O Martirológio Romano registra neste dia 9 de julho a festa de um grupo de santos conhecidos como Mártires de Gorcum. Sua festa nunca esteve no calendário [romano] geral, mas é celebrada em muitos lugares e pelas várias Ordens religiosas às quais eles pertenciam: os franciscanos, que eram a maioria do grupo, os dominicanos, os premonstratenses [i.e., da Ordem de São Norberto] e os cônegos agostinianos. Eles foram solenemente canonizados em 1867 pelo Beato Pio IX, como parte das celebrações para o 18.º centenário do martírio de São Pedro e São Paulo — que teria ocorrido em 67 d.C., segundo o parecer geral sustentado até então.

“A Apoteose dos Mártires de Gorcum”: gravura datada de 1675, tomando por base uma pintura de Johan Zieneels.

Em 1572, calvinistas holandeses, contrários ao domínio hispano-católico sobre os “Países Baixos dos Habsburgos” (como então eram chamados), tomaram o controle da cidade de Gorcum. Onze membros do convento franciscano local, três padres diocesanos (incluindo o pároco local) e um cônego agostiniano foram capturados pelos soldados; quando um membro da comunidade dominicana local veio para lhes ministrar os sacramentos, também ele foi capturado e encarcerado com os outros. Pouco tempo depois, dois premonstratenses e outro padre secular foram adicionados ao grupo, chegando a um número total de dezenove homens. 

No decorrer de vários dias, começando com 26 de junho, os soldados os submeteram a terríveis crueldades, em parte por ódio à religião católica, em parte na esperança de tomar posse dos tesouros da igreja, que eles acreditavam ter sido escondidos pelos religiosos. Na manhã de 7 de julho, eles foram transferidos para outra cidade, chamada Brielle, e na presença do líder calvinista, o Barão de La Marck, e de vários ministros calvinistas, receberam a notícia de que seriam libertados se abjurassem a doutrina católica sobre o Santíssimo Sacramento — coisa que eles se recusaram a fazer.

O barão então recebeu uma carta do líder da rebelião, o Príncipe de Orange (conhecido como Guilherme, o Taciturno), ordenando que todos fossem libertados. Ele concordou em fazê-lo, desde que os prisioneiros repudiassem publicamente a primazia do Papa — o que eles também se recusaram a fazer. Na manhã de 9 de julho, eles foram levados para um mosteiro abandonado no campo, perto de Brielle, e enforcados nas vigas de uma das dependências, com as cordas amarrados em suas bocas. Nem mesmo essa morte incrivelmente lenta e dolorosa satisfez a barbárie dos calvinistas, que também mutilaram os corpos — alguns deles enquanto estavam ainda vivos. 

Um dos franciscanos, um dinamarquês chamado Vileado, tinha 90 anos; outros três estavam na casa dos setenta. Quando os corpos foram retirados, seus restos mortais foram deixados em uma vala e só foram recuperados em 1616, durante uma trégua na Guerra dos Oitenta Anos, entre a Espanha e os Países Baixos. Agora, eles repousam na igreja franciscana de São Nicolau, em Bruxelas. Há também uma igreja de peregrinação dedicada a eles no local de seu martírio, em Brielle.

“Os Mártires de Gorcum”, por Cesare Fracassini: pintura feita especialmente para a cerimônia de canonização deles, em 1867.

Talvez a doutrina mais escandalosa, entre as muitas de Calvino, seja a da dupla predestinação, [ou seja,] a crença de que somos todos predestinados ou à salvação eterna ou à condenação. (Calvino também ensinava que, talvez, salvar-se-iam [só] cem almas de toda a raça humana, embora ele ainda fosse humano o suficiente para ao menos reconhecer que essa era uma “conclusão terrível”.) Inevitavelmente, isso leva as pessoas a procurar, em sua vida, sinais de que estão entre os eleitos de Deus; daí a ideia de que a prosperidade material nesta vida seja um sinal de predestinação na próxima — doutrina que, com igual inevitabilidade, agora se degenerou em níveis verdadeiramente paródicos [i]. Mas, como viram de imediato os apologistas católicos, essa doutrina é pastoralmente desastrosa, pois encoraja não só os pecadores, mas também aqueles que deixaram o pecado, a verem suas faltas passadas ou presentes como um sinal de que estão entre os réprobos e, assim, desesperarem de sua própria emenda e salvação. (Um amigo meu, que cresceu no calvinismo e agora é sacerdote católico, exprimiu[-me] assim, certa vez, a atitude que advém [desta ideia]: “Se eu vou para o Inferno de qualquer maneira, posso muito bem aproveitar o voo com champanhe”.)

Contra isso, podemos aduzir, como testemunhas (primeiro significado da palavra grega “mártir”) particularmente notáveis, as vidas e mortes de dois dos Mártires de Gorcum: elas demonstram que a porta da conversão não está fechada para ninguém nesta vida, nem mesmo para o mais empedernido dos pecadores.

Um dos dois premonstratenses, Tiago Lacops, havia renunciado anteriormente tanto a seus votos quanto à fé católica, depois que seus superiores lhe repreenderam a vida irregular e declararam-no contumaz [i.e., reincidente no desprezo para com as leis da Igreja]. Tendo se reconciliado com a Igreja, ele e Santo Adriano de Hilvarenbeek foram capturados em Gorcum ao abrir a porta de seu presbitério para um homem supostamente desejoso de receber os últimos sacramentos. Embora a cidade estivesse ocupada e eles soubessem que aquilo podia ser uma armadilha (como de fato era), eles preferiram não correr o risco de permitir que alguém morresse sem a assistência de um sacerdote; por isso, foram conduzidos à tortura e à morte. É claro: que um filho de São Norberto morresse pela doutrina católica sobre o Santíssimo Sacramento, é especialmente apropriado — já que o santo mesmo fôra um clérigo negligente quando jovem (embora não tanto quanto esse seu filho) [e depois se converteu em um grande propagador do culto eucarístico].

Ainda mais interessante é o caso de um dos padres diocesanos, Santo André Wouters, bem conhecido como mulherengo e pai de mais de um filho ilegítimo: mesmo em desgraça, ele se associou livremente aos outros. Os soldados calvinistas o ridicularizaram devido aos pecados pelos quais ele era tão notório e seguramente esperavam, segundo as conclusões lógicas de sua doutrina, que um padre de má vida apostataria e salvaria a própria pele. [Mas] ele não fez isso, e suas últimas palavras registradas foram: “Fornicador eu sempre fui, mas herege nunca. Vou para a morte junto com os outros”. Como afirma sabiamente o texto sobre eles, escrito na “Vida dos Santos” de Alban Butler [Butler’s Lives of the Saints]: 

Eis uma significativa advertência contra [o ato de] julgar o caráter do nosso próximo, ou [de] pretensamente ler o seu coração: enquanto um sacerdote de vida irrepreensível desertou num momento de fraqueza, dois que haviam sido causa de escândalo entregaram sem hesitar as suas vidas.

Não obstante o desprezo dos calvinistas pelos votos religiosos e pelo celibato sacerdotal, eles não duvidavam, é claro, de que fornicação fosse pecado; por isso, [certamente] viram, na vida pecaminosa de André Wouters, um claro sinal de sua predestinação eterna ao Inferno. Para nós, católicos, o martírio e canonização dele constituem um lembrete: sempre que nos depararmos com uma vida pecaminosa, inclusive a nossa própria, não devemos ver nada mais que um chamado à oração pela conversão — conversão esta que pode acontecer até mesmo nos últimos instantes de [nossa] vida

Relicário dos Mártires de Gorcum na Igreja Franciscana de São Nicolau, em Bruxelas (Bélgica).

A seguir, confira o elogio do atual Martirológio a esses mártires, juntamente com seus nomes completos:

Em Brielle, junto ao rio Mosa, na Holanda, a paixão dos santos mártires Nicolau Pieck, presbítero, e dez companheiros* da Ordem dos Frades Menores e oito do clero diocesano ou regular, que, por terem defendido a presença real de Cristo na Eucaristia e a autoridade da Igreja Romana, foram submetidos pelos calvinistas a numerosas torturas e humilhações e, finalmente, suspensos na forca, consumaram o seu combate.

[*] São estes os seus nomes: Jerônimo de Weert, Teodorico van der Eem, Nicásio van Heeze, Vileado da Dinamarca, Godefredo de Melveren Coart, Antônio de Hoornaert, Antônio de Werta e Francisco de Roye, presbíteros da Ordem dos Frades Menores; e ainda Pedro de Assche van der Slagmolen e Cornélio de Wijck Bij Duursteed, religiosos da mesma Ordem; João Lenaerts, cônego regular de Santo Agostinho; João de Colônia, presbítero da Ordem dos Pregadores; Adriano de Hilvarenbeek, Tiago Lacops, presbíteros da Ordem Premonstratense; Leonardo Vechel, Nicolau Poppel, Godefredo van Duynen e André Wouters, presbíteros.

Notas

  1. Aqui o autor faz uma referência, no texto original, a Joel Osteen, um autor americano de best-sellers e pastor protestante da Igreja Lakewood, no Texas. No Brasil, basta pensar em um autor qualquer que propague a tão famigerada “teologia da prosperidade”. (N.T.)

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