Um dos mais belos aspectos da liturgia romana tradicional é o rico calendário de santos que ela nos põe diante dos olhos, ano após ano.
O calendário do moderno rito papal de Paulo VI, de 1969, removeu mais de 300 santos; ao mesmo tempo, reorientou a celebração da primeira parte da Missa em uma marcha mais regimentada através da Escritura, tornando opcional o uso dos “próprios” que se referiam aos santos. O resultado é uma liturgia que parece muito mais distante e separada do culto aos santos e de seus traços particulares, sem qualquer compensação de nos sentirmos mais próximos e ligados à adoração de Cristo, que é o Rei deles.
Num paradoxo formidável, a intensa veneração que os santos recebem na Missa em latim — especialmente Nossa Senhora, mencionada dez ou onze vezes, em comparação com as menções no rito de Paulo VI, que vão de uma a quatro — realça de alguma forma a dignidade sublime do Filho de Deus, cuja face os santos contemplam e do qual todos eles são imagem, como heliotrópios seguindo o curso do Sol. O culto aos santos, longe de diminuir o senhorio de Cristo, manifesta antes o seu poder e extensão. Ele é muito maior quando vemos a grandeza da corte que o circunda.
Há então, de tempos em tempos, “agrupamentos” especiais dentro da grande companhia dos santos, que encontramos organizados no calendário tradicional pelas misteriosas disposições da divina Providência. Um exemplo é o que eu gosto de chamar “o mês dos irmãos”, junho, onde encontramos um quarteto de irmãos de sangue que conquistaram juntos a vida eterna.
Em 9 de junho, celebramos as festas dos santos Primo e Feliciano, assim descritos no Martirológio Romano:
Em Nomento, na Sabina, o natalício dos santos Mártires Primo e Feliciano, irmãos, em tempo dos Imperadores Diocleciano e Maximiano. Estes gloriosos Mártires, já avançados em anos passados no serviço do Senhor, depois de suportarem, ora juntos, tormentos iguais e comuns, ora separados um do outro, tormentos diversos e esquisitos, finalmente mortos ambos à espada, por ordem de Promoto, Presidente de Nomento, consumaram o curso de sua feliz peleja; os seus corpos transladados mais tarde para Roma, foram colocados honorificamente na Igreja de santo Estêvão Protomártir, no Monte Célio.
Em 18 de junho, a festa de Santo Efrém, o Sírio, acompanha a comemoração dos santos Marcos e Marceliano, sobre os quais diz o mesmo Martirológio:
Em Roma, na estrada Ardeatina, o natalício dos santos Mártires Marcos e Marceliano, irmãos, aos quais, presos e atados a um tronco, por ordem do juiz Fabiano, foram fincados nos pés agudos pregos; mas como não cessassem de louvar a Cristo, foram traspassados com lanças pelos lados, e com a glória do martírio, passaram aos reinos celestiais.
Se for rezada a Missa para esses irmãos — embora o mais usual seja dizer a Missa de Santo Efrém, que foi adicionada ao calendário mais tarde —, este texto especial de Alleluia é recitado ou cantado: Allelúia, allelúia. Haec est vera fratérnitas, quae numquam pótuit violári certámine: qui, effúso sánguine, secúti sunt Dóminum. Allelúia, “Aleluia, aleluia. Esta é a verdadeira fraternidade, que a espada jamais pôde violar: foi pela efusão do próprio sangue que eles seguiram a Cristo. Aleluia”.
Em 19 de junho, festa de Santa Juliana Falconieri, comemoram-se os santos Gervásio e Protásio:
Em Milão, os santos Mártires Gervásio e Protásio, irmãos, ao primeiro dos quais tanto tempo o Juiz Astásio mandou açoitar com látegos chumbados, que exalou o último suspiro; ao segundo, depois de espancá-lo com paus, mandou cortar a cabeça. Os corpos destes santos foram encontrados por santo Ambrósio, por divina revelação, banhados no próprio sangue e tão incorruptos como se tivessem sido mortos no mesmo dia; em cuja transladação, um cego, tocando o féretro, recobrou a vista, e muitos, vexados dos demônios, ficaram livres.
Por fim, cai no dia 26 de junho a memória dos santos João e Paulo, aos quais a devoção em Roma era tão forte, que seus nomes se acham no Cânon Romano. O Martirológio nos dá a respeito deles este breve relato:
Em Roma, no monte Célio, os santos Mártires João e Paulo, irmãos, o primeiro dos quais era mordomo-mor e o segundo primicério de Constância Virgem, filha do Imperador Constantino, e ambos mais tarde, em tempo de Juliano Apóstata, foram mortos à espada e receberam a palma do martírio.
De modo notável, a Coleta desta última festa define uma nova forma de “fraternidade de sangue” que é alcançada pela fé em Cristo, o qual derramou o seu sangue por nós, e pelo derramamento do próprio sangue por Ele:
Quáesumus, omnípotens Deus: ut nos gemináta laetítia hodiérnae festivitátis excípiat, quae de beatórum Joánnis et Pauli glorificatióne procédit; quos éadem fides et pássio vere fecit esse germános. Per Dóminum nostrum..., “Nós vos pedimos, ó Deus onipotente, que neste dia de festa sintamos a dupla alegria do triunfo dos bem-aventurados Paulo e João, os quais irmanou de verdade a mesma fé e martírio. Por Nosso Senhor Jesus Cristo…”.
O Gradual da Missa é tomada do Salmo 132: Ecce quam bonum, et quam iucúndum, habitáre fratres in unum, “Vede como é belo e agradável a vida harmoniosa entre irmãos”, e o Alleluia repete o de 9 de junho, em continuidade e complemento à ideia da Coleta: Allelúia, allelúia. Haec est vera fratérnitas, quae vicit mundi crímina: Christum secúta est, ínclyta tenens regna caeléstia. Allelúia, “Esta é a fraternidade verdadeira, que venceu o mundo, seguiu a Cristo e reina agora venturosa na glória do paraíso. Aleluia”.
Uma ironia final deve ser mencionada: muitos dos santos removidos por Paulo VI são santos que nós, católicos romanos, veneramos em comum com os cristãos ortodoxos do Oriente. É o caso de três desses pares de irmãos juninos: Marcos e Marceliano (cuja festa no calendário oriental é em 18 de dezembro), Gervásio e Protásio (celebrados pelo Oriente em 14 de outubro) e João e Paulo (observados no mesmo dia). Um dos mais danosos legados da reforma litúrgica foi, por um lado, o enxerto de elementos “bizantinizantes” estranhos no rito romano e, por outro, o expurgo de elementos genuinamente comuns que sempre estiveram presentes — um golpe tanto contra a fidelidade ao tipo quanto contra a fraternidade eclesiástica.
Haec est vera fraternitas: essa é a verdadeira fraternidade que une os mártires, que une todos os cristãos nos vínculos da fé e do sofrimento, onde quer que eles estejam, seja qual for seu status ou estado de vida. Em uma inversão da lógica do mundo, segundo a qual o sangue é mais espesso do que a água, a religião cristã nos mostra que a água é mais espessa que o sangue: a irmandade espiritual inaugurada pelo Batismo nos une mais profunda e eternamente que os laços da geração biológica e da cultura familiar. Na verdade, é precisamente o Batismo cristão de ambos os cônjuges que faz o seu amor humano natural e o seu ato de geração serem elevados ao nível da caridade e da fecundidade sobrenaturais no sacramento do Matrimônio, e é esse mesmo Batismo, vivido, que torna a família uma imagem da vida que têm em comum os santos no Céu.
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