O nome em latim da festa de hoje no Missal e no Breviário tridentinos é Sancti Petri ad Vincula, que se traduz literalmente como “festa de São Pedro nas cadeias”, e não “festa das cadeias de São Pedro”. Este título é encontrado nos livros litúrgicos mais antigos que dão testemunho da festa, e mesmo antes, por exemplo, na lista de igrejas estacionais apresentada no lecionário de Wurzburg, de meados do século VII [i]. (Lá as estações são mantidas nas segundas-feiras da primeira semana da Quaresma e na oitava de Pentecostes.)

Como muitas das festas especificamente romanas, ela começou como a festa de dedicação de uma basílica, que está localizada no Monte Esquilino e pode ser avistada do Coliseu. Quando uma cidade tem mais de uma igreja dedicada ao mesmo santo, muitas vezes elas são diferenciadas por apelidos; portanto, o título “nas cadeias” serviria para distingui-la da basílica vaticana. A grande antiguidade dela é demonstrada pelo fato de ter sido restaurada pelo Papa Sisto III na década de 430; uma inscrição que registra a restauração menciona que o edifício já era considerado antigo, e que o Papa a dedicou novamente aos dois fundadores apostólicos da Sé de Roma.

“A Libertação de São Pedro”, por Giovanni Lanfranco.

O breviário se refere de forma bastante indireta a uma tradição relatada de forma mais explícita na Legenda Áurea e em outros lugares, a saber, que os romanos dedicavam o mês de agosto a honrar a memória do Imperador Augusto, e que essa segunda festa de São Pedro foi criada para suplantar esse feriado. É verdade que os nomes latinos para o sétimo e o oitavo mês eram originalmente Quintilis e Sextilis, e que o Imperador Augusto renomeou o primeiro com o nome de seu pai adotivo, Júlio César, e o segundo com o seu próprio nome. No entanto, não é provável que o culto ao “divino Augusto” fosse tão vivo em meados do século V a ponto de tornar necessária uma séria oposição por parte da Igreja. Há 32 dias entre 29 de junho, principal festa de São Pedro, e 1.º de agosto; talvez isto seja uma referência à tradição segundo a qual Pedro foi bispo de Antioquia por sete anos e bispo de Roma por 25, totalizando 32 como cabeça visível da Igreja, um ano a menos que os 33 da vida terrena de Nosso Senhor.

As lições do breviário para a festa também apresentam a história tradicional da famosa relíquia da igreja. Quando a Imperatriz Eudócia, esposa de Teodósio II, foi a Jerusalém no ano 438, recebeu de presente a corrente usada para manter São Pedro preso no reinado de Herodes, tal como se narra na Epístola da festa (cf. At 12, 1-11). Então, ela enviou a relíquia para sua filha Eudóxia, que estava em Roma, a qual, por sua vez, a apresentou ao Papa. Quando foi exposta para veneração dos fiéis junto com a corrente usada para manter Pedro preso em Roma durante o reinado de Nero, as duas correntes se uniram milagrosamente, como se fossem uma única corrente

Em 1706, o pintor Giovanni Battista Parodi decorou o teto da basílica com o afresco de um famoso milagre atribuído às cadeias. O milagre também é relatado no breviário. Um conde do Sacro Império Romano foi possuído por um espírito maligno que o fazia morder a si mesmo; quando acompanhou o Imperador Otão II até Roma em 969, o Papa João XIII pôs a corrente em volta do pescoço dele, expulsando imediatamente o demônio.

Muitos outros milagres já foram atribuídos aos vários fragmentos da cadeia cortados e dados a Papas como presentes, uma prática relatada diversas vezes por São Gregório Magno em suas cartas. Um sermão medieval sobre a festa de São Pedro e São Paulo, atribuído incorretamente a Santo Agostinho e também lido no Breviário Romano, menciona isso quando diz: “Se podia então a sombra do corpo [de Pedro] vir em socorro dos suplicantes, quanto mais o não pudera a plenitude do poder? […] Com razão, pois, em todas as igrejas de Cristo tem-se por mais precioso que ouro aquele ferro das cadeias”.

Teto da Basílica de San Pietro in Vincoli, por Giovanni Battista Parodi.

Uma festa das Cadeias de São Pedro (ou “cadeia”, no singular) também é preservada no rito bizantino, e é celebrada no dia 16 de janeiro. O primeiro cântico dela nas Vésperas se refere à cura milagrosa do corpo e da alma. “No Senhor encadeado e trancado no cárcere, vós, Apóstolo, haveis encarcerado o erro; nós portanto com amor vos honramos, e com fé abraçamos vossas cadeias, delas tirando vigor para o corpo e salvação para alma, como é nosso dever vos celebramos, ó bem-aventurado, êmulo dos Incorpóreos” [isto é, dos anjos] [ii].

Outros dois cânticos do mesmo dia se referem a um fragmento das cadeias que foi doado para a igreja de Constantinopla e guardado na própria Hagia Sofia, como observado no Sinaxário, o equivalente bizantino do Martirológio. O Apolytikion (ou Hino de Dispensa) das Vésperas diz: “Sem sairdes de Roma, viestes a nós mediante as preciosas cadeias que portastes, vós, que dos Apóstolos ocupais o primeiro trono. Venerando-as com fé suplicamo-vos intercedais por nós a Deus, para que Ele se digne tratar-nos com grande clemência” [iii].

Do mesmo modo, lemos no Cânon das Matinas: “Santificastes Roma, ó Pedro, pela deposição de vosso sagrado corpo, e com a fé iluminastes a nova [Roma], a qual detém vossas veneráveis cadeias” [iv]. E: “Veio da Palestina, qual portador de Cristo, também o Apóstolo Pedro, e tendo-o anunciado ao mundo na [antiga] Roma, terminou seus dias; mas legou à nova [Roma], em prenda de veneração, suas cadeias” [v].

Apesar da antiguidade e da universalidade da festa, ela foi removida do calendário na reforma do Breviário realizada em 1960. É difícil não ver nisto o efeito de um constrangimento muito característico da modernidade em relação à ideia mesma de milagres e relíquias, já que a mesma reforma também suprimiu: 

  • a Descoberta da Cruz (em 3 de maio), 
  • São João na Porta Latina (em 6 de maio), 
  • a Aparição de São Miguel no Monte Gargano (em 8 de maio),
  • a Descoberta do Corpo de Santo Estêvão (em 3 de agosto) e 
  • os Estigmas de São Francisco (em 17 de setembro). 
Relicário com as cadeias de São Pedro, na Basílica de San Pietro in Vincoli.

É verdade que não possuímos [como registro] uma cadeia de custódia desde a época de São Pedro até a nossa que prove a autenticidade das relíquias. Por outro lado, deveria nos fazer tremer a ideia de que muitos dos nossos antepassados na fé tenham sido, ou estupidamente ingênuos, na melhor das hipóteses, ou mentirosos, na pior delas. São John Henry Newman escreveu sobre o tema na Apologia pro Vita Sua. Numa nota ao apêndice “sobre milagres eclesiásticos”, ele mostra que ambos os testamentos possuem relatos de milagres realizados por meio de relíquias. Um cadáver é ressuscitado quando toca os ossos de Eliseu (cf. 2Rs 13, 21), e “Deus realizava prodígios extraordinários pelas mãos de Paulo, a tal ponto que pegavam lenços e panos que tivessem tocado seu corpo, para aplicá-los sobre os doentes, e as doenças os deixavam, e os espíritos maus se retiravam” (At 19, 11s).

Além da relíquia e da dedicação da basílica, a festa de hoje também comemora o evento bíblico da libertação de São Pedro da prisão. A importância desse episódio é indicada pelo fato de que a igreja de Roma escolheu a relevante passagem dos Atos dos Apóstolos para o texto do Intróito e o da Epístola, não só de hoje, mas também de 29 de junho.

Quando o Apóstolo estava preso em Jerusalém, corria o risco de ser morto pelo monarca, mas foi libertado por meio de um ato direto de intervenção divina. Vinte e cinco anos depois, quando ficou preso em Roma, também corria o risco de ser morto pelo monarca, mas foi libertado por intervenção humana de seus carcereiros: São Processo e São Martiniano. Então, os cristãos de Roma o exortaram a deixar a cidade por medo de que ele fosse capturado mais uma vez e executado. Quando começou a descer a Via Ápia em direção ao porto de Brindisi, onde poderia conseguir uma embarcação para levá-lo de volta ao Oriente, Pedro encontrou Cristo nos arredores dos portões da cidade: 

Ao vê-lo, disse-lhe: Quo vadis, Domine? “Senhor, aonde vais?” E o Senhor respondeu: “Vou a Roma ser crucificado”. E Pedro lhe disse: “Senhor, outra vez crucificado?” Respondeu-lhe: “Sim, Pedro, outra vez crucificado”. E Pedro caiu em si, e tendo visto o Senhor subir ao céu, voltou contente a Roma, glorificando o Senhor por lhe ter dito: “Serei crucificado”, o que aconteceria a Pedro dali a pouco [vi].

Esse episódio é mencionado numa antífona do Ofício de São Pedro ad vincula, usada muito amplamente, embora não em Roma. Não fosse por isso, ele aparentemente não teria nenhuma ligação com a festa: Beatus Petrus Apostolus vidit sibi Christum occurrere; adorans eum et dixit: Domine, quo vadis? Venio Romam iterum crucifigi. — “O bem-aventurado Apóstolo Pedro viu Cristo aproximar-se. Adorando-o, disse-lhe: ‘Senhor, aonde vais?’ ‘Vou a Roma ser novamente crucificado’”.

Portanto, vemos na festa de hoje que São Pedro foi libertado da prisão em Jerusalém porque sua missão não tinha chegado ao fim. Estava destinado a ir até Roma, para que pudesse pregar a todas as nações, “a fim de que a luz da verdade, que foi revelada para a salvação de todas as nações, pudesse se espalhar de forma mais eficaz por todo o mundo a partir de sua cabeça” (São Leão Magno, Sermão I na Festa de S. Pedro e S. Paulo) O Senhor mesmo o enviou de volta à Cidade Eterna, para estabelecer o primado da Igreja na terra, “o primeiro trono”, como dito acima no Ofício bizantino da festa.

Notas

  1. Chamavam-se “estações” (stationes) as igrejas de um determinado lugar onde os fiéis católicos paravam (e permaneciam em pé, stantes), durante procissões, para assistir à celebração da liturgia em dias penitenciais. O termo foi perdendo seu sentido ao longo do tempo, mas alguns lugares preservaram os registros de suas igrejas estacionais. É por isso que, nos missais antigos, os ofícios dos dias quaresmais vêm sempre acompanhados da “estação” em alguma igreja (N.T.).
  2. 16 de jan., Vésperas, Tom 4 (Ἦχος δ'): Τὴν ἀπάτην ἐδέσμευσας, ἐν Κυρίῳ δεσμούμενος, καὶ εἱρκτῇ Ἀπόστολε συγκλειόμενος· διὸ σε πόθῳ γεραίρομεν, καὶ πίστει τὴν Ἅλυσιν, ἀσπαζόμεθα τὴν σήν· ἐξ αὐτῆς δ᾿ ἀρυόμενοι, ῥῶσιν σώματος, καὶ ψυχῆς σωτηρίαν κατὰ χρέος, εὐφημοῦμέν σε Θεόπτα, τῶν Ἀσωμάτων ἐφάμιλλε.
  3. Ἀπολυτίκιον, Tom 4 (Ἦχος δ'): “Τήν Ῥώμην μή λιπών, πρός ἡμᾶς ἐπεδήμησας, δι᾽ ὧν ἐφόρεσας τιμίων Ἁλύσεων, τῶν Ἀποστόλων Πρωτόϑρονε· ἃς ἐν πίστει προσϰυνοῦντες δεόμεϑα· ταῖς πρός Θεόν πρεσβείαις σου, δώρησαι ἡμῖν τό μέγα ἔλεος”.
  4. 16 jan., Matinas, Δι᾿ ἀγάπησιν Οἰϰτίρμον: “Ῥώμην, σώματος τοῦ ϑείου τῇ ϰαταϑέσει, ϰαϑαγιάζεις Πέτρε, καὶ τὴν Νέαν φωτίζεις, πίστει τὴν τιμίαν σου ϰατέχουσαν Ἅλυσιν”.
  5. Κανών α' τοῦ Μηναίου, ᾨδὴ ζ': “Ἐϰ Παλαιστίνης ὁ Χριστοῦ, ἵππος ϰαὶ ἀπόστολος Πέτρος, ὡς ἐϰ βαλβίδος προελϑών, ϰαὶ τῷ ϰόσμῳ ϰηρύξας ἐν Ῥώμῃ μέν, τῇ προτέρᾳ ϰατέπαυσε, τῇ δὲ Νέᾳ δοὺς τήν ἅλυσιν προσϰυνεῖσϑαι”.
  6. Martyrium Petri 6,6 (Tischendorf, p. 88, ll. 5–13): “Καὶ ἰδὼν αὐτὸν εἶπεν· Κύριε, ποῦ ὧδε; Καὶ ὁ Κύριος αὐτῷ εἶπεν· Εἰσέρχομαι εἰς τὴν ῾Ρώμην σταυρωϑῆναι. Καὶ ὁ Πέτρος εἶπεν αὐτῷ· Κύριε, πάλιν σταυροῦσαι; Εἶπεν αὐτῷ· Ναί, Πέτρε, πάλιν σταυροῦμαι. Καὶ ἐλϑὼν εἰς ἑαυτὸν ὁ Πέτρος ϰαὶ ϑεασάμενος τὸν Κύριον εἰς οὐρανὸν ἀνελϑόντα, ὑπέστρεψεν εἰς τὴν Ῥώμην ἀγαλλιώμενος ϰαὶ δοξάζων τὸν Κύριον, ὅτι αὐτὸς εἶπεν· Σταυροῦμαι, ὃ εἰς τὸν Πέτρον ἤμελλεν γίνεσϑαι”.

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