanjo, um termo já encontrado nos sacramentários antigos e no Lecionário de Wurzburg, do século VIII, o mais antigo que chegou até nós do rito romano. 

O Martirológio equivocadamente atribui esta festa à dedicação do famoso santuário de São Miguel no Monte Gargano, na região italiana da Puglia, seguindo uma tradição medieval atestada por Guilherme Durando no final do século XIII. Na realidade, o título tem origem com a dedicação de uma igreja construída antes do século VII na Via Salária, a cerca de 10km dos portões de Roma, e permaneceu em uso muito tempo depois que a própria basílica veio abaixo. 

A liturgia ambrosiana tradicional, que tomou a festa emprestada de Roma, de certa forma preservou melhor que o próprio rito romano a memória de sua origem; pois não só utiliza o mesmo nome romano, como adota também vários cantos da Missa, assim como a Epístola e o Evangelho do Comum para a dedicação de uma igreja.

Não obstante o título da festa se referir especificamente só a São Miguel, 29 de setembro é, na verdade, a festa de todos os anjos, como se afirma várias vezes nos textos tanto do Ofício quanto da Missa. O Introito é retirado do Salmo 102 [e foi mantido como antífona de entrada no rito de Paulo VI]:

Benedícite Dóminum, omnes angeli eius: poténtes virtúte, qui fácitis verbum eius, ad audiéndam vocem sermónum eius — “Bendizei o Senhor, vós todos os seus anjos, que sois poderosos em força, que executais as suas ordens, prontos para obedecer à sua palavra” (Sl 102, 20).

Este mesmo versículo é repetido, em parte, no Gradual. [No rito novo, o versículo aleluiático traz a passagem subsequente, v. 21: Benedícite Dómino, omnes virtútes eius, minístri eius qui fácitis voluntátem eius — “Bendizei ao Senhor Deus, os seus poderes, seus ministros que fazeis sua vontade”.]

A Comunhão é tomada da antiga versão latina para o cântico dos três jovens na fornalha ardente: Benedícite, omnes angeli Dómini, Dóminum: laudáte et superexáltate eum in sæcula — “Anjos do Senhor, bendizei o Senhor, louvai-o e exaltai-o por todos os séculos” (Dn 3, 58). [No rito atual, consta como antífona de comunhão o Salmo 137, 1: Confitébor tibi, Dómine, in toto corde meo, in conspéctu angelórum psallam tibi — “Graças vos dou, Senhor, de todo o coração, na presença dos anjos eu vos louvo”.]

Já a coleta da Missa não faz nenhuma referência a São Miguel: 

Deus, qui miro órdine, Angelórum ministéria hominúmque dispénsas: concéde propítius; ut, a quibus tibi ministrántibus in caelo semper assístitur, ab his in terra vita nostra muniátur. Per Dóminum nostrum. — Ó Deus, que dispondes de modo admirável o ministério dos anjos e dos homens, fazei, por vossa misericórdia, que sejamos defendidos na terra por aqueles que sem cessar Vos servem e assistem no Céu. Por Nosso Senhor Jesus Cristo.

O hino do Ofício para as Laudes [que começa com Christe, sanctórum decus Angelórum] fala de todos os anjos em sua primeira estrofe e, nas três seguintes, menciona São Miguel, São Gabriel e São Rafael, os únicos arcanjos a ter os nomes mencionados de forma específica na Bíblia. 

[Segue o hino em latim, com tradução litúrgica de Dom Marcos Barbosa (i):

Christe, sanctórum decus Angelórum,
Rector humáni géneris et auctor:
Nobis ætérnum tríbue benígnus
Scándere cælum.

Ó Cristo, glória dos Anjos,
Que homens crias e redimes,
Dá-nos no céu conquistar
Tronos sublimes.

Angelum pacis Míchael ad istam
Cælitus mitti rogitámus aulam,
Nobis ut crebro veniénte crescant
Próspera cuncta.

Anjo da paz, ó Miguel,
Desce um pouco à nossa terra.
Longe, bem longe, relegues
A crua guerra!

Angelus fortis Gabriel, ut hostem
Pellat antíquum, vólitet ab alto,
Sæpius templum véniens ad istud
Vísere nostrum.

Tu, Gabriel, anjo forte,
Com os inimigos peleja!
Por Deus fundada visita
A Santa Igreja.

Angelum nobis, médicum salútis,
Mitte de cælis Ráphael, ut omnes
Sanet ægrótos, paritérque nostros
Dírigat actus.

Tu, Rafael, Anjo amigo,
De todos nós medicina,
Cura o doente, e ao errante
O porto ensina.

Hinc Dei nostri Génitrix María,
Totus et nobis chorus Angelórum
Semper assístat, simul et beata
Cóncio tota.

Virgem, Rainha dos Anjos,
Por eles todos servida,
Com os santos dá-nos ajuda
Por toda a vida.

Præstet hoc nobis Déitas beáta
Patris ac Nati, paritérque Sancti
Spíritus, cuius réboat in omni
Glória mundo. Amen.

Ao Pai e ao Filho louvor
Ao Espírito também;
Ressoe o canto
No orbe inteiro. Amém.

Na atual Liturgia das Horas, este hino foi remodelado, constando agora numa versão de quatro estrofes nas Vésperas da festa dos três arcanjos.]

Todavia, na versão grega do Livro de Tobias (12, 15), São Rafael se refere a si mesmo como “um dos sete (espíritos principais) que assistimos diante do Senhor”. Isso deu origem a um costume bizantino de representar sete arcanjos reunidos em torno do Senhor; muitos ícones com esse tema atribuem nomes aos outros quatro com base em várias fontes apócrifas. Um deles é chamado Uriel, que é mencionado várias vezes no Livro de Enoque, citado por São Judas em sua epístola (v. 14-15). Os nomes dos três restantes não são os mesmos em todas as fontes; este ícone russo do século XIX chama-os de Jegudiel, Salatiel e Baraquiel.

A festa bizantina de todos os anjos é celebrada em 8 de novembro e, assim como a festa romana, teve sua origem com a dedicação de uma igreja: a basílica em Constantinopla conhecida como Michaelion, “Miguélio”, cuja construção é tradicionalmente atribuída ao próprio Constantino. O título formal da festa é “Sinaxe dos Grandes Comandantes (ἀρχιστρατήγων) Miguel e Gabriel, e das demais Potestades Incorpóreas”. Curiosamente, os textos litúrgicos para a festa não fazem referência nem a São Rafael, nem a qualquer outro dos anjos, nem tampouco à origem da celebração.

Na Idade Média, muitos lugares imitaram o costume romano de celebrar uma segunda festa de São Miguel, comemorando a famosa aparição que levou à construção do santuário no Monte Gargano. No norte da Europa, contudo, encontramos em vez disso a festa de “São Miguel no Monte Tumba” (nome latino do famoso Monte Saint-Michel) — como, por exemplo, no Uso Sarum [ii], que a celebrava em 16 de outubro. A Missa votiva de todos os anjos já estava em uso comum no início do século IX, como atestou Alcuíno de Iorque, e está presente entre as Missas votivas de todos os missais medievais. Todavia, só muito raramente se acha uma festa de São Gabriel ou dos anjos da guarda no período pré-tridentino. Às vezes se encontra uma Missa de São Rafael entre as votivas a ser rezadas especialmente pelos doentes, mas eu não encontrei referência alguma a um dia mesmo de festa para ele no período medieval.

“Os três arcanjos e Tobias”, por Francesco Botticini.

No ano de 1670, o Papa Clemente X adicionou ao Calendário Romano Geral uma festa dos anjos da guarda, que havia sido concedida ao Império Austríaco por Paulo V no início daquele século. A festa era celebrada em alguns lugares no primeiro domingo de setembro, mas a data comum, 2 de outubro, foi escolhida por ser o primeiro dia disponível após a festa de São Miguel.

O Papa Bento XV, que reinou de 1914 a 1922, teve um interesse particular na devoção aos anjos. No final de 1917, ele elevou a festa de São Miguel ao grau mais elevado, duplo de primeira classe, juntamente com a festa de São José a 19 de março. Em 1921, acrescentou ao calendário geral as festas de São Gabriel e São Rafael, a primeira no dia anterior à Anunciação e a última em 24 de outubro, sem nenhuma razão aparente. 

A festa da Aparição de São Miguel foi removida do calendário geral em 1960. Na reforma litúrgica pós-conciliar, adicionaram-se São Gabriel e São Rafael ao dia 29 de setembro e suprimiram-se as suas festas próprias, bem como a tradicional referência, no título da festa, à dedicação de uma igreja (cf. Calendarium Romanum, p. 104).

Notas

  1. Retirada de Diurnal Monástico: Horas diurnas do Breviário Beneditino. Rio de Janeiro: Edições Lumen Christi, 1962, p. 804s. Uma tradução mais literal das quatro primeiras estrofes daria o seguinte: “1. Ó Cristo, glória dos santos Anjos, / Autor e guia do gênero humano, / Concede-nos benigno subir / Ao Céu eterno. 2. A Miguel, o anjo da paz, / Do Céu nós rogamos envies à terra / Para que, vindo a nós com frequência, / Tudo de próspero cresça. 3. Oxalá Gabriel, o anjo forte, / Para afastar o antigo inimigo, / Venha muitas vezes voando do alto / Para visitar nosso templo [= a Igreja]. 4. Ao médico da salvação, Rafael, / Manda dos céus a fim de curar / Todos os doentes, e também / Dirigir nossos atos. 5. E que assim Maria, Mãe de nosso Deus, / Com o coro dos Anjos inteiro / E toda a feliz assembleia [dos santos] / Sempre nos assista”.
  2. O Sarum é uma variante do rito romano usada nas Ilhas Britânicas antes da Revolução Anglicana de Henrique VIII, do Livro de Oração Comum de Jaime I e da Bula Quo Primum Tempore, do Papa São Pio V.

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