Poucos documentos tiveram um impacto tão duradouro no cultivo da música sacra quanto o motu proprio de São Pio X Tra le Sollecitudini, promulgado em 22 de novembro de 1903, festa de Santa Cecília, padroeira dos músicos.

O Papa pretendia, com a escrita desse motu proprio, dar início a uma reforma geral da música sacra na vida da Igreja. Sua ideia de reforma não implicava rejeitar o passado e adotar novidades (parece que isso foi justamente o que muitos católicos pensaram ao longo dos últimos cinquenta anos), mas antes retornar de modo resoluto à fonte da Tradição e deixar que o fluxo veloz dessa água pura limpasse os resíduos acumulados em períodos decadentes. 

Ao falar em períodos decadentes, São Pio X não tinha em mente a Idade Média, a era gloriosa da Cristandade, que os liturgistas do pós-guerra consideraram, de modo geral, um distanciamento da simplicidade familiar dos primeiros cristãos. Como Pio XII viria a afirmar 44 anos depois na encíclica Mediator Dei, o Espírito Santo estimula desenvolvimentos litúrgicos em cada época como novos caminhos para santificar o povo de Deus. Tais desenvolvimentos formam uma linha contínua.

Assim, o que acontece num século posterior reforça e elabora o que já está presente in nucleo. Por exemplo, a mudança, em tempos remotos, de uma espécie de Comunhão na mão — não da maneira como é praticada hoje, como Dom Athanasius Schneider mostra cuidadosamente em seus livros Dominus Est e Christus Vincit — para a Comunhão na boca foi um desenvolvimento orgânico que surgiu da própria reverência e adoração à Eucaristia, as quais já estavam presentes e cresciam sob a influência do Espírito Santo. 

Corrupções também podem ocorrer quando uma nova característica ou prática contradiz a letra ou o espírito do que já está estabelecido. Assim, para usar o mesmo exemplo, a reintrodução da Comunhão na mão foi uma clara corrupção, não um desenvolvimento ou uma restauração. Mais importante para nosso tema: a introdução de estilos operísticos ornamentados na Missa, durante os períodos clássico e romântico, foi uma corrupção porque transformou a liturgia num concerto e a desviou de sua orientação sobrenatural.

Esta era a perspectiva de São Pio X: embora sem dúvida fosse um admirador da música de Haydn, Mozart e de compositores italianos em si mesma, considerava seu estilo inadequado para o templo de Deus e os santos mistérios representados nela. Como explica o documento Tra le Sollecitudini, Deus já havia estabelecido com generosidade uma música intensamente contemplativa para a liturgia do rito romano, a saber, o canto gregoriano, um tipo de música que cresceu de modo orgânico com esse rito, sempre o embelezou e dá o tom para toda a música sacra adequada para o templo de Deus.

Os ensinamentos de São Pio X moldaram decisivamente o magistério posterior, de seus sucessores Pio XI e Pio XII, passando pela Constituição sobre a Sagrada Liturgia Sacrosanctum Concilium, do Vaticano II, até a exortação apostólica Sacramentum Caritatis, de Bento XVI. Em todos esses documentos encontramos um reconhecimento irrestrito da primazia do canto gregoriano para o rito romano, embora composições de outros estilos sejam bem-vindas, contanto que estejam em harmonia com a ação litúrgica — algo que, infelizmente, não pode ser dito da maior parte daquilo que passa por “música de igreja” atualmente.

A nobre perspectiva de São Pio X não é irrealista ou inalcançável. Ao longo da primeira metade do século XX e durante boa parte da década de 1960, escolas de todo o mundo ensinavam canto gregoriano às crianças, sacerdotes cantavam a Missa solene (embora a Missa rezada fosse mais popular) e comunidades religiosas cantavam o Ofício Divino. O canto gregoriano era uma característica tão proeminente do catolicismo, que Hollywood criava “atmosferas católicas” instantaneamente com poucos segundos de canto. 

Talvez alguns se surpreendam com o fato de que Thomas Merton, que se tornou tão controverso no período mais tardio de sua vida, por causa de seu envolvimento com política e atividades inter-religiosas, tenha se oposto firmemente ao abandono do latim e do canto. Como disse em 1964 a Dom Inácio Gillet, Abade Geral dos Cistercienses de Estrita Observância:

Isto é o que penso sobre o latim e o canto gregoriano: são obras de arte que nos proporcionam uma experiência monástica e cristã insubstituível. Têm força, energia e profundidade sem precedentes. Todos os ofícios em inglês que foram propostos são muito pobres — além disso, não é de modo algum difícil tornar o latim e o canto compreensíveis e valorizados. De modo geral, no noviciado, sou bem-sucedido nesse quesito, naturalmente com algumas exceções, que não os compreendem bem. No entanto, tenho de acrescentar algo mais sério. Como se sabe, tenho muitos amigos artistas, poetas, autores, editores etc. Ora, eles são perfeitamente capazes de apreciar nosso canto e mesmo nosso latim. Mas todos, sem exceção, estão escandalizados e aflitos quando lhes digo que este Ofício e esta Missa provavelmente não estarão mais aqui em dez anos. Isso é péssimo. Os monges não compreendem o tesouro que possuem e o jogam fora a fim de buscar algo diferente. Os leigos, por sua vez, que na sua maioria sequer são cristãos, são capazes de amar essa arte inigualável.

A dificuldade veio, mais propriamente, de uma falsa noção de “atualização” ou modernização — perspectiva que ganhou influência lentamente e, ao fim e ao cabo, dominou a reforma litúrgica e sua implementação, segundo a qual as antigas formas de oração e modos de arte são estranhas ao homem moderno, alienantes, excessivamente rigorosas e uma tentação para o elitismo e o escapismo. Porém, esse juízo tão negativo não parece ter sido comum entre muitos católicos, que não pediram que sua herança cultural lhes fosse tirada, nem é a prática dos católicos hoje, que redescobrem essas coisas e admiram sua beleza e pertinência, como as criteriosas “pessoas do mundo” das quais Merton fala. 

A vida nos faz lembrar repetidas vezes da verdade contida neste ditado de Chesterton: “O ideal cristão não foi experimentado e considerado deficiente. Descobriram que ele era difícil e o deixaram de lado.” Peço licença ao grande homem para adaptar sua afirmação: O ideal gregoriano para a música litúrgica não foi experimentado e considerado deficiente. Descobriram que ele era difícil e o deixaram de lado. Porém, mesmo neste caso podemos questionar seu grau de dificuldade. 

Sim, os próprios (cantos variáveis para domingos específicos ou festas) são bastante desafiadores e requerem uma schola treinada. Porém, o Ordinário da Missa — Kyrie, Gloria, Credo, Sanctus, Agnus Dei — e as respostas comuns podem e são frequentemente cantadas com gosto por todos, inclusive as crianças, que reproduzem intuitivamente o que escutam. Por trabalhar há 30 anos como diretor de coral juvenil e por ter ensinado canto e trabalhado com pessoas que o ensinaram a todo tipo de gente, conheço a realidade: descobriram que ele era indesejado e o deixaram de lado. Sempre que é desejado, o gregoriano prospera e beneficia a todos.

O acesso ao canto gregoriano nunca foi tão fácil para aqueles que o procuram. Todos os antigos livros de canto litúrgico foram reeditados; todos os livros da Abadia de Solesmes para a forma ordinária ainda estão disponíveis; com um clique é possível escutar online ou imprimir a maioria dos cânticos; tutoriais gratuitos podem orientar a auto-aprendizagem, e oficinas com grande assistência ocorrem anualmente. O grande tesouro da música litúrgica não desaparecerá; ressurgirá novamente das cinzas à medida que a Igreja recuperar a sacralidade de seu culto.

Embora haja sinais promissores de que a música litúrgica católica, após décadas de secularização lucrativa e banalidade horizontal, esteja começando a passar por uma verdadeira renovação em continuidade com a Tradição da Igreja, a forma como a música é executada na maioria das paróquias indica que ainda estamos longe de uma implementação universal dos sólidos princípios de São Pio X. De acordo com muitos estudiosos, a principal característica da modernidade é seu “profundo pluralismo”, e essa mentalidade parece existir entre católicos no que diz respeito ao culto litúrgico: “Todos nós andávamos desgarrados como ovelhas, seguíamos cada qual nosso caminho” (Is 53, 6). 

Que as orações de Santa Cecília e São Pio X nos inspirem a venerar novamente “o ícone musical do catolicismo romano” (Joseph Swain), para a glória de Deus e a santificação das almas.

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