Celebra-se no dia 8 de dezembro a única festa mariana universal deste mês: a da Imaculada Conceição. A festa tem origem no século VIII, quando era celebrada no Oriente sob o título de “A Concepção de Santa Ana”. Pouco tempo depois, ela se propagou pelo Ocidente, geralmente sob o título de Imaculada Conceição da Bem-aventurada Virgem Maria. São Norberto (1075–1134) e sua Ordem Premonstratense estavam entre os primeiros cristãos de rito ocidental a celebrar a festa e tinham um Ofício próprio para ela. Seguiram-se a eles os franciscanos, que também apoiavam a doutrina da Imaculada Conceição e celebravam a festa com Missa e Ofício próprios, adaptados dos ritos da Capela Papal.

A festa estava no calendário universal dos primeiros livros litúrgicos da reforma tridentina, mas sem Ofício e Missa próprios; os textos eram os da Natividade da Bem-aventurada Virgem Maria, sendo a palavra “Natividade” substituída por “Concepção”. Em 1708, o Papa Clemente XI tornou a festa dia santo de guarda, mas a Missa e o Ofício permaneceram inalterados. Em 1847, o Papa Beato Pio IX aprovou um Ofício próprio para a festa e o ampliou a toda a Igreja. Sete anos mais tarde, o Papa definiu solenemente a doutrina da Imaculada Conceição e nove anos depois promulgou Ofício e Missa novos para a festa. Alguns dos próprios de 1863 foram tomados da festa franciscana da Imaculada Conceição (por exemplo, a Coleta), enquanto outros (como a Secreta e a Pós-comunhão) foram novas composições. 

Em sua Constituição Ineffabilis Deus, na qual define o dogma da Imaculada Conceição de Maria, o Sumo Pontífice fala que a lei da oração estabelece a lei da fé (lex credendi ipsa supplicandi lege statueretur). As orações escolhidas para a festa são uma boa ilustração desse princípio, já que cada uma delas revela uma faceta diferente desse glorioso mistério relativo à Mãe de Deus. A Coleta diz o seguinte: 

Deus, qui per Immaculátam Vírginis Conceptiónem dignum Filio tuo habitáculum praeparásti: quáesumus; ut, qui ex morte ejúsdem Filii tui praevísa, eam ab omni labe praeservásti, nos quoque mundos ejus intercessióne ad te perveníre concédas. Per eúndem Dóminum. — Ó Deus, que pela Imaculada Conceição da Virgem preparastes para vosso Filho digna morada, nós vos suplicamos humildemente que, assim como, em atenção aos merecimentos desse mesmo Filho, vos dignastes preservá-la de toda a mácula, nos concedais igualmente, por sua intercessão, a graça de chegarmos a Vós limpos do pecado. Pelo mesmo Nosso Senhor Jesus Cristo [i].
“Alegoria da Imaculada Conceição”, por Gregorio Vásquez de Arce y Ceballos.

O principal conceito nessa oração, de autoria do frade franciscano Beato Duns Escoto, é “em previsão de” (praevísa). Escoto foi capaz de solucionar um enigma que deixara perplexo até o grande Santo Tomás de Aquino: se Maria foi concebida sem pecado original, como ela pôde chamar Jesus Cristo de seu Redentor e Salvador? O insight de Escoto é o seguinte: assim como é nosso salvador alguém que nos resgata de uma vala depois de termos caído nela, também o é alguém que nos impede de cair nela

De acordo com a bula Ineffabilis Deus, Deus todo-poderoso previu muitas coisas. Por toda a eternidade e antes da criação dos céus e da terra, Deus previu que Adão cairia e que o melhor remédio para a tragédia do pecado seria a encarnação de seu próprio Filho e a reparação dos nossos pecados por meio do sofrimento e da morte dele. Deus também previu que a melhor mãe para seu Filho seria Maria de Nazaré, e Ele sabia desde toda a eternidade que a preservaria de todo pecado e a dotaria de uma santidade incomparável. Acima de tudo, como Deus previu a morte de seu Filho, Ele aplicou previamente à mãe de seu Filho, no momento da concepção dela, as graças conquistadas na Cruz a fim de impedir que a mancha do pecado original contaminasse sua alma. Essa aplicação prévia significa que Jesus Cristo é o Salvador tanto de sua Mãe quanto nosso, embora Maria não tenha pecado. Ele a impediu de cair na vala para ter, entre outras coisas, uma “digna morada” [ii].

A Secreta aprofunda a explicação desse processo de aplicação prévia:

Salutárem hóstiam, quam in solemnitáte Immaculátae Conceptiónis beátae Vírginis Maríae tibi, Dómine, offérimus, súscipe et praesta: ut, sicut illam tua grátia praeveniénte ab omni labe immúnem profitémur: ita ejus intercessióne a culpis ómnibus liberémur. Per Dóminum. — Aceitai, Senhor, a hóstia salutar que na solenidade da Imaculada Conceição da bem-aventurada Virgem Maria vos oferecemos, e fazei com que, proclamando-a isenta de toda a mácula em virtude da vossa graça preveniente, possamos libertar-nos, por sua intercessão, do jugo de nossas culpas. Por Nosso Senhor Jesus Cristo.

A principal frase na Secreta é “graça preveniente” (grátia praeveniénte). Geralmente essa expressão, que significa literalmente “graça que vem antes”, se refere à graça que possibilita a uma alma passar pelo processo de conversão e, portanto, receber a graça santificante. Aqui ela tem esse significado, mas também vai além disso: as graças da Crucifixão, mesmo décadas antes de acontecer, precederam Maria em cada momento de sua vida.  

A ideia de aplicar a graça de Cristo antes da Paixão não deveria nos surpreender, pois todas as graças vêm da Cruz. Diz o Bem-aventurado Columba Marmion:

Todo bem sobrenatural que recebemos, todas as luzes com que Deus nos cobre, todos os auxílios com que estimula nossa vida espiritual são-nos concedidos em virtude da vida, paixão e morte de Cristo; todas as graças de perdão, justificação e perseverança que Deus dá e dará eternamente às almas de todos os tempos têm sua única fonte na Cruz (Dom Columba Marmion,  Jesus Cristo, Vida da Alma, III, 4).

Tudo isso é para dizer que, se Abraão, Moisés e Jó tinham graça santificante (e eles a tinham), então a graça lhes foi dada a partir de um evento que ainda não tinha acontecido. A Bem-aventurada Virgem Maria não foi a única a receber a graça preveniente. O que a distingue de todas as outras figuras santas antes do Mistério Pascal (e de todas que vieram depois dele) é que essa graça preveniente foi aplicada a ela no momento da concepção. Esta é a lição da Pós-comunhão: 

Sacraménta quae súmpsimus, Dómine Deus noster, illíus in nobis culpae vúlnera réparent, a qua Immaculátam beátae Maríae Conceptiónem singuláriter praeservásti. Per Dóminum. — Que o sacramento, Senhor, que recebemos, repare em nós os danos do pecado, de que singularmente isentastes a Conceição Imaculada da bem-aventurada Virgem Maria. Por Nosso Senhor Jesus Cristo.  

A palavra-chave aqui é “singularmente”. Segundo a tradição católica, muitos santos foram preservados do pecado mortal, e alguns até do pecado venial, pois foram santificados pelo Espírito Santo no ventre materno: acredita-se que o profeta Jeremias seja um desses santos, e João Batista outro (e, dependendo de qual teólogo consultamos, alguns alegam que São José também foi santificado no ventre materno, tendo, por essa razão, ficado livre de quaisquer pecados pessoais). No entanto, por mais santos que tenham sido esses homens, ainda assim eles contraíram a mancha do pecado original e foram libertados dele. Dentre os pobres mortais, só Maria foi preservada do pecado original e do atual. Ela é única, e nessa festa nós damos graças a Deus por isso.

Notas

  1. Todas as orações aqui apresentadas, de Coleta, Secreta (hoje chamada “Sobre as oblatas”) e Pós-comunhão, foram preservadas no rito novo. (N.T.) 
  2. A antecipação do plano eterno de Deus para Maria é reforçada na Lectio da Missa e das Laudes para a festa [no rito antigo]: “O Senhor me possuiu no princípio de seus caminhos, desde o princípio, antes que criasse coisa alguma. Desde a eternidade fui constituída, desde o princípio, antes que a terra fosse criada. Ainda não havia os abismos, e eu estava já concebida, ainda as fontes das águas não tinham brotado, ainda se não tinham assentado os montes sobre as suas bases; antes de haver outeiros, eu tinha já nascido” (Pr 8, 22-25). (N.A.)

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