A situação atípica em que nos encontramos, devido à pandemia do novo coronavírus, nos deve fazer refletir sobre a importância e a necessidade dos sacramentos, quando tantos dentro da Igreja os relativizam, e não é de hoje.
Referindo-se a Nosso Senhor, o Catecismo diz que “a obra salvífica de sua humanidade santa e santificante é o sacramento da salvação que se manifesta e age nos sacramentos da Igreja” (n. 774); isto é, depois de ter subido aos céus, Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem, “age agora pelos sacramentos, instituídos por Ele para comunicar sua graça” (n. 1084).
Isso significa bem concretamente que, onde quer que uma criança esteja sendo batizada, onde quer que um sacerdote esteja rezando Missa ou absolvendo alguém de seus pecados, ali está sendo fincada uma verdadeira “escada” que une o Céu à terra, por onde Jesus ressuscitado comunica individualmente a salvação que Ele operou dois mil anos atrás, por toda a humanidade. Os sacramentos são os meios de tomarmos parte na Redenção que Cristo realizou de uma vez por todas na Cruz, dois mil anos atrás. Não nos basta confessar, com o Credo niceno, que o Filho de Deus desceu dos céus propter nos homines (“por nós, homens”); é preciso que descubramos também, com o Prólogo de São João, que Ele é a luz que ilumina omnem hominem (“todo homem”, cf. Jo 1, 9). Noutras palavras, Jesus não morreu por uma massa amorfa de gente, mas por cada um de nós em particular.
Essas noções, que podem parecer óbvias a quem recebeu uma boa catequese, infelizmente estão “fora de moda” em muitos institutos de teologia. Ao invés de seguir as balizas do que a Igreja sempre ensinou nessa matéria, e de forma dogmática, muitos hoje em dia têm imitado os reformadores protestantes e ensinado um conceito bastante problemático de sacramento: este não passaria de um “ritual simbólico”, feito para evocar uma ideia religiosa, lembrar o que Jesus fez, avivar a nossa confiança em Deus, mas de modo algum ele produziria realmente a graça divina.
Isso explica, em parte, a crise de fé na presença real de Jesus na Eucaristia, a prática disseminada das comunhões sacrílegas e a dificuldade que tantos católicos já tinham de encontrar sacerdotes disponíveis para a Confissão (muito antes de o coronavírus nos visitar). Sem uma fé correta a respeito da ação própria dos sacramentos em nossa alma, fica realmente difícil dar-lhes a devida importância, e não surpreende que tantas vozes surjam, agora, chamando de “desnecessários” aquilo que dois mil anos de Igreja sempre ensinaram ser os meios ordinários de recebermos os favores do Céu.
Mas, contra essa teologia moderna que praticamente “protestantiza” a Igreja Católica, é preciso dizer que os sete sacramentos são necessários, sim, e a ausência deles, na vida diária, custa muito (ou pelo menos deveria custar) a todo coração que se queira chamar de católico. É claro que
os sacramentos não são necessários com necessidade absoluta, como é necessário que Deus exista, já que foram instituídos em razão da pura bondade divina; mas o são com necessidade hipotética, isto é, suposto o fim <para o qual foram instituídos>. Não porque Deus não possa, sem eles, salvar o homem, pois não fez depender dos sacramentos o seu poder, como se diz na Letra: “Como o alimento é necessário à vida”, mas porque pelos sacramentos se realiza de modo mais conveniente a salvação do homem, assim como o cavalo se diz necessário à viagem, quer dizer, porque a cavalo se viaja mais facilmente (Santo Tomás de Aquino, In IV Sent., d. 1, q. 1, a. 2, qc. 1, grifos nossos).
Ou seja, o Deus que instituiu os sacramentos evidentemente não tem a sua ação limitada por eles; Ele pode distribuir a sua graça salvadora aos homens como bem quiser. O Deus dos sacramentos é maior que os sacramentos de Deus, poderíamos dizer.
Essa verdade é uma fonte de grande consolação para nós, especialmente nesses dias em que nos encontramos privados da Missa e afastados, mais ou menos, dos demais sacramentos. Não existe apenas a graça ex opere operato; há também a graça ex opere operantis. Ou seja, além da graça que nos visita nesses sinais sensíveis da Igreja, há também o Deus que nos visita no silêncio de nossa oração íntima, em nossos atos de fé, de esperança e de caridade, nas mortificações que fazemos por amor a Ele. Agora é o momento de redescobrir e colocar em prática tudo isso. Muitos santos se santificaram assim, em situações em que o acesso aos sacramentos era muito mais difícil que agora.
Só que, também, não podemos cair no risco de subestimar o poder desses sete auxílios que Deus nos deu. A comparação que Santo Tomás de Aquino faz com um cavalo “necessário à viagem” deveria fazer-nos pensar. Qual foi a viagem mais longa que já fizemos? Talvez já tenhamos visitado o exterior, de avião. Talvez tenhamos percorrido longas distâncias dentro de nosso próprio país, de carro ou de ônibus. Seja como for, uma rápida pesquisa no Google Maps poderia dar-nos uma ideia de quão demorada seria a viagem que fizemos com esses meios de transportes caso decidíssemos fazê-la a pé, correndo ou até nadando.
E então, o que separa este mundo e o Céu? O que nos separa da eternidade? A jornada rumo à vida eterna não só é mais longa como muito mais árdua, e seria loucura, sem dúvida, prescindir dos instrumentos ordinários que Deus colocou à nossa disposição para que nos aproximássemos dele. Assim como certamente morreríamos insolados subindo do sul do Brasil ao nordeste, ou afogados tentando chegar a nado na Europa, é um perigo tremendo percorrer as vias tortuosas dessa vida sem o auxílio dos sacramentos.
Além disso, a Igreja ensina que há sacramentos mais necessários que outros para a salvação. É o caso do Batismo e da Penitência. Nosso Senhor mesmo incutiu a necessidade de que renascêssemos da água e do Espírito (cf. Jo 3, 5); e também falou do ramo que, separado da videira, só servia para ser lançado ao fogo (cf. Jo 15, 6) — ou seja, se nos apartamos de Cristo pelo pecado mortal, precisamos ser de novo “enxertados” por Ele.
Essa é a fé da Igreja. E é por isso que ela manda aos pais que procurem o quanto antes batizar os filhos recém-nascidos; e aos que estão no pecado que procurem o quanto antes um confessor, para se acusarem e receberem a absolvição de seus pecados. É certo que Deus pode muito bem salvar de outro modo, seja os infantes não batizados, seja os pecadores arrependidos “não confessados”; todavia, se está em nossas mãos salvar a estes com um ou dois minutos para ouvir-lhes os pecados [1] e àqueles com um simples copo d’água (que inclusive, em situações extremas, qualquer um pode derramar), seremos cobrados se não o fizermos.
Afinal, Deus quis “precisar” dos homens para salvá-los! E é precisamente esse o mistério por trás não só dos sacramentos, mas de toda a missão da Igreja.
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