Recentemente, o jornal norte-americano The New York Times publicou um artigo intitulado Women’s Unpaid Labor is Worth $10,900,000,000,000 (“O trabalho não remunerado das mulheres vale 10 trilhões e 900 bilhões de dólares”). Como poderíamos esperar, o texto é cínico e parcial.

Embora o artigo tente se apresentar como resultado de uma simples pesquisa, em homenagem ao Dia Internacional das Mulheres, sobre as contribuições delas para a sociedade — muitas vezes não reconhecidas —, ele acabou assumindo a forma da verborragia comercialista semimarxista que tem dominado a nossa sociedade. Expôs assim um equívoco que está no centro do pensamento americano sobre trabalho, dinheiro e sociedade, a saber: que as coisas só possuem valor se lhes atribuirmos alguma quantia em dólar — e que as pessoas que fazem algo sem serem remuneradas são, por isso, necessariamente exploradas.

Como disse G. K. Chesterton: “[O feminismo] está mesclado com uma ideia confusa segundo a qual as mulheres são livres quando servem aos seus patrões, mas escravas quando ajudam os seus maridos”. O raciocínio feminista presente no artigo do The New York Times é terrivelmente reducionista e ignora por completo os benefícios intangíveis oriundos do assim chamado “trabalho não remunerado” das mulheres — sem dúvida alguma, benefícios para a sociedade, as famílias e os homens, mas em número ainda maior para as mulheres.

Agora, algumas advertências. Primeiro: se alguém espera com justiça ser pago por uma tarefa, mas não o é, estamos diante de um caso intolerável de exploração. Segundo: ao longo da história, as mulheres foram injustamente excluídas da plena participação na sociedade, uma injustiça que ainda existe hoje em algumas sociedades e deve ser enfrentada. Terceiro: as mulheres que escolhem entrar para o mercado de trabalho como funcionárias devem ser recompensadas justamente, tal como os seus equivalentes masculinos. Nada disso, porém, está em questão no artigo do The New York Times.  

O texto poderia ser uma celebração do quanto as mulheres contribuem para a sociedade e de como o seu trabalho abnegado deixa o mundo muito mais belo e alegre, mas não é. Não é sequer uma exposição que pretende lançar luzes sobre as diferenças salariais entre homens e mulheres. Em vez disso, documenta a enorme contribuição que as mulheres dão à sociedade e sugere que é uma injustiça o fato de não serem remuneradas por essa contribuição.

Vejamos a frase de abertura: “Se as mulheres americanas recebessem um salário mínimo pelo trabalho não remunerado que realizam em casa e no cuidado dos familiares, teriam gerado uma receita de U$ 1,5 trilhão no ano passado”. A frase não menciona quantas famílias foram beneficiadas pelo cuidado das mulheres nem quantos idosos receberam assistência de mulheres em sua vida. Em vez disso, reduz esses atos humanos a uma quantia monetária para sugerir que há algo injusto no fato de as mulheres não serem remuneradas pela prática desses atos de caridade. 

Detalhe de “Um da família”, de Frederick George Cotman.

Este ponto é crucial: são atos de caridade realizados em larga escala por mulheres. Embora, sem dúvida, fosse possível que elas não fizessem algumas dessas coisas (reconheço que às vezes me canso de lavar a louça e organizar a casa), o texto ignora completamente outra possibilidade, a saber: que elas fazem essas coisas por amor.

Todo o mundo que já fez algo por amor sabe que tais tarefas são a sua própria recompensa. Mas algumas pessoas não sabem que transformar um trabalho feito por amor num trabalho remunerável altera, de fato, a natureza dele. Os artistas certamente experimentam isso quando se tornam profissionais: de repente, a arte assume uma natureza laboral. As exigências do mercado começam a ter um peso enorme. E mesmo com o entusiasmo por serem remunerados por seu trabalho criativo, muitos artistas têm a sensação de que algo se perdeu.

É algo que transparece na própria linguagem: as pessoas que fazem artesanato, arte, esporte ou realizam um trabalho sem se preocupar com ganhos financeiros são chamadas de amadoras, que vem de um termo em latim para designar “aquele que ama”. As pessoas que fazem coisas sem expectativa de remuneração são amantes. Por outro lado, “profissional” refere-se a quem faz algo como meio de sobrevivência. Embora, sem dúvida, não haja nada errado em sair do “amadorismo” para o “profissionalismo”, há uma profunda diferença espiritual entre ser amante de uma tarefa e fazê-la como meio de sobrevivência.

O artigo menciona um dia na Islândia, em 1975, quando quase todas as mulheres do país se recusaram a “trabalhar, fazer faxina ou cuidar dos filhos”. O The New York Times exalta o episódio como um momento de coragem em que as mulheres da Islândia assumiram o controle de suas próprias vidas, mostrando a homens preguiçosos e ingratos o quanto a sociedade devia a elas. Na verdade, esse estratagema pueril mais parece um abandono da decência comum. Imagine por um momento que tivesse ocorrido o contrário: se todos os homens do país se recusassem a trabalhar por um dia, independentemente das consequências para seu futuro profissional, ou se não fizessem nada para apoiar as suas famílias. Tal boicote seria rapidamente considerado um gesto imaturo para chamar a atenção e como tal seria condenado. É difícil ter uma visão positiva de uma mãe que se recusa a cozinhar e a cuidar dos próprios filhos por causa de uma manifestação política. Quando se negaram a realizar essas ações, as mulheres da Islândia revelaram inadvertidamente o segredo de boa parte daquilo que consideramos “trabalho feminino”: ele tem raízes no amor e na abnegação.   

O artigo celebra o boicote islandês como um triunfo e observa que “hoje, as mulheres de lá têm uma das taxas mais elevadas de participação na força de trabalho em todo o mundo”. O pressuposto implícito é que, numa sociedade ideal, deveria haver o maior número possível de mulheres na força de trabalho.

É claro que isso deixa sem resposta várias perguntas importantes. Se, assim como os homens, todas as mulheres devem participar da força de trabalho para que uma família possa sobreviver, quem assumirá aqueles atos de caridade — a educação dos filhos, o cuidado dos idosos e a construção de um belo lar? O governo assumirá essa tarefa? Esse trabalho será de algum modo dividido entre homens e mulheres? Quem controlará ou autorizará a divisão de trabalho? E, num nível menos tangível, que efeito terá na qualidade de nossas vidas a “sistematização” daquilo que deveria ser um gesto de amor?  

Finalmente, o que dizer sobre o fato de muitas mulheres preferirem ficar em casa para participar desses pequenos atos de caridade a se envolverem na assim chamada “força de trabalho”? Hoje, levei o nosso filho ao parque, passei numa cafeteria no caminho de volta para casa a fim de comprar um lanche e ajudar esse pequeno negócio durante a crise de coronavírus. Organizei a casa, levei meu bebê para jogar pedras no lago, fiz almoço e jantar para o meu marido. Durante a soneca do meu filho, realizei algumas horas de trabalho pelo qual serei remunerada, mas o restante do meu dia cai na categoria do “trabalho não remunerado” do qual se queixa o artigo do The New York Times.

Então, comparo o meu dia com o do meu marido: ele passa nove horas no escritório doméstico, o menor cômodo da casa, atendendo a telefonemas de trabalho com o seu fone de ouvido. Ele está com teletrabalho agora; numa situação normal, ele teria saído de casa às 6h30min e não teria chegado antes das 17h30min (na melhor das hipóteses).  

O trabalho dele não é ruim. É bem remunerado e tem benefícios. Contudo, eu não trocaria o meu dia não remunerado pelo dia remunerado dele. E não estou sozinha; muitas mulheres adoram a própria capacidade de criar um belo lar para o marido e os filhos. Percebemos que o compromisso dos nossos maridos de irem para o trabalho todos os dias, para que possamos ficar em casa — fora do turbilhão materialista e hipermercantilizado que constitui boa parte da sociedade americana —, é um sacrifício para eles, mas uma bênção para nós.

No ensaio A emancipação da domesticidade, G. K. Chesterton observa algo que poderia — mas não deveria — fazer as feministas tremerem. Diz ele:

A mulher deve ser cozinheira, mas não uma cozinheira competitiva; professora, mas não uma professora competitiva; decoradora de interiores, mas não uma decoradora competitiva; costureira, mas não uma costureira competitiva [...]. Ao contrário do homem, ela pode desenvolver todos os seus talentos [...]. As mulheres não ficavam em casa por serem limitadas; pelo contrário, ficavam em casa para expandir-se. O mundo fora de casa é que era extremamente limitado, um labirinto de caminhos restritos, um manicômio de monomaníacos. Somente graças à limitação e proteção parciais a mulher era capaz de desempenhar cinco ou seis profissões e, desta forma, aproximar-se tanto de Deus como uma criança ao brincar de cem coisas diferentes. A diferença é que as profissões da mulher, ao contrário das da criança, eram todas verdadeiramente — e quase terrivelmente —  frutíferas.     

Neste trecho Chesterton celebra a maravilhosa capacidade feminina de viver como uma “amadora”, uma amante que dedica sua vida ao que ama justamente por amá-lo, e não porque obtém algum tipo de benefício financeiro. Segundo Chesterton, as mulheres nesse âmbito são verdadeiramente livres de um jeito que os homens empregados na força de trabalho não podem ser.

É possível que o The New York Times esteja certo: talvez o trabalho não remunerado das mulheres “valha” uma quantia obscena de dinheiro. Mas existem outras coisas para além dele: a liberdade das exigências do mercado, a beleza da construção de um lar, a espontaneidade e a diversão nas brincadeiras com os filhos, o amor no cuidado dos vizinhos ou familiares idosos. E nenhuma dessas coisas possui um código de barras.

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