Quando católicos e protestantes discutem sobre aquilo que os divide, os segundos vira e mexe lançam aos primeiros a seguinte pergunta: “Onde a Bíblia diz isso?” No entanto, pouquíssimas vezes os protestantes aplicam esse mesmo critério, o da “sola Scriptura”, às suas próprias crenças. Se o fizessem, perceberiam que muitas delas vêm, não da Bíblia, mas de alguma tradição teológica recebida seja dos pais, seja de um pastor.

Vejamos apenas três exemplos de tradições protestantes que não se baseiam nas Escrituras.


1.º) Em que trecho a Bíblia afirma que nós não somos purificados de nossos pecados depois da morte?

A pergunta mais frequentes que nos costuma ser feita é esta: “Onde a Bíblia fala do Purgatório?” Os protestantes que partem do princípio de que a doutrina católica sobre a vida eterna deveria estar explicitamente fundamentada nas Escrituras raramente aplicam esse mesmo critério às suas próprias crenças sobre a vida após a morte. O autor protestante William Edward Fudge escreve a esse propósito:

Ao falarem dos Novíssimos, os reformadores nunca constroem sua escatologia sobre os fundamentos da Escritura [...]. Lutero e Calvino rejeitaram a doutrina da Igreja Católica Romana referente ao Purgatório, por exemplo, não porque tenham estudado a Bíblia a fundo e descoberto que o Purgatório é estranho à escatologia bíblica, mas porque se tratava de uma doutrina claramente incompatível com a ideia de justificação que eles acharam na Bíblia [1].

Os protestantes costumam acreditar que todo cristão, imediatamente depois da morte, se une com Cristo, razão por que não seria necessário nenhum tipo de purificação. No entanto, os trechos que eles citam a favor desta doutrina, como por exemplo Fl 1, 23 (“Desejaria desprender-me para estar com Cristo, o que seria imensamente melhor”) e 2Cor 5, 8 (“Estamos, repito, cheios de confiança, preferindo ausentar-nos deste corpo para ir habitar junto do Senhor”) não sobrevivem a um exame mais atento.

Dizer, por exemplo: “Quando estou trabalhando no meu escritório, estou longe de minha família” não significa que eu estarei em casa com minha família no exato momento em que for embora do escritório (eu poderia muito bem ter de passar horas no trânsito). Do mesmo modo, o desejo de estar com Cristo não é prova de que não haverá um processo de purificação antes de realizarmos este desejo. De fato, a passagem de 2Cor 5, 10 nos ensina que podemos, sim, estar separados de nossos corpos e, ao mesmo tempo, não estar em casa com o Senhor: “Porque teremos de comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali cada um receberá o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito enquanto estava no corpo”.


2.º) Onde a Bíblia diz que devemos aceitar Jesus como nosso Senhor e Salvador pessoal?

Os protestantes que se opõem à Missa e aos sacramentos, por não terem fundamento bíblico nem serem necessários, costumam afirmar que tudo o que precisamos fazer, no final das contas, é aceitar Jesus como nosso Senhor e Salvador e confessar nossos pecados diretamente a Deus, em de vez de confessá-los a um sacerdote.

Sem levar em consideração o fato de que a Missa e os sacramentos estão, sim, presentes na Bíblia, é importante notar que a ideia segundo a qual a fé deve estar baseada unicamente numa relação pessoal e de tipo afetivo com Jesus não tem, na verdade, nenhuma base bíblica [2].

Isso não significa que seja errado pedir a Jesus que tenha conosco uma relação pessoal; significa tão-somente que esta crença protestante, uma das mais importantes, não se encontra, ao fim e ao cabo, nas Escrituras. A Bíblia, além disso, nunca nos manda confessar os nossos pecados a Jesus Ressuscitado, ainda que quase todos os cristãos não vejam problema nenhum em fazê-lo. É por isso que os partidários da “sola Scriptura” deveriam, pelo menos, repensar a própria fé com respeito a esses pontos — ou talvez repensar a própria fé na “sola Scriptura.

A Confissão, por Egbert van Heemskerck.

Os protestantes costumam citar ainda 1Jo 1, 9 para defender a ideia de que só devemos confessar os nossos pecados a Deus (e não a um sacerdote), já que ali se diz: “Se reconhecemos [em grego, homologōmen, de homologeō] os nossos pecados, (Deus aí está) fiel e justo para nos perdoar os pecados e para nos purificar de toda iniqüidade”. Acontece, porém, que este trecho não diz que só devemos confessar os nossos pecados a Deus. O contexto desta passagem diz respeito mais ao que confessamos ou dizemos aos outros homens do que às coisas que confessamos a Deus.

O versículo anterior: “Se dizemos que não temos pecado, enganamo-nos a nós mesmos, e a verdade não está em nós” e o versículo seguinte: “Se pensamos não ter pecado, nós o declaramos mentiroso e a sua palavra não está em nós” retratam os fiéis falando entre si. De fato, com exceção de Hb 13, 15, o termo homologeō nunca é empregado para descrever o ato de confessar algo a Deus; nos escritos de São João, é utilizado sempre com o sentido de “confessar uma crença a outro homem”. Ora, nunca é demais lembrar que, tanto no sacramento da Confissão quanto no da Unção dos Enfermos, o sacerdote não perdoa e cura diretamente; antes, ele é o meio através do qual Deus nos comunica o perdão e a cura.

Muitos protestantes estariam de acordo com isto no caso, por exemplo, do Batismo, uma vez que, tal como os católicos, eles negam de costume a validade do “auto-Batismo”. Ora, quem crê na regeneração batismal sabe muito bem que, embora Deus seja o único que pode apagar os pecados, Ele não age sozinho na hora de fazê-lo no Batismo. Com efeito, Deus atua por meio de outros fiéis, que batizam em nome dEle. Este mesmo princípio se aplica ao caso em que Deus se serve de um ministro para perdoar os pecados na Confissão.


3.º) Em que lugar a Bíblia diz que a revelação se encerrou com o fim da era apostólica?

Os protestantes afirmam também que a Palavra de Deus se reduz ao que está registrado nas Escrituras, de maneira que não houve nenhuma nova revelação depois de ter sido escrito o último livro da Bíblia. Os católicos aceitam que a revelação pública, ou seja, o depósito da fé, terminou com a morte do último Apóstolo (isto inclui os Apóstolos e seus companheiros, como São Marcos e São Lucas). Nós, porém, não concordamos com a ideia de que esta verdade só pode ser conhecida unicamente pelas Escrituras. Os protestantes que têm uma atitude cética com respeito à Sagrada Tradição deveriam perguntar-se a si mesmos por que motivos acreditam que a revelação pública acabou, já que as Escrituras por si sós não o garantem.

Há no entanto quem diga que essa verdade se baseia em Jd 3, onde se fala da “fé, confiada de uma vez para sempre aos santos” — o que por si mesmo não prova que a revelação pública tenha terminado de vez. O apologista protestante John MacArthur defende que a palavra grega traduzida aqui por “confiada” designa “uma ação completa no passado e sem continuidade”. Ele afirma ainda que a expressão “de uma vez para sempre” (em grego, hapax) equivale a “nada mais precisa ser acrescentado à fé que já foi transmitida ‘de uma vez para sempre’”. Ora, isso implicaria que a “fé” já fora definitivamente transmitida antes mesmo de Judas escrever sua carta, o que, noutras palavras, significa que o ensinamento de Judas a respeito da conclusão da revelação pública não faz parte, ele mesmo, da revelação pública contida nas Escrituras.

Aí também se confunde a expressão “confiar a fé” com o conceito de revelação pública. Jesus confiou “a fé” de uma vez para sempre aos Apóstolos, mas a revelação pública da fé continuou durante décadas, enquanto eram escritos os livros do Novo Testamento. Ora, não há nenhuma evidência bíblica explícita de que essa revelação tenha acabado depois da morte do último Apóstolo (e nem de que tenha continuado, não já por décadas, mas por séculos).

Católicos e protestantes estão de acordo quanto ao fato de a revelação pública ter-se concluído, sim, na era apostólica da Igreja. O Catecismo ensina que “já não se há de esperar nenhuma nova revelação pública antes da gloriosa manifestação de nosso Senhor Jesus Cristo” (n. 66). Os católicos, não obstante, crêem nesta verdade baseados na autoridade do Magistério, que preserva o conteúdo da Palavra de Deus em suas duas formas: escrita (Bíblia) e não escrita (Tradição) — e não, como fariam os protestantes, baseados apenas no ensinamento das Escrituras.

Por isso, quando um protestante perguntar: “Onde a Bíblia diz isso?”, você deve, com toda caridade, perguntar de volta: “Onde a Bíblia diz que tudo o que nós, cristãos, devemos crer precisa estar escrito na Bíblia?” Assim, você poderá mostrar como outras crenças protestantes estão enraizadas, não nas Escrituras, mas em tradições — humanas ou divinas.

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