Os santos normalmente têm suas festas litúrgicas celebradas no dia em que morreram. É o que chamamos dies natalis, ou seja, o dia em que aquele santo “nasceu” para o Céu. Mas e quando honramos um espírito celeste, que nunca teve nem terá corpo, qual o critério para fixar a data de sua festividade na Igreja? 

Não existe um critério único, eis a verdade. E está aí a festa dos três arcanjos São Gabriel, São Miguel e São Rafael para provar. 

Por um tempo (de 1921 a 1969, para ser mais exato), São Gabriel e São Rafael tinham datas específicas no calendário litúrgico. Foi o Papa Bento XV quem lhes deu festas especiais, tendo em vista o “incremento da piedade” no povo cristão. Como mandasse no mesmo decreto [i] que a Sagrada Família fosse celebrada no domingo seguinte à festa da Epifania — festa que hoje se encontra na Oitava de Natal —, para fixar as datas desses arcanjos também se levou em conta a relação deles com o mistério da família: 

  • Gabriel anunciou a Encarnação do Filho eterno de Deus — por isso seu dia era 24 de março, véspera da Anunciação; e 
  • Rafael abençoou a família de Tobias no Antigo Testamento — mas a data escolhida para sua festa, 24 de outubro, só tem sentido pela proximidade com a dos Santos Anjos da Guarda (2 de outubro) e a de São Miguel. 

O príncipe das milícias celestes, por sua vez, sempre foi celebrado na data atual: 29 de setembro. No ano 530, o Papa Bonifácio II dedicou uma basílica em honra dele na Via Salária, em Roma, com as cerimônias começando na noite de 29 de setembro e terminando no dia seguinte. A basílica desapareceu mais de um milênio atrás, mas a festa continuou comemorando o fato. Por isso, até a reforma litúrgica pós-Vaticano II, o nome completo da festa de São Miguel era In Dedicatione S. Michaëlis Archangelis.

Hoje, por mais que se lembrem os três arcanjos no mesmo dia, e isso desde 1969, o foco da festa continua em São Miguel — e essa ênfase dificilmente irá mudar.

São Miguel nas Sagradas Escrituras

Primeiro porque o nome de Miguel pervade as Escrituras, a Tradição e toda a história da Igreja. O profeta Daniel fala dele como “um dos primeiros príncipes” dos anjos e “príncipe” específico de Israel (cf. Dn 10, 13.21: Vulgata), numa clara referência à guarda que os anjos exercem sobre nós. O mesmo profeta e o Apocalipse de São João o identificam ainda como protagonista nas batalhas dos últimos tempos:

Naquele tempo se levantará Miguel, o grande príncipe, protetor dos filhos do teu povo. Será um tempo de tal angústia, qual não houve desde que os povos começaram a existir até então. Nesse tempo será salvo teu povo, todo aquele que estiver inscrito no livro da vida (Dn 12, 1).

Houve no céu uma batalha: Miguel e os seus anjos pelejavam contra o Dragão, e o Dragão com os seus anjos pelejava contra ele; porém estes não prevaleceram, nem o seu lugar se encontrou mais no céu. E foi precipitado o grande Dragão, a antiga Serpente, que se chama Demônio e Satanás, que seduz todo o mundo; foi precipitado na terra, e foram precipitados com ele os seus anjos (Ap 12, 7ss).
“O Arcanjo Miguel derrota Satanás”, por Guido Reni.

O penúltimo livro da Bíblia também faz uma menção curiosa a São Miguel: “Quando o arcanjo Miguel, disputando com o demônio, altercava sobre o corpo de Moisés, não se atreveu a proferir contra ele uma acusação injuriosa, mas disse (somente): Reprima-te o Senhor” (Jd 9). 

Note-se em primeiro lugar que o único arcanjo identificado como tal nas Escrituras é São Miguel, e justamente nessa passagem. São Gabriel e São Rafael são chamados simplesmente de anjos.

Em segundo lugar, de acordo com Orígenes e São Clemente de Alexandria, o Autor Sagrado estaria se referindo a uma tradição hebraica, segundo a qual Satanás queria tornar conhecido o lugar em que Moisés tinha sido sepultado, a fim de seduzir os judeus para a idolatria de seus restos mortais. No entanto, Miguel lutou com o diabo e conseguiu manter oculto o lugar do sepulcro. Essa história misteriosa é contada num apócrifo chamado “A Assunção de Moisés” [ii].

Em terceiro lugar, percebam como São Miguel vence o demônio com sua humildade. Ao invés de acusá-lo, simplesmente lhe diz: “Reprima-te o Senhor”; em latim: Imperet tibi Dominus. O Papa Leão XIII introduziu as mesmas palavras em sua famosa oração a São Miguel, só substituindo o tibi (“te”) por illi (“lhe”) — já que a prece se dirige ao arcanjo, e não ao demônio. Daí o “Ordene-lhe Deus” que rezamos no meio dessa invocação ao príncipe das milícias celestes.

Os Santos Padres também intuíram a presença de São Miguel em vários outros trechos da Escritura. Para alguns, por exemplo, era ele o querubim posto à entrada do Éden com uma espada flamejante para guardar o caminho da árvore da vida (cf. Gn 3, 24). Para outros, era ele também o anjo através do qual Deus revelou os Mandamentos a Moisés, o anjo que serviu de obstáculo a Balaão (cf. Nm 22, 22ss) e o anjo que feriu o exército de Senaqueribe (cf. 2Rs 19, 35).

São Miguel na liturgia da Igreja

A liturgia atribui a ele mais funções ainda. 

Até a reforma litúrgica pós-Vaticano II, o anjo do Apocalipse que se pôs junto ao altar do templo com um turíbulo de ouro (cf. Ap 8, 3) era identificado com São Miguel. Por isso a bênção do incenso usado nas Missas solenes sempre o mencionava:

Per intercessiónem beáti Michaélis archángeli, stantis a dextris altáris incénsi, et ómnium electórum suórum, incénsum istud dignétur Dóminus benedícere, et in odórem suavitátis accipére. Per Christum Dóminum nostrum. Amen. — Pela intercessão do bem-aventurado arcanjo São Miguel, que está à direita do altar do incenso, e de todos os seus eleitos, digne-se o Senhor abençoar este incenso e recebê-lo qual suave perfume. Por Jesus Cristo Senhor nosso. Amém.

O Confiteor do rito antigo (“Confesso a Deus todo-poderoso…”) também mencionava expressamente o nome de São Miguel, entre os de Nossa Senhora e São João Batista. Na prática, isso significa que Miguel era mencionado pelo menos sete vezes em toda Missa (sem exceção, já que a única fórmula penitencial no rito de São Pio V era o Confiteor seguido do Kyrie). 

Há mais. Além de ter exclusividade no dia 29, o grau da festa de São Miguel era o máximo (equivalente à nossa solenidade), sobrepondo-se inclusive aos domingos. Por isso, a festividade tinha início na tarde do dia anterior, com as chamadas I Vésperas. A antífona do Magnificat para essa primeira hora incluía até uma citação direta de São Miguel que não está na Bíblia. Nela, o arcanjo implora perdão pelo povo a Jesus Cristo:

Dum sacrum mystérium cérneret Ioánnes, Archángelus Míchaël tuba cécinit: Ignósce, Dómine, Deus noster, qui áperis librum, et solvis signácula eius, allelúia. — Contemplando João o mistério sagrado, o arcanjo Miguel fez soar a trombeta: Perdão, ó Senhor, nosso Deus, que abres o livro e rompes os seus selos, aleluia.

Esse livro fechado a sete selos a que o Apocalipse faz referência mais de uma vez nada mais é que o decreto divino com relação ao mundo, que só o Cordeiro de Deus é digno de receber e cujos selos só Ele pode abrir.

Por fim, na esteira da ladainha que os fiéis rezam ao longo de toda a quaresma devocional a São Miguel, o usus antiquior também o invocava como protetor das almas do Purgatório. Era o que dizia expressamente a 3.ª antífona para as Laudes e Vésperas de sua festa — Archángele Míchaël, constítui te príncipem super omnes ánimas suscipiéndas, “Arcanjo Miguel, eu te fiz príncipe de todas as almas que se hão de salvar” — e também o versículo de Ofertório de todas as Missas pelos defuntos:

Dómine Jesu Christe, Rex glóriae, líbera animas ómnium fidélium defunctórum de paenis inferni et de profúndo lacu: líbera eas de ore leónis, ne absórbeat eas tártarus, ne cadant in obscúrum, sed sígnifer sanctus Míchaël repraeséntet eas in lucem sanctam: Quam olim Abrahae promisísti, et sémini ejus. — Senhor Jesus Cristo, Rei da glória, livrai as almas de todos os fiéis defuntos das penas do inferno e do abismo profundo; livrai-as da boca do leão, não as absorva o tártaro, nem caiam nas trevas; mas que o vosso porta-bandeira S. Miguel as leve à santa luz: Que outrora prometestes a Abraão e à sua posteridade.

Aparições históricas de São Miguel

Não bastasse tudo isso, São Miguel ainda apareceu a várias pessoas ao longo de toda a história da Igreja.

Comecemos pela famosa aparição do arcanjo no Monte Gargano, na Itália. A Legenda Áurea narra assim a história: 

As aparições desse anjo são numerosas. A primeira aconteceu no monte Gargano, na Apúlia, montanha situada perto da cidade de Siponto. No ano do Senhor de 390 havia na cidade de Siponto um homem que segundo alguns autores chamava-se Gargano, nome tirado da montanha ou que dera o nome à montanha. Ele possuía um imenso rebanho de ovelhas e de bois, e um dia em que esses animais pastavam na encosta do monte um touro afastou-se dos outros para subir ao cume e não retornou com o rebanho. O proprietário reuniu grande número de serviçais a fim de procurá-lo e por fim encontrou-o no alto da montanha, na entrada de uma caverna. Irritado porque o touro vagava assim sozinho, ao acaso, lançou imediatamente contra ele uma flecha envenenada, mas no mesmo instante a flecha, como se tivesse sido empurrada pelo vento, voltou-se e atingiu quem a arremessara. Os habitantes da cidade, perturbados, foram procurar o bispo e pediram seu conselho sobre uma coisa tão estranha. Ele ordenou três dias de jejum e disse que se devia pedir a explicação daquilo a Deus. Depois disso São Miguel apareceu ao bispo, dizendo: “Saiba que aquele homem foi atingido por seu dardo por minha vontade. Eu sou o arcanjo Miguel, e quis mostrar que na Terra habito este lugar e sou o inspetor e guardião dele”. Então o bispo e todos os cidadãos foram em procissão àquele local, e sem ousarem entrar ficaram rezando diante da entrada [iii].

Verdade ou não? Nenhum católico é obrigado a acreditar nesse relato com todos os detalhes, mas a verdade é que o Santuario di San Michele Arcangelo existe, é o mais antigo do Ocidente dedicado ao príncipe das milícias celestes, e até 1962 essa aparição era recordada todos os anos pela Igreja no dia 8 de maio. O nome da festa era simplesmente In Apparitione S. Michaëlis Archangeli.

Escultura de São Miguel no topo do Castel Sant’Angelo, em Roma.

Outra aparição muito célebre do arcanjo se deu em Roma, no tempo de São Gregório Magno (final do século VI, portanto), quando a Cidade Eterna era devastada pela peste bubônica. Durante uma procissão pela salvação do povo, o Papa teria visto São Miguel sobre o lugar antigamente chamado “Mausoléu de Adriano”, limpando uma espada ensanguentada e colocando-a de volta na bainha. O santo viu nisso um sinal de que Deus tinha atendido às preces do povo e a peste chegara ao fim. Por isso, mandou que se construísse ali uma igreja em honra ao Sant’Angelo — nome que o belo castelo conserva até hoje, na margem direita do rio Tibre, bem perto da Cidade do Vaticano.

Foi também em Roma que nasceu, em 1886, a oração mais conhecida que temos a São Miguel Arcanjo — “São Miguel Arcanjo, defendei-nos no combate, sede nosso refúgio contra as maldades e ciladas do demônio…”. Um cardeal da Santa Igreja se certificou, com ninguém menos que o secretário pessoal do Papa Leão XIII, de que este “realmente teve uma visão dos espíritos infernais, que se reuniam sobre a Cidade Eterna, e foi desta experiência… que veio a oração que ele queria em toda a Igreja” [iv]. 

Um relato de 1947 do Padre Domenico Pechenino (que teria ouvido uma história parecida de alguém que presenciara os fatos) traz ainda mais detalhes de como a referida oração nasceu: 

[Leão XIII] havia celebrado a Santa Missa e estava assistindo a uma outra em ação de graças, como era seu costume. A certa altura, ele foi visto levantando energicamente a cabeça, depois fixou o olhar, observando fixamente alguma coisa acima da cabeça do celebrante. Ele olhou firme, sem piscar, mas com uma sensação de terror e admiração, mudando a cor do rosto. Algo de estranho e grandioso acontecia nele… Finalmente, como permanecendo em si mesmo e dando um leve mas enérgico golpe com a mão, ele se levantou. Foi visto então indo em direção a seu escritório particular. Os membros da família [familiari] foram atrás dele com preocupação e ansiedade. “Santo Padre!”, gritaram com veemência. “Não está se sentindo bem? Precisa de algo?” — “Nada, nada!”, respondeu. Trancou então a porta. Depois de meia hora mandou chamar o secretário da Sagrada Congregação dos Ritos e, entregando-lhe uma folha, ordenou que fosse impressa e enviada para todos os Ordinários do mundo. O que havia na folha? A oração que recitamos no final da Missa com o povo [v].

Embora não possamos assegurar qual foi o conteúdo dessa revelação privada ao Papa, Leão XIII mandou que a oração composta por ele próprio fosse rezada ao final de todas as Missas, e isso efetivamente se deu até 1962, quando o Papa João XXIII aboliu a prescrição. Nem por isso a invocação a São Miguel deixou de ter importância; nem por isso o povo de Deus parou de rezá-la. Na verdade, a disseminação cada vez maior da quaresma devocional ao santo arcanjo — todo ano, vemos mais e mais fiéis pondo-a em prática — é uma garantia de que o amor a ele só cresce entre o povo católico, e assim será até o fim dos tempos, quando ele surgir para travar o combate final contra as trevas.

São Miguel e a primavera

Para dizer a verdade, a atual reunião dos três arcanjos numa só festa manifesta o desejo da Igreja de que, neste dia, celebremos não só Miguel, Gabriel e Rafael, mas todos os anjos de Deus. E isso não é de agora. Já no rito antigo os textos próprios da Missa e do Ofício Divino de 29 de setembro apontavam nessa direção. A Coleta da festa de São Miguel, por exemplo, mantida no rito novo, não faz menção alguma ao príncipe das milícias celestes: 

Deus, qui miro órdine, Angelórum ministéria hominúmque dispénsas: concéde propítius; ut, a quibus tibi ministrántibus in caelo semper assístitur, ab his in terra vita nostra muniátur. Per Dóminum nostrum. — Ó Deus, que dispondes de modo admirável o ministério dos anjos e dos homens, fazei, por vossa misericórdia, que sejamos defendidos na terra por aqueles que sem cessar Vos servem e assistem no Céu. Por Nosso Senhor Jesus Cristo.

Convenhamos: é uma oração belíssima. Os anjos, ministros de Deus, nos são dados como “defensores” nesta vida. Mas não num simples processo judicial. A oração fala de uma batalha mesmo (muniatur, do verbo latino munio, tem a mesma raiz da nossa “munição”). Assim como pedimos a São Miguel que nos defenda no combate, nesta oração a Igreja pede a todos os anjos que sejam nossa “munição” nas lutas desta vida.

A propósito, a festa dos Santos Anjos da Guarda — que está no calendário romano desde 1670 — foi colocada no dia 2 de outubro justamente por ser o único dia “livre” depois de 29 de setembro. Mais uma prova de que a Igreja quer pôr diante dos nossos olhos todos os espíritos bem-aventurados, mais do que um deles, ou três.

Por fim, a proximidade do dia de São Miguel com as Têmporas torna a data ainda mais especial. (Muito mais do que nós, os povos antigos se importavam com fenômenos como as mudanças de estação. Hoje em dia, as pessoas se preocupam mais com notificações de celular, com o barulho das redes sociais, do que em observar a natureza criada por Deus.) O hemisfério norte está saindo do verão para o outono, enquanto nós vamos do inverno para a primavera. Tudo à nossa volta entra em uma nova fase, e a liturgia da Igreja parece refletir a mesma dinâmica: as festas dos anjos agora, a de Todos os Santos no dia 1.º de novembro, o dia das almas do Purgatório logo em seguida, Cristo Rei coroando o ano litúrgico — mais que em qualquer outra época do ano, tudo parece apontar para o Céu, para o que vem de fato em primeiro lugar: primo vere, a verdadeira “primavera” para a qual todos fomos feitos.

Entremos, pois, com nossa Mãe e Mestra nessa nova estação, e que ela seja para nós, pela intercessão de todos os anjos de Deus, kairós, “tempo de graça”.

Referências

  1. Cf. Decreto da Sagrada Congregação para os Ritos (Nonnulla festa cum officiis et missis propriis ad universam Ecclesiam extendentur), 26 out. 1921 (AAS 13 [1921] 543).
  2. Cf. R. H. Charles, The Assumption of Moses. Londres: Adam & Charles Black, 1897, pp. 105–110.
  3. Jacopo de Varazze, Legenda áurea: vidas de santos. Trad. de Hilário Franco Jr. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 813.
  4. Bollettino della Diocesi di Bologna, Ano 36, I-III (1946) 1ss. Para maiores detalhes a esse respeito, cf. “A visão de Leão XIII”, aula n.º 3 do nosso curso A Oração de São Miguel.
  5. La Settimana del Clero, Ano 2, XII, 23 mar. 1947, p. 1.

Notas

  • Vários excertos desta matéria foram feitos com base em: Michael P. Foley, “Michaelmas Day and its Customs”. New Liturgical Movement, 29 set. 2021. 
  • Os textos litúrgicos do rito antigo em português foram todos tirados do Diurnal Monástico: Horas diurnas do Breviário Beneditino. Rio de Janeiro: Lumen Christi, 1962, e do Missal Romano Quotidiano, por D. Gaspar Lefebvre e os Monges Beneditinos de S. André. Trad. dos Monges Beneditinos de Singeverga. Bruges: Biblica, 1963.

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