Hoje deixaremos de lado as orações romanas para dar um doce adeus a uma das poucas sequências sobreviventes nos Missais Romanos de 1962 e 1970. Victimæ Paschali Laudes tem sido recitada ou cantada todos os dias na Missa desde o Domingo de Páscoa, mas depois de amanhã teremos de esperar mais um ano para ouvi-la na liturgia [i].
Esta gloriosa composição do século XI já foi atribuída a Notker, o Gago († 912), ao Rei Roberto II de França († 1031) e a Adão de São Victor († 1192), mas o mais provável é que o autor seja Wipo da Borgonha († 1048), capelão do Sacro Imperador Romano Conrado II. A sequência apareceu em vários missais medievais, nos quais era alocada em diferentes dias durante a Oitava de Páscoa. O Missal Romano de 1570 requer o uso dela do Domingo de Páscoa até o Sábado de Páscoa.
Junto com o texto original apresento aqui uma tradução e, em seguida, os meus comentários [ii].
Víctimæ Pascháli laudes | À Vítima pascal ofereçam os cristãos |
Há vários paradoxos nas duas primeiras estrofes, algo que é apropriado para um período que celebra o fato de Cristo ter destruído nossa morte ao morrer por nós e ter restaurado a nossa vida ao ressuscitar (cf. Prefácio da Páscoa). O primeiro verso é ainda mais forte na versão em latim: immolare também significa matar ou derramar sangue num ritual. O verbo evoca o sacrifício cruento do cordeiro na Páscoa hebraica e estabelece uma conexão com a representação de Cristo como Vítima e Cordeiro pascal, tema dominante da Missa do Domingo de Páscoa; a afirmação Pascha nostrum immolatus est Christus (“Cristo, nossa Páscoa, foi imolado”) aparece na Epístola [iii], no Aleluia, no Prefácio e na Comunhão. Como verso do Aleluia, ela cria uma transição adequada para a sequência: enquanto o Aleluia proclama que Cristo, nossa Páscoa, é sacrificado, a sequência “responde” que os cristãos deveriam, [portanto], oferecer sacrifícios à Vítima Pascal.
Mors et vita duello | A morte e a vida |
A segunda estrofe resume uma quinzena de imagens violentas na liturgia. A partir do Domingo da Paixão, o Rito Romano tradicional inclui leituras e outros Próprios que narram ou aludem ao ódio crescente a Jesus Cristo e ao conflito crescente entre Ele e seus inimigos. Sim, a Paixão de Cristo é semelhante à de um cordeiro que não abriu a boca ao ser levado ao matadouro; mas o pacifismo de Nosso Senhor também é retratado de forma paradoxal como uma luta travada livremente em nosso favor. São Lucas (22, 43) chama o início deste combate no Getsêmani de “agonia” (ἀγωνία), termo que, em grego antigo, se referia a um combate nos Jogos Olímpicos. Como muitos dos esportes violentos da Grécia, o combate do qual Jesus participou fez jorrar sangue bem antes de o primeiro soldado golpeá-lo (cf. Lc 22, 44). Foi graças ao modo como Lucas usou “agonia” que o termo acabou ganhando o sentido contemporâneo de “sofrimento mental intenso”.
Duellum pode ser traduzido por “combate”, embora também possa significar “duelo”, porque o verso seguinte descreve Jesus como um dux, que geralmente se refere a um comandante militar ou general. Suspeito que o autor tenha escolhido o termo militar dux em lugar de rex (rei) porque, embora Jesus “reine” (e, portanto, seja rei), nem todos os reis travam suas próprias batalhas como o nosso.
[Assista a uma aula de 2013 do Padre Paulo Ricardo, comentando justamente esta bela sequência de Páscoa.]
Dic nobis María, | Diz-nos, Maria: |
A terceira estrofe leva o narrador (ou, antes, o coro de narradores) a voltar-se para Santa Maria Madalena e fazer-lhe uma pergunta. Embora a resposta seja contada pelo mesmo coro (e não por uma solista), devo admitir que a troca me faz lembrar as extravagantes canções dialógicas da era das big bands, nas quais a cantora e os membros da banda mantinham um diálogo musical (penso, por exemplo, em A Tisket, A Tasket, de Ella Fitzgerald, e Whatcha Know Joe?, de Jo Stafford).
A semelhança é trivial e acidental, mas de fato nos faz lembrar em que medida essa simples sequência teve um papel fundamental na reabilitação das belas-artes. A Igreja primitiva havia fechado os teatros da Grécia e de Roma porque haviam se tornado muito obscenos, mas a Igreja medieval os trouxe de volta por meio da liturgia. No século X, um teatro litúrgico primitivo surgiu quando figuras de linguagem do Intróito da Missa do Domingo de Páscoa começaram a ser encenados pelo clero. A primeira peça medieval consistia em apenas quatro versos, que abrangiam o diálogo entre as santas mulheres e os anjos no túmulo, e era encenada no santuário depois do Ofício das Matinas. Pouco tempo depois, outras partes da liturgia da Páscoa (inclusive a sequência Victimæ Paschali Laudes) começaram a inspirar produções teatrais semelhantes. Daí em diante a ideia se expandiu para peças sobre a Paixão, milagres e mistérios.
Sepulcrum Christi viventis, | Vi o sepulcro de Cristo vivo |
A resposta de Maria Madalena é uma combinação de detalhes dos relatos de São Marcos e de São João sobre a Ressurreição. No Evangelho de São Marcos, Maria Madalena entra no sepulcro vazio “de manhã cedo” e vê um anjo que pede a ela e às outras mulheres contarem aos discípulos que Jesus irá adiante deles para a Galileia. Maria e as outras mulheres, porém, ficam com medo e não falam nada a ninguém. Mais tarde, naquela mesma manhã, depois que Jesus lhe apareceu (é nesta ocasião que ela vê a glória do Ressuscitado?), Maria Madalena ganha coragem para contar aos Apóstolos o que escutara do anjo.
No Evangelho de São João, Maria não vê inicialmente a glória do Ressuscitado (gloria resurgentis); em vez disso, ela confunde Jesus com um jardineiro. Ela tampouco entra no sepulcro, mas espera do lado de fora, enquanto Pedro e João entram. São eles que veem a mortalha de Cristo (cf. Jo 20, 11). Ela também vê dois anjos fora do sepulcro, não um dentro.
Scimus Christum surrexisse | Sabemos e acreditamos: |
A sequência termina bem, com uma afirmação da Ressurreição de Cristo, cuja veracidade é atestada em grande medida pelo testemunho de Santa Maria Madalena. (O uso do verbo latino scire é bastante forte [iv], já que pode referir-se ao mais elevado grau de conhecimento humano.) Como observa Santo Agostinho, Jesus Cristo “foi ao mesmo tempo Vencedor e Vítima, e Vencedor porque Vítima”; e Ele foi “Sacerdote e Sacrifício, e Sacerdote porque Sacrifício” (Confissões X 43, 69).
Não escutaremos, porém, a seguinte estrofe ser cantada na Missa:
Credendum est magis soli | Deveríamos crer apenas |
Este trecho fazia parte da composição original e aparecia depois de præcédet suos in Galilaeam, mas foi removido na edição de 1570 do Missal Romano, promulgada por São Pio V. Eu gostaria de saber o motivo, e convido os leitores a registrar suas hipóteses nos comentários. A resposta óbvia é que ela trata os judeus de forma pejorativa. Não obstante, o mesmo Missal preserva outro elemento que os judeus consideram ofensivo: a oração da Sexta-feira da Paixão, que os considera “infiéis”, usando um termo latino que soa como “pérfidos”. Não tenho certeza, mas acho que a sensibilidade em relação a outras religiões não ocupava os primeiros lugares da lista de prioridades naquela época.
A estrofe também pode ser criticada por sua imprecisão. No Evangelho de São Mateus, os sumo-sacerdotes chantageiam os guardas romanos que vigiavam o sepulcro de Jesus para dizerem que os discípulos haviam-lhe roubado o corpo à noite, e os judeus acreditaram neles (cf. Mt 28, 11-15). Com exceção dos sumo-sacerdotes, os judeus não são enganadores, mas enganados.
A estrofe também pode passar a impressão de que os judeus tentaram desacreditar o testemunho de Maria Madalena (como os dois anciões lascivos no capítulo 13 do Livro de Daniel, que conta a história de Susana), mas não há nenhuma evidência disso na Sagrada Escritura. Embora seja verdade que, na sociedade judaica, as mulheres eram proibidas de ser testemunhas no tribunal, os ataques mais veementes à credibilidade de Madalena vieram de filósofos pagãos como Celso, que a denunciou como “mulher histérica”. (De acordo com a citação de Orígenes em seu tratado Contra Celsum II 59-60, Celso põe essas palavras na boca de um judeu, mas se trata de um recurso literário.)
Talvez a verdadeira razão para a remoção dessa estrofe seja o fato de ela tocar uma nota amarga que desvia da alegria da sequência e da ocasião para a qual ela foi feita. A escolha da morte como tema central para que possamos exultar com sua derrota tem um sabor especial, mas a reflexão sobre uma turba de mentirosos que talvez estejam caluniando nossa querida e sincera santa não tem esse sabor. O ressentimento (sem falar no combustível para culpar os outros) não pertence a uma celebração do Salvador ressuscitado, que perdoou seus assassinos. Qualquer que seja a razão para isso, é bom que essa estrofe tenha sido deixada de lado.
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