Das bocas dos fiéis católicos, ressoa desde tempos imemoriais um hino, tido por não poucos como o “mais famoso” dos hinos da Igreja. Seu nome é Veni, Creator (pelas palavras com que começa) e este é o tempo do ano mais apropriado para entoá-lo. 

Afinal, o poema é uma oração dirigida ao “Espírito Criador”, a terceira Pessoa da Santíssima Trindade, que celebramos de modo especial na solenidade de Pentecostes.

Mas por que em Pentecostes?

A festa de Pentecostes é uma herança judaica. Chamava-se “festa da Ceifa”, porque nela se ofereciam a Deus as primícias das colheitas que se faziam no campo (cf. Ex 23, 16). Por ser fixada para exatos cinquenta dias após a Páscoa, sete semanas completas, também passou a chamar-se “festa das Semanas” (Ex 34, 22). Mas o nome grego que se popularizou foi mesmo Pentecostes.

A novidade do cristianismo é sua associação com o Espírito Santo. Pois foi num dia de Pentecostes judaico que, estando os discípulos reunidos no mesmo lugar, 

veio do céu um ruído como de um vento forte, que encheu toda a casa em que se encontravam. Apareceram então línguas como de fogo, que se repartiram e repousaram sobre cada um deles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia expressar-se (At 2, 2-4).

Neste dia, finalmente o homem pôde oferecer a Deus “uma nova oblação”: a de seu coração (cf. Lv 23, 15). Havia finalmente chegado aquela hora de que Jesus falara à mulher samaritana: “os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade” (Jo 4, 23).

Um hino bíblico

O hino Veni, Creator insere-se neste contexto. A seguir, você pode escutá-lo na língua em que foi composto: o latim. Logo abaixo, vai a tradução adaptada para o Brasil que se usa na Liturgia das Horas (com uma versão gregoriana também em vernáculo):

Oh vinde, Espírito Criador,
as nossas almas visitai
e enchei os nossos corações
com vossos dons celestiais.

Vós sois chamado o Intercessor,
do Deus excelso o dom sem par,
a fonte viva, o fogo, o amor,
a unção divina e salutar.

Sois doador dos sete dons,
e sois poder na mão do Pai,
por ele prometido a nós,
por nós seus feitos proclamais.

A nossa mente iluminai,
os corações enchei de amor,
nossa fraqueza encorajai,
qual força eterna e protetor.

Nosso inimigo repeli,
e concedei-nos vossa paz;
se pela graça nos guiais,
o mal deixamos para trás.

Ao Pai e ao Filho Salvador
por vós possamos conhecer.
Que procedeis do seu amor
fazei-nos sempre firmes crer.

Primeiramente, espreme-se o texto e o que sai é puro suco bíblico. 

O Espírito é chamado de “Criador”, mas o Salmo já o proclamava: “Envias teu espírito, eles são criados e renovas a face da terra” (Sl 103, 30). O latim chama-o Paraclitus, “Paráclito”, mas o próprio Cristo usou o termo primeiro (cf. Jo 14, 26). A “fonte viva” é tirada do Apocalipse de São João: “Ele mostrou-me um rio de água da vida, que brilhava como cristal e brotava do trono de Deus e do Cordeiro” (22, 1); o “fogo”, do Evangelho: “Fogo eu vim lançar sobre a terra, e como desejaria que já estivesse aceso!” (Lc 12, 49); o “amor”, de São Paulo: “O amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5, 5); os “sete dons”, de Isaías (cf. Is 11, 2-3); e assim por diante.

Mencione-se, por fim, no verso Sermóne ditans gúttura (o último da terceira estrofe), a relação com as “línguas de fogo”, dos Atos dos Apóstolos. Literalmente, o que se diz ao Espírito é que Ele enriquece (dito, ditare) com o dom de línguas (sermo, sermonis) as “gargantas” dos fiéis (guttur, guttura). A tradução brasileira, menos literal, diz: “por nós seus feitos proclamais” — ou seja: por meio de nós, por nossas bocas, ó Espírito Santo, Vós manifestais as obras de Deus

Ora, não foi exatamente o que se deu em Pentecostes?

“Pentecostes”, por Jean II Restout.

Um hino de belas imagens

Em segundo lugar, as imagens que o autor traz à nossa meditação são belíssimas. 

Numa nova referência bíblica (cf. 1Jo 2, 20), o Espírito é chamado de “unção espiritual”, pois — anota o Pe. Júlio Comba —, “como o azeite alivia e cura as feridas do corpo, assim o [Espírito] Santo suaviza e cura os sofrimentos da alma” [i].

O verso Dígitus Patérnæ déxteræ (2.º da 3.ª), vertido para “e sois poder na mão do Pai”, seria mais bem traduzido como “dedo da destra paterna”. Mas por que dedo? Porque “é pelo [Espírito] Santo que Deus nos indica as obras boas que devemos realizar”. E também porque

[a] dextra de Deus Pai criou o mundo e [...] o seu dedo realiza o acabamento dessa obra, assim como os nossos dedos executam trabalho de perfeição, após terem as nossas mãos executado o grosso da tarefa. Por isso ao [Espírito] Santo atribuímos a perfeição de nosso progresso espiritual. Essa interpretação parece mais espontânea ainda por achar-se depois da expressão “septiformis munere” [“doador dos sete dons”, na nossa tradução litúrgica]. Os sete dons visam diretamente à perfeição da santidade e é o “Dedo de Deus” que leva a cabo essa obra delicada e paciente [ii].

Na quinta estrofe, enfim, a nossa conversão e transformação interior é identificada como obra sobretudo da graça de Deus (e a tradução litúrgica brasileira, felizmente, manteve esse dado). “Se pela graça nos guiais / o mal deixamos para trás”, dizemos. Ou seja: se a vossa graça não nos conduz e precede, ó Espírito Santo, nós não somos capazes de abandonar a maldade. Na sequência da Missa de Pentecostes, há uma ideia similar: “Sem a luz que acode, nada o homem pode / Nenhum bem há nele”.

Cantaram-no bispos, monges e… mártires

Em terceiro lugar, podemos falar da importância ritual e histórica que tem esse hino. 

Por ser uma das (raras) orações litúrgicas dirigidas diretamente ao Espírito Santo — a maior parte das orações o menciona, mas o interlocutor mesmo é o Pai —, a Igreja costuma cantá-la nas ocasiões que pedem uma intervenção especial da terceira Pessoa da Trindade. É o caso da cerimônia de sagração episcopal — ou seja, quando se ordena um bispo —, durante a qual a liturgia prescreve o seu uso desde o início do segundo milênio. Daí se vê, também, como a Igreja preza esse poema, pois ela não colocaria um texto qualquer no rito que perpetua a sucessão apostólica.

Religiosos rezando o Ofício Divino.

O Veni, Creator está também no Ofício Divino. Antigamente, sua presença era marcante na hora Terça, pois o relato de São Lucas nos assegura ter sido nesta mesma hora, às 9h da manhã, a vinda do Espírito Santo sobre os discípulos (cf. At 2, 15). Mas nem por isso a composição deixou de constar também nas Vésperas. Assim, todo o ofício de Pentecostes — desde o dia da solenidade propriamente dita até o fim de sua oitava — era ornado por esta pérola da poesia católica. Com a abolição da Oitava de Pentecostes, o hino foi deslocado para os dias que antecedem a vinda do Espírito Santo — mas só nas Vésperas. 

O Manual de Indulgências prevê, ademais, a concessão de indulgência plenária “ao fiel que, na igreja ou no oratório, participar devotamente do canto ou recitação solene do hino Veni, Creator, ou no primeiro dia do ano para implorar a proteção divina para todo o ano, ou na solenidade de Pentecostes” (Enchiridion Indulgentiarum, conc. 26).

Além de tudo isso, vale lembrar que foi cantando este belíssimo hino da tradição que entregaram sua vida a Deus as bem-aventuradas carmelitas de Compiègne, martirizadas durante a Revolução Francesa, em número de 16. Ouçamos uma brevíssima ata de seu martírio, contada pelo Papa João Paulo I (nos poucos dias que ele teve de pontificado): 

Durante o processo ouviu-se a condenação: “À morte por fanatismo”. E uma, na sua simplicidade, perguntou: “Senhor juiz, se faz favor, que quer dizer fanatismo?”. Responde o juiz: “É pertencerdes tolamente à religião”. “Oh, irmãs!”, disse então a religiosa, “ouvistes, condenam-nos pelo nosso apego à fé. Que felicidade morrer por Jesus Cristo!”.

Fizeram-nas sair da prisão da Conciergerie, meteram-nas na carreta fatal e elas, pelo caminho, foram cantando hinos religiosos; chegando ao palco da guilhotina, uma atrás doutra ajoelharam-se diante da prioresa e renovaram o voto de obediência. Depois entoaram o “Veni Creator”; o canto foi-se tornando, porém, cada vez mais débil, à medida que iam caindo, uma a uma, na guilhotina, as cabeças das pobres irmãs. Ficou para o fim a prioresa, Irmã Teresa de Santo Agostinho; e as suas últimas palavras foram estas: “O amor sempre vencerá, o amor tudo pode”. Eis a palavra exata: não é a violência que tudo pode, é o amor que tudo pode (Angelus, 24 de setembro de 1978).

Na próxima vez que entoarmos as palavras do célebre hino ao Espírito Santo, lembremo-nos destas religiosas que morreram com elas nos lábios…

Um hino atemporal

Depois de tudo isso, o que mais podemos dizer? 

Que o autor deste hino merece um prêmio, sem dúvida! 

Mas, como acontece com muitas obras e composições da mesma importância, o “mais famoso dos hinos” — como o chama um autor do início do século XX — foi escrito por um homem de fama praticamente nula: Rábano Mauro († 856). E mesmo assim não é certeza absoluta que tenha sido ele… Pela magnitude da obra, muitos quiseram atribuí-la a uma pessoa igualmente grande: Santo Ambrósio, São Gregório Magno e até a Carlos Magno. Mas o mais provável é que o seu autor tenha sido mesmo um simples abade de Mainz (atual território da Alemanha).

“As Carmelitas de Compiègne”, por Paul Delaroche.

Por antiga e tradicional que seja essa composição, no século XVII, o Papa Urbano VIII — e uma comissão de jesuítas criada por ele especialmente para uma reforma litúrgica — mexeu em alguns de seus versos. As mudanças foram mínimas, e na forma, não no sentido (ao menos neste hino, o que não se pode dizer da grande maioria dos hinos do Breviário). Naquela época, porém, a liturgia era vista não como algo que se cria ex nihilo por uma comissão, mas como algo que se recebe, e se preserva, e só a muito custo nela se mexe, aqui e ali. Por isso, muitos monges — Ordens inteiras, para dizer a verdade — não adotaram a mudança e mantiveram o texto antigo em suas orações. (No capítulo da própria Basílica de São Pedro as alterações não foram acolhidas!)

Por isso, é bem possível que, em sua pesquisa pela letra deste hino, você se depare com duas versões latinas ligeiramente diferentes. Se a segunda estrofe começar com Qui Paráclitus díceris — ao invés da versão do vídeo acima, que inicia com Qui díceris Paráclitus —, você está diante da versão antiga, mais próxima à original. 

Esses, porém, são detalhes. O mais importante é conhecermos, aprendermos a cantar e, sobretudo, meditarmos o conteúdo deste belíssimo texto medieval, que ainda hoje embeleza nossa liturgia e pode enriquecer a nossa vida de piedade.

Nestes dias em que a Igreja invoca o Espírito Santo, una-se então aos santos e mártires, aos bispos e monges ao longo dos séculos, e diga também você com sua família: Veni, Creator Spiritus! — “Oh vinde, Espírito Criador!”

Referências

  1. Pe. Júlio Comba, Hinos do Breviário Romano (comentados para os seminaristas e para o clero). São Paulo: Livraria Editora Salesiana, 1963, p. 125.
  2. Idem.

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