Em 15 de julho de 1570, quarenta jesuítas eram mortos em alto mar, a caminho do Brasil, por corsários calvinistas. Trata-se do Beato Inácio de Azevedo e de seus companheiros mártires (celebrados no atual calendário litúrgico a 17 de julho). 

Todo relato de martírio é importante para aumentar a nossa fé, mas esse tem uma importância especial para nós, brasileiros: mostra a que (altíssimo) preço nossa salvação foi comprada, e a que desafios se expunham os heróis que cruzavam o oceano para chegar até aqui. Vale a pena destacar, também, que ninguém menos que Santa Teresa d’Ávila viu esses santos missionários subindo ao Céu durante um êxtase — no mesmo dia que eles foram martirizados [i].


A missão do Brasil tinha feito admiráveis progressos, apesar de todos os esforços dos ministros de Calvino para combater a doce influência dos jesuítas. Muitos colégios prosperavam e davam grandes esperanças para o futuro. O padre Inácio de Azevedo, depois de ter visitado todas as casas da Companhia nestas regiões, voltou à Europa, onde despertou um zelo ardente, entre os jovens padres portugueses, pelas missões longínquas e perigosas da América. Depois foi o padre a Roma prestar contas ao Superior-Geral, Francisco de Borja, e ao Sumo Pontífice, dos progressos do cristianismo nas terras do Brasil, despertando em Roma o mesmo entusiasmo que em Portugal e, após ter obtido do Papa e do Padre Geral todas as graças que viera solicitar para o Novo Mundo, ele parte e embarca em Lisboa, levando consigo setenta jesuítas

A frota era comandada pelo almirante Vasconcelos. Inácio de Azevedo sobe, com quarenta missionários, a bordo da nau San Diogo; os outros, sob a direção dos padres Dias e Francisco de Castro, são divididos entre a nau almirante e a galera, que levava os órfãos recolhidos e salvos pelos jesuítas da peste de Lisboa. 

Os protomártires do Brasil, em quadro de autor desconhecido do século XVIII.

Logo, uma violenta tempestade separa a nau San Diogo das outras embarcações, e ela as perde de vista; quando tocava em Palma, cinco navios corsários, que cruzavam os mares sob o comando de Jacques Sourie, pirata de Dieppe, perseguem-na. Jacques Sourie era calvinista ferrenho, sua reputação de crueldade era apregoada em todos os mares, e seus trezentos soldados eram o terror dos marinheiros. A nau San Diogo, contando com uma tripulação de apenas quarenta homens, estava irremediavelmente perdida, mas a equipagem resolveu defender-se até à morte, e o capitão, dirigindo-se ao padre Azevedo, diz: 

— Meu Padre, vós sois muitos e nem todos os vossos jovens têm ordens; permitis que os que não estão ordenados tomem parte no combate desesperado que vamos sustentar? Nós somos católicos, e os hereges preferirão nossa vida ao butim [i.e. aos bens] que poderão achar.

— Estou persuadido disso, respondeu-lhe o padre, mas bem vedes que nossos jovens, educados no sossego do santuário e chamados a um ministério de paz, são inábeis para a guerra, e vos seriam totalmente inúteis; melhores serviços vos farão orando por todos vós e cuidando dos feridos.

Em 15 de julho de 1570, Jacques Sourie, chegando ao alcance da nau San Diogo, intima-lhe que se renda sem restrições; a nau responde-lhe com uma descarga de artilharia, e trava-se o combate. Então, Inácio de Azevedo, de pé sobre a ponte e levantando uma imagem da Santíssima Virgem [ii], incentiva o ardor dos soldados católicos, que combatem pela fé. Onze jesuítas estavam com ele, os outros estavam no porão do navio. Jacques Sourie duas vezes tenta abordar, e duas vezes é repelido, mas finalmente dá ordem de abordagem a toda a esquadra e se lança com cinquenta soldados sobre a embarcação portuguesa, gritando com uma voz tremenda: 

— Aos jesuítas! Aos jesuítas! Nada de quartel para estes canalhas! Eles vão para o Brasil derramar a semente das falsas doutrinas, acabemos com eles!

O combate é terrível, e o capitão da nave San Diogo é um dos primeiros a morrer. Os jesuítas recebiam em seus braços os que caíam sob os golpes dos hereges, e davam-lhes a última bênção; muitos daqueles religiosos estavam também feridos, mas esqueciam-se de suas dores e do sangue que vertiam, para assistirem aos soldados que tão generosamente derramavam o seu. Terminado o combate, o padre Azevedo reúne seus irmãos, porque a hora da morte soara para eles, o momento do martírio chegara, a porta do céu abria-se para recebê-los… À voz de Sourie, arremessam-se os calvinistas sobre os jesuítas: Bento de Castro é o primeiro a cair, recitando um ato de fé; Inácio de Azevedo recebe um golpe de sabre que lhe fende a cabeça e faz esguichar o sangue sobre todos os seus irmãos. O nobre mártir expira, dizendo: 

Os anjos e os homens são testemunhas de que eu morro pela defesa da Santa Igreja Católica, Apostólica, Romana.

Mas os algozes continuam a ferir seu cadáver com uma espécie de frenesi satânico. Depois, massacram todas as suas vítimas. 

“Os Quarenta Mártires do Brasil”, por Giuseppe Baguasco.

Vinte e oito noviços estavam no porão, como dissemos acima; outros dois, gravemente feridos, tinham ido juntar-se a eles; os hereges vão procurá-los, e arrastam-nos para o convés sobre o sangue e no meio dos cadáveres de seus irmãos. Nem sua mocidade, nem sua mansidão, nem sua modéstia, desarma os discípulos de Calvino; pelo contrário, enchem-nos de injúrias grosseiras e de atrozes zombarias. E porque o dia deste memorável martírio era uma sexta-feira, querem obrigar os angélicos padecentes a violar a lei da Igreja metendo-lhes na boca o alimento proibido, mas eles o lançam fora e o pisoteiam. Os hereges prometem poupar-lhes a vida se renegarem a fé; eles respondem com um olhar que exprime o mais enérgico protesto de fidelidade à fé da Igreja. Durante uma hora inteira, ali, sobre o sangue das vítimas que os precederam no céu, e perto de seus santos despojos, eles são insultados, ultrajados, escarnecidos em sua piedade, em sua modéstia, em sua angélica vocação, até que enfim, a doce paciência das vítimas e sua invencível fortaleza cansaram os algozes. Aos religiosos que têm tonsura, esmagam-lhes as cabeças onde a mão do bispo marcara-os para o serviço do altar; os outros são atados pelos pés, de dois em dois, como animais, e empurrando-os até à borda da nau, dão-lhes uma punhalada ou um golpe de espada, acompanhados de palavras ultrajantes. Sem se certificarem se ainda viviam, lançam-nos ao mar. Depois, apesar de doentes e moribundos, são insultados e feridos como os demais, e lançados às ondas. Um houve que, não morrendo nem à força de tantas crueldades, foi colocado na boca de um canhão e disparado o tiro; voaram os seus membros pelo ar até caírem no oceano.

Os calvinistas, achando divertido fazer-se servir por um jesuíta, pouparam a vida ao irmão João Sanchez, cozinheiro dos padres, e ordenaram-lhe que continuasse para eles o seu ofício: João Sanchez teve de resignar-se a este gênero de suplício, pior que a morte. 

A terrível carnificina terminara: trinta e nove mártires da Companhia de Jesus acabavam de subir ao Céu juntos, e faltava somente um para completar esta gloriosa falange de heróis, que o irmão João Sanchez parecia olhar de baixo com uma mistura de inveja e arrependimento. 

— Eu ainda estou aqui, grita de repente um jovem; eu também sou da Companhia de Jesus. 

— Tu, diz Jacques Sourie, tu não vestes o hábito destes papistas, tu não mereces a morte.

No mesmo instante, o fervoroso jovem inclina-se sobre o corpo de um dos mártires que jazem ainda sobre o convés, despoja-o da sua batina ensanguentada, reveste-se com ela e diz ao terrível corsário: 

— Eis-me aqui agora! Durante a viagem admirei as virtudes dos jesuítas, amei-os, senti-me chamado à sua Companhia, pedi ao padre Azevedo que me recebesse entre os postulantes, e ele mo prometeu; peço-vos que cumprais agora sua promessa

Com efeito, em poucos instantes seu heroísmo recebeu a recompensa. Este jovem herói, chamado San Juan, era sobrinho do capitão da nau San Diogo [iii].

Jacques Sourie estava a serviço da rainha Joana de Albret, com o título de vice-almirante, mas devemos acrescentar que esta princesa desaprovou publicamente a horrível crueldade do célebre corsário, e mandou colocar em liberdade o irmão Sanchez e os católicos da nau San Diogo

O almirante Vasconcelos, depois de ter errado pelo Oceano durante dezesseis meses, foi cair na mão de outros corsários. Estava ele à vista da costa do Brasil, quando, em 13 de setembro de 1571, quatro galeras francesas e um navio inglês cruzam a sua frota. A esquadra inimiga é comandada pelo pirata Capdeville, cuja crueldade só era igualada à de Sourie. Calvinista não menos ardente, e sabendo que o almirante português conta na sua frota com muitos jesuítas que levariam o Evangelho aos selvagens das tribos mais remotas do Brasil, determina-se a impedir seu desembarque nesta terra onde são impacientemente aguardados, e tirar a vida destes santos religiosos, esperando com este exemplo esfriar o zelo de seus irmãos e fazê-los abandonar a empresa iniciada com tanta alegria por seus antecessores. Ordena, pois, o ataque; os portugueses defendem-se valorosamente, Vasconcelos bate-se como um leão, mas não tarda a cair morto sob os tiros redobrados das galeras francesas. A equipagem apavora-se com tal perda; os soldados portugueses, muito poucos para lutar com tantos inimigos, são vencidos e os jesuítas ficam à mercê de seus carrascos.

Os padres Diaz e Francisco de Castro são logo mortos; os demais são torturados sem piedade por vinte e quatro horas; por fim, seus perseguidores, cansados de sua evangélica paciência, degolam-nos a todos, sem pouparem nenhum. Dos setenta e um padres, noviços e irmãos coadjutores, não escapou à barbárie dos protestantes senão o infeliz irmão Sanchez, e ainda este, só para escárnio. 

E os protestantes ainda bradam contra a intolerância dos católicos!

Referências

  • Trecho extraído de J.M.S. Daurignac. História da Companhia de Jesus, t. 1, trad. de Marlene Fonseca. 1. ed. Rio de Janeiro: Ed. CDB, 2018, pp. 159-163 [“Generalato de São Francisco de Borja – Terceiro Superior-Geral (1565–1572)”, cap. VI: “Brasil – Setenta jesuítas martirizados no mar por calvinistas – Índias – Japão”].

Notas

  1. É o que registra, por exemplo, Sebastião da Rocha Pita. História da América portuguesa. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2011, p. 143: “...sendo todos recebidos no Céu com quarenta lauréolas; triunfo de que teve visão a gloriosa madre Santa Teresa de Jesus em Espanha, onde florescera em milagres”. (N. da Equipe CNP.)
  2. Era uma cópia da Madona pintada por São Luís. Francisco de Borja a havia dado ao padre Azevedo quando este partira de Roma. (N.A.)
  3. Em 21 de setembro de 1742, Bento XVI declarou mártires estes quarenta jesuítas cujos nomes encontramos na História da Companhia de Jesus de Crétineau-Joly. São eles: Inácio de Azevedo e seus ditosos companheiros: Benito de Castro, d’Andrada, Alvarez, Ribeiro, Fonseca, Mendez, Escrivain, d’Acosta, F. Alvarez de Covillo, D. Hernandez, Baena, Antônio Suarez, Gonzalo Henriquez, J. Fernandez, de Braga, J. Fernandez, de Lisboa, Em. Rodriguez, Lopez, Pedro Munhoz, Magalllanes, Diogo, Gaspar Alvarez, Antônio Hernandez, Pacheco, Pedro de Fontoura, Andrés Gonzalves, Perez, Antînio Correa, Amado Vaz, Caldeira, Briëza, Fernando Sanchez, Perez Godoi, Zuraire, João de Zafra, Saint-Martino e San Juan, que ocupou o lugar do Frei Sanchez. (N.A.)

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