O, how wretched
Is that poor man that hangs on princes’ favours!
There is, betwixt that smile we would aspire to,
That sweet aspect of princes, and their ruin,
More pangs and fears than war or women have;
And when he falls, he falls like Lucifer,
Never to hope again.

Triste a sorte
de quem depende do favor dos príncipes!
Entre o sorriso a que ele aspira tanto,
o aspecto prazenteiro do monarca,
e sua ruína há mais angústias e medo
do que na guerra ocorre ou nas mulheres.
E quando a queda vem, quem cai é Lúcifer,
privado da esperança.

— William Shakespeare, Henrique VIII (trad. de Carlos Alberto Nunes)

Em junho de 1532, demonstrando uma coragem de que, infelizmente, careciam os demais bispos da Inglaterra, João Fisher pregou em público contra os planos do rei de se divorciar de Catarina de Aragão. Em janeiro do ano seguinte, Henrique VIII e Ana Bolena, já então grávida, contraíram em segredo um arremedo de matrimônio. Dois meses depois, Thomas Cranmer tornou-se arcebispo da Cantuária. Uma semana mais tarde, Fisher foi preso. Parece que Cranmer e o rei o queriam fora do caminho para que não se manifestasse publicamente contra o divórcio do rei, que Cranmer recohecera em maio, ou a coroação de Ana Bolena no início de junho, grávida de seis meses. Fisher foi libertado duas semanas após a coroação, sem qualquer acusação.

Rei Henrique VIII, em retrato de um discípulo de Hans Holbein, o Jovem.

Em março de 1534, Fisher, junto com Tomás More e outros, foi acusado de conluio na chamada “traição” de Elizabeth Barton, a conhecida santa Donzela de Kent que alegara ter visto o lugar reservado no inferno a Henrique VIII, caso ele se divorciasse de Catarina e se unisse a Ana Bolena. Passando por cima de toda formalidade jurídica, o Parlamento declarou Fisher e outros culpados. A punição foi o confisco de todos os bens pessoais e encarceramento ao bel-prazer do rei. Mais tarde, Fisher recebeu um indulto mediante o pagamento de uma multa de 300 libras. A pobre e infeliz “santa Dama” não teve a mesma sorte. Acusada de traição, morreu enforcada em abril junto com mais cinco companheiros, quatro deles sacerdotes. Em seguida, teve a cabeça arrancada e fincada numa estaca na Ponte de Londres, um aviso a quantos pudessem sentir-se tentados a questionar as ações do rei. Um ano depois, as cabeças de Fisher e More teriam o mesmo destino terrível. Nas palavras do historiador Richard Rex, “a execução da santa Dama e seus companheiros foi uma das muitas formas de uso judicioso do terror jurídico como meio de garantir a obediência à Reforma inglesa” [i].

No mesmo mês da prisão de More e Fisher por suposto envolvimento com a santa Dama, o Parlamento aprovou o Primeiro Ato de Sucessão, que obrigava todos os súditos a fazer um juramento de sucessão reconhecendo quaisquer filhos do casamento de Henrique e Ana como herdeiros legítimos do trono. O descumprimento da lei considerava-se um ato de traição passível de pena de morte [ii]. Fisher recusou-se a jurar e foi encarcerado na Torre de Londres no dia 26 de abril de 1534. Duas semanas antes, More também se recusara a fazer o juramento.

Da cela na prisão na Torre, More viu o abade da London Charterhouse e mais três monges passarem abaixo de sua janela a caminho do martírio, enquanto louvavam o Senhor. Como More e Fisher, eles se negaram a jurar: “Que esses benditos padres possam encarar a morte com a mesma alegria dos noivos que se dirigem ao matrimônio”, disse More à filha [iii].

Ao saberem da morte heróica daqueles santos monges, Fisher e More devem ter pensado no que os aguardava se continuassem insubmissos à nova tirania. Que teria pensado More quando a amada filha Margaret, grávida de seu neto, o visitou? Ao vê-la, como não se haveria de sentir amargurado aquele coração? “Quase lhe podemos chamar santo padroeiro da vida em família”, escreveu Christopher Hollis. “Guardamos tantas e tão vívidas imagens de sua casa, da qual vinha boa parte de sua felicidade. Felicidade, portanto, que não difere em espécie da que é oferecida a todos os homens comuns. É justamente isso o que intensifica o horror e a grandiosidade dos momentos derradeiros de sua vida. Ele caminhou em direção àquele fim a partir de uma vida como a nossa” [iv].

Escultura de São João Fisher, por Pietro Torrigiano.

Ao compararmos a paixão e prisão de More com a de Fisher, podemos quase apalpar a diferença entre laicato e sacerdócio. More tem uma esposa amável e filhos dependentes sob a sua responsabilidade. Fisher, por outro lado, é celibatário; age in persona Christi, desposado com a Esposa de Cristo, a Igreja. Poder-se-ia dizer que More estava mais justificado no conflito de lealdades que teve de enfrentar.

É compreensível a tentação de uma consciência evasiva a dar o braço a torcer, se com isso puder ajudar a família. Deve, pois, ser ainda mais louvado e venerado por ter resistido à tentação. A posição do sacerdote, porém, não parece tão difícil. Tendo a Igreja por Esposa, sua vocação é dar a vida por ela. A ausência de conflito de lealdades é um dos argumentos mais fortes a favor do celibato sacerdotal. Por isso é trágico que Fisher tenha sido o único bispo inglês a desafiar o rei; é, de resto, um atestado de fraqueza e covardia por parte da hierarquia eclesiástica. Tanto no seu como no nosso tempo, Fisher é um símbolo potente do dever que têm os bispos em todas as épocas de resistir abnegados ao espírito do mundo e ao do tempo, sempre fiéis ao Corpo de Cristo e a serviço do Espírito Santo (Heilige Geist), não do espírito da época (zeitgeist).

Fisher, já velho e doente, estava tão fraco na manhã da execução, que teve de sair carregado da cela. Quanto à execução propriamente dita, temos uma testemunha ocular de suas últimas palavras pronunciadas no cadafalso. “Povo cristão”, disse Fisher à multidão reunida em Tower Hill, “vim até aqui para morrer pela fé da Igreja Católica, fundada por Cristo” [v].

Embora os momentos finais de Fisher sejam um exemplo da coragem que lhe caracterizou a vida, não houve dignidade alguma na forma como lhe trataram o corpo. Provavelmente por ordem de Henrique VIII, o cadáver foi decapitado, despido e deixado no cadafalso pelo resto do dia. À noite, foi retirado sem cerimônias e levado a um cemitério próximo, onde o descartaram ainda despido numa cova grosseira. Não houve ritos funerários. Puseram-lhe a cabeça sobre uma vara na Ponte de Londres, onde permaneceu por duas semanas. Seu aspecto corado e aparentemente incorrupto chamava bastante a atenção.

Era a vez de Tomás More enfrentar o machado do carrasco.

Três dias após o martírio de Fisher, Henrique VIII ordenou que pregadores denunciassem dos púlpitos as traições de Sir Tomás More. Como o julgamento dele por traição só começaria dali a uma semana, no dia 1.º de julho, as ordens do rei significavam — como se fosse necessário explicá-lo… — que a sentença já estava dada e só um veredicto seria admissível. São suficientemente claros os paralelos com os sistemas jurídicos de outras tiranias secularistas, como os julgamentos de fachada na União Soviética de Stálin.

Sir Thomas More, em retrato de Hans Holbein, o Jovem.

No dia 6 de julho de 1535, a caminho do cadafalso, More pediu a Edmund Walsingham que o ajudasse a subir os degraus até o local da execução, e ainda gracejou, preservando o bom humor até o fim: “Senhor tenente, rezo para que me ajude a chegar a salvo lá em cima. Quanto à descida, posso me mover por conta própria” [vi]. Do cadafalso, momentos antes de ter a cabeça arrancada do corpo, More proclamou para a multidão ali reunida que sua morte era a de um “bom servidor do rei, mas primeiro de Deus”. 

A cabeça foi levada até a Ponte de Londres, onde a de João Fisher, coberta de sangue, ainda era exibida. Jogaram-na no Tâmisa e puseram no lugar a cabeça de More.

Hollis descreveu More e Fisher como “os dois homens mais sábios da Inglaterra” e a morte deles como o assassinato da sabedoria e da justiça, do humor e da santidade [vii]. Com um juízo tão genérico só podemos concordar parcialmente. Talvez seja ponto discutível que More e Fisher fossem inigualáveis em sabedoria; mas é certo que a morte deles não acabou com a sabedoria, que continuou “de forma medíocre” (para citar Belloc) [viii]; nem com o humor, que ressurgiria de modo estrondoso nas comédias de Shakespeare; nem com a santidade, que sempre desafia o túmulo, já que o sangue dos mártires é a semente da Igreja.

No entanto, ela matou a justiça ou, quando menos, a enfraqueceu seriamente. A usurpação pelo rei dos direitos religiosos da Igreja e, portanto, das liberdades religiosas dos próprios súditos pôs em movimento um processo de nacionalismo secular que levaria ao surgimento de um tipo de secularismo que se transforma em fundamentalismo secular. Quando o Estado se torna presunçoso demais e esmaga a liberdade religiosa, a presunção logo se transforma em autoritarismo, que esmaga os indefesos e os fracos, o que leva ao acúmulo de corpos de incontáveis vítimas

A palavra final sobre o legado de João Fisher e Tomás More — e o juízo definitivo (sob Deus) sobre a razão por que deveríamos considerá-los heróis — é de G. K. Chesterton, cuja personalidade prova que o martírio de More e Fisher não matou a sabedoria, o humor e a santidade. Num ensaio sobre Tomás More, Chesterton toca o núcleo do que separa a soberba de um rei da humildade de um santo:

Henrique sempre quis ser juiz em causa própria, contra as esposas, contra os amigos, contra a Cabeça de sua Igreja. Mas o elo que une More à supremacia romana pela qual morreu é este fato: que ele sempre teve a mente aberta o bastante para querer outro juiz que não ele mesmo […]. Há esta relação verdadeira entre o mártir e a doutrina pela qual foi martirizado; é que [More] morreu não apenas em defesa do Papa, mas em desforra do homem que quer se tornar Papa” [ix].

Notas

  1. Richard Rex, “The Execution of the Holy Maid of Kent”, Historical Research 64 [1991], 220.
  2. Tecnicamente, eles eram culpados de conivência com a traição, por si só um ato de traição na época, e portanto passível de pena capital também.
  3. Philip Caraman (ed.), Saints and Ourselves (London: The Catholic Book Club, 1953), 76-7.
  4. Christopher Hollis, St. Thomas More (London: Burns & Oates, 1961), 31.
  5. Maisie Ward (ed.), The English Way: Studies in English Sanctity from Bede to Newman (Tacoma, Washington, Cluny Media Edition, 2016), 212.
  6. From William Roper’s Life of Sir Thomas More (1626); quoted in Hollis, 237.
  7. Hollis, op. cit., 239.
  8. Hilaire Belloc, “Lines to a Don”.
  9. Ward (ed.), op. cit., 221.

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