A 3.ª leitura das Matinas do antigo Ofício Divino para a festa de S. Joana de Chantal (21 de agosto no calendário da Forma Extraordinária; 12 do mesmo mês no rito atual) traz um dado biográfico interessante a respeito dela que você provavelmente não conhecia (os grifos e a tradução são nossos):

Joana Francisca Frémyot de Chantal, nascida em Dijon, na Borgonha, de família nobre, ainda menina e órfã de mãe consagrou-se à proteção da Virgem Mãe de Deus. Entregue pelo pai em casamento ao Barão de Chantal, mostrando com denodo ser mulher forte, fez-se tudo para todos. Morto o esposo durante a caça, obrigou-se por voto de continência e, vencedora de si mesma, não hesitou ser madrinha de Batismo do filho do assassino. Para não quebrar jamais a observância de seu propósito de castidade, renovado o voto, gravou em seu peito, com ferro incandescente, o santíssimo nome de Jesus Cristo. Instruída por Francisco de Sales, que lhe serviu como diretor espiritual, a respeito da vontade divina, fundou a Ordem da Visitação de Santa Maria, à qual difundiu muito e por vários lugares. Tendo-se obrigado por voto a fazer sempre o que entendesse ser mais perfeito, cheia de méritos, migrou em Moulins para os braços do Senhor, no ano de 1641, no dia 13 de dezembro, e foi canonizada por Clemente XIII.

Reforçando o negrito: a viúva Joana de Chantal, já àquela altura uma católica devota, “gravou em seu peito, com ferro incandescente, o santíssimo nome de Jesus Cristo”; em outras palavras — encheriam a boca para dizer os de nossa época —, ela fez em seu corpo uma “tatuagem”.

Antes, porém, de começarem os mais animados a invocar a santa como uma espécie de “padroeira dos tatuados”, talvez valha a pena fazer algumas considerações sobre o moderno fenômeno das tatuagens e o que o diferencia do ato realizado pela santa católica. 

Primeiro, Santa Joana não gravou em seu peito o nome de Cristo com o fim de ser imitada. Sua ação deve ser vista, antes, à luz da moção sobrenatural com que Deus tantas vezes inspira os seus santos a empreender ações extraordinárias por amor a Ele. Afinal, não estamos falando aqui de uma simples inscrição no corpo, como são feitas as tatuagens modernas. O ato de gravar em si o nome de Jesus “com ferro incandescente” comporta uma dor atroz e uma mutilação corporal permanente, que fogem absolutamente do dia a dia das ações do cristão. 

Escrevendo sobre a “mortificação positiva” do sentido do tato, o Pe. Antonio Royo Marín adverte:

É mister proceder com prudência e gradualmente, aumentando os exercícios de penitência à medida que as forças da alma vão crescendo e os convites interiores da graça vão sendo mais e mais prementes. A princípio, sobretudo, evite-se a efusão de sangue enquanto não apareça com clareza a vontade de Deus em contrário [...]; e guarde-se muito a alma de converter em fim o que não passa de puro meio, crendo que a santidade consiste em despedaçar-se cruelmente o corpo, como fizeram alguns santos. Há na vida desses santos muitos fatos dignos de admiração, mas que seria imprudente e temerário tratar de reproduzir. Eles contavam com uma particular inspiração e assistência de Deus que não estão à disposição de todos. Se o Espírito Santo quiser levar uma alma pelo caminho de penitências extraordinárias, cuidará de a inspirar fortemente e de lhe dar forças proporcionadas para tanto. Enquanto isso, a maior parte das almas deve praticar a mortificação corporal ordinária, à base de mil coisas pequenas praticadas com assiduidade e perseverança [1].

Para reforçar que as pessoas não devem repetir em casa certos heroísmos dos santos, citemos ainda S. Afonso de Ligório, comentando justamente esse episódio da vida de S. Joana:

Um dia, o bem-aventurado Henrique Suso, querendo imprimir mais fortemente no coração o amor de seu divino Mestre, tomou um ferro afiado e gravou no peito o nome de Jesus; depois exclamou banhado em sangue: “Senhor, quisera gravar-vos no fundo do meu coração, mas não posso; vós que tudo podeis, gravai vosso nome adorável no meu coração, de maneira que dele não possa desaparecer nem o vosso nome nem o vosso amor”. S. Joana de Chantal chegou a imprimir o nome de Jesus em seu coração por meio de um ferro em brasa. De nós, Jesus não pede tanto; contenta-se com que o conservemos em nosso coração com um afeto sincero e que o invoquemos muitas vezes com amor [2].

Segundo, Santa Joana não gravou em seu peito o nome de Cristo com o fim de atrair os olhares do mundo. Muito pelo contrário. Ela o fez “para não quebrar jamais a observância de seu propósito de castidade”, pois, falecido seu marido, quis obrigar-se por voto à continência perfeita, por amor ao Reino dos céus. Podemos pensar inclusive que, antes de sua morte e da divulgação de sua hagiografia, a notícia de sua “tatuagem” só por Deus era conhecida, e no máximo por seu diretor espiritual

“S. Francisco de Sales”, que foi diretor de S. Joana. Pintura de Francisco Bayeu.

Com isso já é possível notar grande diferença para as tatuagens de hoje, que transformam o corpo em quadro ou letreiro, para chamar a atenção de todos. Isso quando as próprias imagens ou inscrições não são feitas em partes menos honestas, com o fim de atrair olhares para lugares que, definitivamente, não deveriam sequer ficar descobertos. Sem falar que o nome de Jesus não está entre os mais tatuados: a moda são os símbolos de religiões da “Nova Era” e de uma cultura de sadomasoquismo e morte que pode evoluir ao próprio culto satânico. Ou seja, o que Santa Joana de Chantal fez como penitência e por amor a Deus, grande parte de nossos contemporâneos o fazem por vaidade e sensualidade, quando não por verdadeiro ódio ao sagrado.

Terceiro, Santa Joana fez ela mesma a inscrição do nome de Cristo em seu corpo. Hoje, as pessoas o fazem alimentando uma indústria que, infelizmente, muito pouco tem de cristã. O que se deduz, na verdade, das tatuagens que se vêem com frequência é que um tatuador profissional precisaria viver fazendo constantes “objeções de consciência” para ser bom católico e exercer o seu ofício ao mesmo tempo — ou ter uma freguesia de tal modo seleta que seu serviço se tornaria, na prática, inviável. 

Também não se pode subestimar o fato de que, nesse meio, o ocultismo e seus efeitos constituem não um perigo remoto, mas uma realidade viva. O Pe. John Zuhlsdorf citou em seu site, recentemente, o seguinte testemunho de um exorcista anônimo, de sua inteira confiança:

Tenho lidado com pessoas que pensavam ter tatuagens inócuas em seus corpos. Quando perguntei a uma garota o porquê de o “t” em uma palavra ser uma Cruz invertida, ela ficou sem resposta e bem zangada com o tatuador. Ela não fazia ideia daquilo. Às vezes tatuadores fazem satanistas amaldiçoarem a tinta que usam, a fim de que seus portadores tenham um malefício permanente (demonic fortuna — algo semelhante a um antissacramental, um objeto físico portador de maldição) em seus corpos. Por que eles fazem isso? Trata-se de uma propensão à malícia, por certo; mas também é uma forma de “ganhar pontos” com Satanás, pela quantidade de pessoas que eles podem contaminar. Ao fazer orações de libertação sobre tatuagens (decommission tattoos), eu uso a fórmula do Ritual Romano para “Reconsagração (Reconciliation) de uma Igreja Profanada”, alterando onde apropriado as palavras. Eu passo óleo exorcizado sobre elas usando um cotonete: algumas vezes, as pessoas gritam como se eu as estivesse esfolando vivas; outras vezes, só as machuca um pouco; às vezes não acontece nada. Conheço uma ex-religiosa que havia feito uma tatuagem. Quando fiz um exorcismo mental dela (ela não estava olhando para mim e não sabia o que eu estava fazendo na minha mente), ela deu um solavanco. Depois de lhe dizer que ela estava contaminada devido à tatuagem, ela me disse que havia feito todas as irmãs de seu antigo convento se tatuarem com o mesmo rapaz. Todas elas deixaram o convento dentro de 6 meses (grifos nossos).

Não se trata de dizer que o simples ato de tatuar algo no corpo seja pecado (pois não é). Mas não deixa de ser curioso que essa prática tenha se tornado mais comum à medida que o Ocidente se foi afastando de suas raízes cristãs. O ensinamento de S. Paulo, por exemplo, de que “o nosso corpo é templo do Espírito Santo” (1Cor 6, 19), noutros tempos seria argumento mais do que suficiente para demover as pessoas de ideias como essa. A cultura em que estão inseridas modas como a tatuagem e o piercing é, infelizmente, a do individualismo egocêntrico, do desprezo ao corpo e da rebelião contra o Criador.

Aqui, a “tatuagem” de Santa Joana e as modernas se tocam: assim como os homens do campo marcam o gado para mostrar que são sua propriedade, essa santa católica gravou em si o nome de Jesus justamente para indicar sua pertença a Ele, e talvez... as marcas que trazemos em nossa pele denunciem a mesma coisa. Pois também elas, e não só a boca, falam do que está cheio o coração (cf. Mt 12, 34). A quem pertencemos, com o estilo de vida que levamos, com o modo como tratamos o nosso corpo e com as roupas que usamos — sejam elas roupas no sentido próprio ou roupas “definitivas”, como as tatuagens? Quem é o senhor das nossas vidas?

A pergunta é importante porque chega um momento, inevitável, em que os senhores reclamam sua propriedade, de uma vez e para sempre. Foi o que aconteceu com S. Joana de Chantal, e é o que acontecerá também a nós, tatuados ou não. 

Cada um faça o seu exame de consciência.

Referências

  1. Teología de la perfección cristiana. 14.ª ed., Madri: BAC, 2015, pp. 357–358, n. 242.5.
  2. Encarnação, Nascimento e Infância de Jesus Cristo. São Paulo: Cultor de Livros, 2016, pp. 158–159.

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