As Missas de Quarta-feira de Cinzas oferecem-nos um panorama incomum e desconcertante. Nesse dia, quase todos os sacerdotes se voltam para uma assembleia praticamente irreconhecível. É verdade, há muitos rostos familiares, daqueles que vão regularmente à paróquia; mas quase metade ou mais é de desconhecidos. Por acaso alguns ônibus de turismo teriam deixado seus passageiros vindos de terras distantes? Seria essa uma época de férias, em que muitos estão visitando a família? Não, esta é a Quarta-feira de Cinzas, um dia bastante peculiar.
Mesmo alguns dias antes, os telefones da secretaria começam a tocar e vozes afoitas do outro lado perguntam: “Quando serão dadas as cinzas?” Alguém até poderia pensar que as cinzas são necessárias para a salvação. Infelizmente, não há a mesma urgência para nenhum dos sacramentos, mesmo entre os mais fiéis. Batismos, confissões, casamentos e a própria Missa são adiados com frequência, quando não omitidos por completo. Mas na Quarta de Cinzas, grande quantidade de católicos outrora desinteressados dá mostras de uma preocupação quase lúdica, e a impressão é que muitos estão dando atenção demais ao que é de menos.
Pode-se lamentar, mas o que podemos aprender disso? De alguma forma, ainda que de modo não muito adequado, a Igreja exerce um forte poder de atração sobre os católicos não-praticantes, bem como sobre os sem religião. “É legal receber as cinzas!” “Mas será mesmo? Elas são bem humilhantes, não?” As tentativas comuns dos católicos de parecer agradáveis e “relevantes”, com músicas do momento e temas “acolhedores” e positivos, geralmente ficam a desejar. Eis que surgem, então, as cinzas, quebrando todas as “regras” e teorias da nova evangelização, atraindo com força as próprias pessoas que estamos tentando atingir. Talvez tenhamos algumas coisas a aprender aqui!
Considere que a mensagem da Quarta-feira de Cinzas, e a imposição delas, não é a mais alegre e positiva das mensagens. O recado basilar deste sacramental é: “Vais morrer” — mas de uma forma um pouco mais poética: “Lembra-te que és pó, e ao pó hás de voltar”. Seja como for, o fundamento da coisa é o mesmo: “Vais morrer”. Mesmo que se use a fórmula alternativa: “Arrependei-vos e crede no Evangelho”, arrepender-se não é a mais entusiástica e “convidativa” das mensagens. As pessoas não estão se aglomerando na igreja para ouvir Jo 3, 16: “De tal modo Deus amou o mundo…” e ganhar uma lembrancinha de valor, como um santinho ou uma medalha religiosa. Elas estão formando fila para receber umas cinzas sujas na testa, e para ouvir que irão morrer e precisam se arrepender antes que seja tarde. O profeta Joel e São Paulo fazem apelos urgentes para que choremos e jejuemos por nossos pecados, dizendo que devemos nos arrepender e reconciliar com Deus.
Definitivamente, não é isso o que os evangelizadores modernos “vendem” como o caminho para alcançar as almas. No entanto, as pessoas formam a mesma fila todos os anos. Concedamos: muitos não estão convictos o bastante de que voltarão no ano seguinte, mas o ponto é que eles vêm nesta ocasião específica, e num dia que quebra praticamente todos os protocolos do “acolhimento em comunidade” que estão no coração da moderna “Igreja em saída”.
Por que isso se dá e o que podemos aprender com esse fenômeno? Em minha resposta, eu não tenho vastos dados estatísticos em que me basear. Tenho apenas dados pontuais de anos falando com “católicos de Cinzas” e escutando o que outros descobriram em suas conversas. Fique, pois, com o que conseguir aproveitar das minhas ideias, e ignore o resto. Aqui vão alguns pensamentos.
Em primeiro lugar, a pertença à Igreja parece ser algo mais profundo que a mera participação na igreja ou prática religiosa.
Muitas pessoas deixaram a prática formal da fé e a participação ativa em uma paróquia. Algumas têm divergências sérias com a Igreja, outras simplesmente são indiferentes ou deixaram o caminho. Mas na hora de responder a uma pesquisa sobre sua identidade religiosa, elas ainda se dizem “católicas”. A Quarta-feira de Cinzas se encaixa de alguma forma nessa pertença e identificação com a Igreja. É um dia em que, pela imposição das cinzas, participando de um rito bem conhecido, muitos desses católicos dizem: “Eu ainda pertenço a este lugar… São estas as minhas raízes… Eu posso não ser um ‘bom’ católico, mas católico eu sou”.
Em certo sentido, é como se eles tivessem deixado a Igreja, mas a Igreja nunca os deixa de fato; algo ainda está ali, incomodando-os para que não se esqueçam dela. Em menor grau, o Domingo de Ramos tem um propósito similar: aquele raminho pendurado em casa, geralmente com um crucifixo ou perto dele, expressa o toque da Mãe Igreja em nosso coração. Com isso os católicos estão dizendo: “Mesmo longe, é esta minha identidade”. Em lugares como o México ou os Estados Unidos, muitos latinos vão para as denominações evangélicas, mas a imagem de Nossa Senhora de Guadalupe ainda tem lugar de honra em seus lares [i]. É como se disséssemos: “Você pode tirar o homem da Igreja, mas não pode tirar a Igreja do homem”.
Sim, a pertença tem raízes profundas, e de alguma forma as pessoas manifestam ritualmente à Igreja uma espécie de “Não te esqueças de mim”. É claro que queremos oferecer mais a eles, mas pelo menos ainda existe um vínculo: um farol a lembrar, a eles e a nós, que eles “ainda pertencem à Igreja”.
Em segundo lugar, uma mensagem séria e sóbria tem peso.
Ainda que a mensagem associada à imposição das cinzas não seja entusiasmante, ela tem peso; é algo a ser levado a sério, que exige respeito. Ou seja, a Igreja é atrativa quando prega e ensina de uma forma que seja sólida e digna. A maior parte das pessoas sabe que nem tudo está certo em suas vidas, e a mensagem da Quarta-feira de Cinzas corresponde a essa intuição. Quando procuram um médico, a maioria das pessoas quer um doutor que leve a sério as doenças e que se disponha a dizer com sinceridade o que deve ser feito para tratá-las. Mesmo que não queiram ou não estejam preparadas para seguir todos os conselhos do médico, elas desejam a verdade em última instância; elas não respeitarão um médico que não seja sério e que queira simplesmente afagá-las. Em grande medida, nós perdemos a noção disso na Igreja.
Como apontado acima, tem havido nos últimos cinquenta anos uma tendência a “aliviar” as coisas. Põe-se uma grande ênfase em “temas positivos”, como a bondade e a misericórdia de Deus, mas pouca ênfase no arrependimento, que é a chave que “destranca” essa misericórdia. Evitam-se quase que patologicamente ensinamentos morais controversos ou temas mais “negativos”, como a morte, o juízo, o Céu e o Inferno. Ninguém deve ser aborrecido jamais, nem se deve despertar nos outros o medo de enfrentar as consequências dos próprios atos. As paróquias devem ser acolhedoras e não julgar, as homilias precisam ser estimulantes e inspiradoras; sacrifícios, reparação pelo pecado, exigências do discipulado — só com muito cuidado devem ser mencionados. E, obviamente, “Deus é amor”...
Mas esse “amor” é frequentemente apresentado como uma amabilidade delicada, e não como um amor vigoroso que procura endireitar as coisas e levar-nos ao remédio da santidade. A preocupação de fazer com que as pessoas se afirmem muitas vezes obscurece o apelo para que se transformem [ii]. A liturgia com frequência não é celebrada de modo a dizer que algo profundo e salvífico está acontecendo. E embora muitos achem que seja essa a abordagem necessária para trazer as pessoas à Igreja, os templos vão ficando cada vez mais vazios com esse “catolicismo light”.
Ademais, essa estratégia pastoral não suscita o respeito e a reverência necessárias para a Igreja pregar o Evangelho com autoridade. E ainda que muitos liturgistas tenham receio de que temas negativos afastem o homem moderno, a Quarta-feira de Cinzas põe em xeque esses temores. Da mesma forma o Domingo de Ramos, cujo tema é a Paixão de Cristo. O Evangelho do Domingo de Ramos é extenso e intenso; o sofrimento devido a nossos pecados é apresentado de modo bem claro. E no entanto é também muito alta a participação nesse dia; em alguns lugares, até melhor que na Páscoa ou no Natal.
Eis aqui, então, algumas coisas a aprender em termos de evangelização. (As observações a seguir não têm um valor absoluto.)
É importante equilibrar a boa nova da misericórdia, do perdão e da salvação com as más notícias do pecado, da morte e da nossa necessidade de arrependimento. Há um velho ditado que diz: “Se você não sabe das más notícias, as boas não serão notícia alguma” [iii]. Em geral, nós temos sido bastante resistentes a apresentar as más notícias. Mas, como as Quartas de Cinzas e os Domingos de Ramos nos mostram, muitos dos sem religião estão dispostos a escutá-las; e no fundo eles sabem que elas são verdadeiras. As más notícias também chamam a atenção para o quão maravilhosas são as boas novas.
Também está claro que, seja qual for o respeito que merecem a Quarta de Cinzas e o Domingo de Ramos, eles não são suficientes. Raramente quem participa da Missa de Cinzas experimenta uma conversão selada depois pela Igreja. Olhando para o futuro, fazemos bem em ponderar o modo de aproveitar momentos de evangelização tais como a Quarta-feira de Cinzas, o Domingo de Ramos, além de funerais, casamentos e batismos. Muitos sem religião vão à igreja nessas ocasiões, e talvez uma pregação leve deva ser balanceada com apelos sérios ao arrependimento e à decisão de caminhar com o Senhor na Igreja e na sagrada liturgia.
As advertências têm o seu lugar próprio e, como nos mostra a Quarta-feira de Cinzas, mensagens assim não são tão repulsivas quanto imaginam tantas pessoas na Igreja. Se queremos que os “católicos de Cinzas” se tornem católicos de Missa dominical, talvez precisemos aprender a edificar sobre o que os trouxe à igreja em primeiro lugar, e ter mais coragem para ecoar as palavras com que Jesus iniciou o seu ministério público: “Arrependei-vos e crede no Evangelho!”
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