Além das festas do calendário geral em honra à Mãe de Deus, desde a Imaculada Conceição até a Assunção, a Igreja também possui festas locais ligadas a grandes centros de devoção mariana, como Loreto, na Itália; Walsingham, na Inglaterra; Guadalupe, no México; etc. Há um costume semelhante em relação ao Arcanjo Miguel, que pode ser considerado, em certo sentido, um costume de toda a Igreja no Ocidente.

“Arcanjo Miguel”, por Juan de Espinal.

A festa principal de São Miguel, em 29 de setembro, teve origem com uma igreja a ele construída e dedicada a alguns quilômetros de Roma, na Via Salária. O título desta festa continuou a ser “Na Dedicação de São Miguel” por séculos depois de a própria igreja ter sido destruída e abandonada. A liturgia ambrosiana recebeu a festa de Roma e manteve-a com o mesmo título, utilizando vários dos cantos da Missa, bem como a Epístola e o Evangelho, tirados da Missa comum para a dedicação de uma igreja.

Nas leituras para o dia 8 de maio, o Breviário Romano afirma que o Papa Bonifácio II (530–532) construiu uma igreja em honra a São Miguel in summo circo, isto é, “no grande circo”. A afirmação parece confundir o Circus Maximus com o Circus Flaminius: este era menor, já não existe mais, e ficava em frente à Ilha Tiberina, na região onde foi, depois, o gueto de Roma. Ao lado de sua antiga localização, há um pórtico romano, construído pelo Imperador Augusto em homenagem a sua irmã Otávia, e dentro do pórtico, uma igrejinha dedicada a São Miguel. Este era o local tradicional do mercado de peixes de Roma até o século XIX, e por isso a igreja era chamada de Chiesa di Sant’Angelo in Pescheria, “Igreja do Santo Anjo na Peixaria”.

O Martirológio Romano, no entanto, não associa a festa de setembro a nenhuma dessas igrejas, mas sim ao Santuário de São Miguel no Monte Gargano, na região italiana da Apúlia, honrado em geral como o primeiro templo a ele dedicado no Ocidente. A festa de hoje, 8 de maio, chama-se “Na Aparição de São Miguel” e vem de uma história que se passa no final do século V, mas que não foi documentada de forma consistente pelas fontes antigas. [N.T.: Infelizmente, essa festa foi retirada do calendário romano geral ainda na década de 1960.]

“São Miguel e o Touro”, por Sebastián López de Arteaga.

A versão apresentada no Breviário antigo é a seguinte: Um touro, pertencente a um certo Gargano, se perdeu e ficou preso numa gruta na encosta da montanha. Quando um deles atirou uma flecha no touro, ela voltou e atingiu o próprio arqueiro. Então, os habitantes daquele lugar foram perguntar ao bispo o que fazer ante aquele sinal. O bispo declarou que eles deviam rezar e jejuar por três dias, após os quais São Miguel lhe apareceu e disse que aquele lugar estava sob sua proteção, e uma igreja devia ser construída ali em sua honra.

O Martirológio descreve essa igreja como vili quidem facta schémate, sed cælésti præstans virtúte: “construída com poucos recursos, mas excepcional em virtude celeste”. Na verdade, boa parte da igreja não foi de modo algum “construída”, ao menos não por mãos humanas. O Monte Gargano é um grande maciço, parecido mais com uma mesa que com uma colina, muito íngreme no lado norte onde fica o santuário, com a cidade de Monte Sant’Angelo situada no topo. Entra-se no santuário por um pátio na cidade e, atravessadas as suas portas, desce-se até a igreja por um número considerável de degraus. A igreja em si é metade uma caverna natural e metade um conjunto de salas, incluindo um coro e uma capela de relíquias, construída em frente à abertura da caverna e sustentada embaixo por pilares enormes que se estendem até bem abaixo do maciço.

No norte da Europa, o Mont-Saint-Michel (Monte São Miguel, em francês) ocupa o mesmo lugar que o Monte Gargano na Itália, e lá a festa da aparição de São Miguel é celebrada no dia 16 de outubro. No Breviário do Uso Sarum, as leituras das Matinas para a festa começam admitindo que a devoção ao Arcanjo no Gargano é mais antiga: 

Depois que a nação dos francos, marcada pela graça de Cristo, subjugou por todos os lados os soberbos [...], São Miguel Arcanjo [...], comandante do Paraíso [...], depois de manifestar como queria ser venerado e glorificado no Monte Gargano, mostrou por muitos sinais que queria ser venerado no lugar que seus habitantes chamam de Tumba. [Mons Tumba é o nome latino para o “Monte São Miguel”.]

A história continua dizendo que, no início do século VIII, São Miguel apareceu três vezes ao bispo local, Santo Auberto, e ordenou-lhe que construísse não só um santuário, mas uma réplica do que havia no Gargano.

O Mont-Saint-Michel está situado no noroeste da França.

O rito bizantino mantém uma festa similar, ligada a um santuário na Frígia, no centro-oeste da Ásia Menor. Em Conas, perto da cidade de Colossas (cujos cristãos receberam uma epístola de São Paulo), São Miguel apareceu ao pai de uma menina muda, instruindo-o a levar sua filha a uma fonte próxima, onde ela milagrosamente ganhou a fala. Uma igreja foi então construída sobre a nascente, atraindo muitos cristãos e levando a muitas conversões. 

Os pagãos locais pensaram em destruir a igreja desviando dois rios próximos em sua direção, mas São Miguel em pessoa veio defender o seu santuário: ao bater numa rocha próxima, abriu-se nela uma fissura que engoliu o fluxo de água. A festa do Milagre de São Miguel Arcanjo em Conas é celebrada a 6 de setembro. O Mosteiro de Chudov, em Moscou — antigamente um importante centro de educação, mas agora destruído —, recebeu esse nome por causa do milagre. 

Havia várias igrejas na própria Constantinopla dedicadas a São Miguel. A festa de dedicação de uma delas tornou-se a comemoração geral “de Todos os Poderes Incorpóreos”, celebrada em 8 de novembro, assim como a festa romana em 29 de setembro também se tornou a festa de Todos os Anjos.

“Ó Cristo, Luz de Deus Pai”

Os dois hinos [do Ofício romano] de São Miguel estavam entre os modificados de maneira mais drástica pelo Papa Urbano VIII. 

[N.T.: No século XVII, o Papa Urbano VIII criou uma comissão para revisar os hinos do Ofício Divino, reajustando-os a um latim mais clássico. O resultado foi uma mudança bem significativa na maior parte dos hinos que já eram rezados pela Igreja há mais de um milênio. Permaneceram intactos pouquíssimos textos. Por isso, as Ordens religiosas que, por sua antiguidade, puderam resistir às mudanças introduzidas por Urbano VIII, fizeram-no.]

Eis a seguir uma bela gravação do texto original do hino de Vésperas — retido pelos beneditinos e pelas Ordens religiosas com ritos próprios —, alternando polifonia e canto gregoriano. 

[N.T.: Felizmente, a reforma litúrgica pós-conciliar fez um trabalho de verdadeiro resgate da maior parte desses hinos antigos. O resultado é que, em sua grande maioria, os hinos da atual Liturgia das Horas aproximam-se bastante desses que foram conservados ao longo dos séculos pelos beneditinos, cartuxos e dominicanos. 

Por isso, disponibilizamos, lado a lado com o texto latino, a tradução litúrgica oficial brasileira do hino Tibi, Christe, splendor Patris, “Ó Cristo, Luz de Deus Pai”, rezada atualmente nas Laudes da festa de São Miguel, São Gabriel e São Rafael, Arcanjos, a 29 de setembro.]

Tibi Christe splendor Patris,
Vita, virtus córdium,
In conspéctu Angelórum,
Votis, voce psállimus:
Alternántes concrepándo
Melos damus vócibus.

Ó Cristo, Luz de Deus Pai,
vida e vigor que buscamos
dos vossos anjos, adiante,
de coração vos louvamos.
Doce cantar alternando,
nosso louvor elevamos.

Collaudámus venerántes
Omnes cæli mílites,
Sed præcípue Primátem
Cæléstis exércitus:
Michaélem in virtúte
Conteréntem zábulum.

À celestial legião
também cantamos louvor,
e destacamos seu Chefe
com sua força e vigor:
Miguel, invicto pisando
o vil dragão tentador.

Quo custóde procul pelle,
Rex Christe piíssime,
Omne nefas inimíci:
Mundo corde et córpore,
Paradíso redde tuo
Nos sola cleméntia.

Ó Cristo, Rei compassivo,
de nós lançai todo mal.
Em corpo e alma guardados
por Guardião sem igual,
em vosso amor concedei-nos
o Reino celestial.

Glóriam Patri melódis
Personémus vócibus,
Glóriam Christu canámus,
Glóriam Paráclito,
Qui trinus et unus Deus
Exstat ante sǽcula. Amen.

Glória cantando ao Pai,
ao Filho glória também.
Ao que procede dos dois
a mesma glória convém,
pois são os três um só Deus
por todo o sempre. Amém.

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