Quando o Papa Pio XI instituiu a festa em honra a Cristo Rei, em 1925, ele a quis no final do ano litúrgico, como coroação de todos os mistérios da vida de Jesus.
Ao contrário da festa que consta no atual calendário litúrgico, porém, a intenção original de Pio XI, expressa em sua encíclica Quas primas, era homenagear Cristo Rei no último domingo de outubro. Isto a fim de que, antes de celebrar a glória de todos os santos, em 1.º de novembro, a Igreja celebrasse e exaltasse a glória daquele que triunfa em todos os santos.
Mas não era só isso. Desde o princípio, a instituição dessa festa representou, por parte da Igreja, uma verdadeira “declaração de guerra” contra o mundo moderno: primeiro contra o erro do laicismo, que queria tirar Deus da vida pública, mas também contra alguns Estados que, ao ameaçar os justos direitos de Deus e da Igreja, espezinhavam direitos básicos de seus cidadãos.
Era o caso — só para dar dois exemplos — do México e da União Soviética, que desde 1917 começaram a perseguir de modo ferrenho os cristãos. No primeiro caso, a resistência católica ao anticlericalismo deu origem à Cristiada, um verdadeiro exercício de legítima defesa da Igreja. No segundo caso, pilhas e pilhas de cadáveres foram amontoadas em nome de um “mundo melhor” que até hoje não chegou — seja na própria Rússia, seja nos países comunistas onde seus erros foram principalmente disseminados.
Ou seja, a festa de Cristo Rei foi pensada como uma reação vigorosa da Igreja ao ódio a Deus, que transbordava das legiões de espíritos maus para as almas dos que nos governam; e, deles, para toda a sociedade.
Infelizmente, o tom social dessa celebração foi em grande parte atenuado no Novus Ordo de Paulo VI. No documento com o qual se instituiu o novo calendário litúrgico, é possível ler, inclusive, que a festa antiga não foi apenas transferida de outubro para o fim do ano litúrgico; o que se deu foi uma verdadeira substituição [1]. Mudou-se o nome da festa; mudaram-se os textos litúrgicos; e, se é evidente que nem por isso a doutrina da Igreja mudou, as mentes dos sacerdotes e dos fiéis foram, pouco a pouco, perdendo consciência do que é a realeza social de Cristo, devido à quase total falta de menção a ela, seja nas salas de aula de teologia, seja nos templos e na divina liturgia.
Mas não é só a omissão dessa verdade doutrinal que nos fez chegar ao estado em que nos encontramos hoje. O laicismo já muito antes do Concílio Vaticano II se encontrava suficientemente difundido, e praticamente sem resistência de nenhum gênero. A separação entre Estado e Igreja tal como a encontramos hoje nas sociedades civis provocou uma cisão no homem moderno, separando-lhe o corpo e a alma e criando em sua mente uma espécie de esquizofrenia.
De fato, ele leu no Evangelho: Reddite quae sunt Caesaris Caesari, et quae sunt Dei Deo, “Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 21), e entendeu o quê? Que César é tão “deus” das coisas terrenas quanto Deus, com d maiúsculo, o é das espirituais. Assim como Deus tudo criou, e tudo funciona de acordo com suas disposições, cada nação tem o seu próprio “deus” — ou, no caso, seu próprio ídolo. No mundo ocidental, isso fica evidente nas leis cada vez mais injustas que são promulgadas pelas autoridades civis. Elas se acham onipotentes e, à base de simples canetadas, definem quem pode viver e morrer, o que é família e o que não é, o que os filhos dos outros devem aprender ou não. De fato, em quantas nações do mundo o aborto já não foi legalizado? Em quantas já não é preciso mais ser homem e mulher para celebrar um casamento civil [2]? Em quantas outras, enfim, a “teoria” de gênero — no fundo, uma ideologia — já não se transformou em política de Estado?
“Mas as nações não são livres para aprovar as leis que entenderem mais oportunas para seus cidadãos?” Sim, as pessoas, melhor dizendo, são livres para votar e aprovar as normas que acharem mais convenientes para seus respectivos territórios, mas essa liberdade não é absoluta. Ela deve levar em conta a realidade das coisas, tais como foram criadas por Deus, e não instaurar uma nova ordem das coisas, uma “realidade paralela”, por assim dizer. Se um tiranete instituísse uma lei “abolindo” a gravidade, todos ririam dele e diriam, com razão, que ele perdeu o juízo. Todavia, diante de parlamentos, tribunais e conselhos que hoje proclamam (às vezes em uníssono) que um homem pode ser mulher e uma mulher, homem, todos os meios de comunicação já estão devidamente coordenados para impor uma “espiral do silêncio” e patrulhar quem quer que ouse manifestar-se contra César!
Em outra ocasião, porém, Jesus disse: Nemo potest duobus dominis servire, “Ninguém pode servir a dois senhores” (Mt 6, 24). Ou seja, é preciso dar a César o que é de César, sim, mas só Deus é Senhor em absoluto; só Ele é Senhor dos senhores; a Ele inclusive os césares desse mundo devem estar sujeitos. E não porque nós, católicos, sejamos teocratas, no sentido de que os Estados nacionais deveriam ser “fagocitados” pela Igreja em todo o mundo; mas somos, sim, teocêntricos, e acreditamos que é preciso pôr Deus em primeiro lugar, também na vida pública, pois esta é a única forma de manter a saúde mental dos povos, a única forma de evitar que, em última instância, os poderes deste mundo se erijam em deuses — e inclusive ordenem a seus súditos que lhes prestem culto.
É o que já está acontecendo na China, onde os cristãos estão sendo obrigados a substituir, em suas casas, representações de Cristo por quadros e ditos do ditador da vez: Xi Jinping.
A notícia assusta, mas é este o fim inevitável para o qual caminham todos os que perdem a fé em Jesus Cristo. Pois Ele, Deus feito homem, é o único refúgio e proteção dos pobres contra os poderosos deste mundo: sem o Deus que se fez homem, os homens se fazem deuses, e agem efetivamente como tais. Sem os limites da lei de Cristo, as leis dos homens não têm limite algum. Sem o justo temor do juízo divino, todos os juízes não só podem falhar, como realmente falham; não só podem condenar inocentes, como realmente condenam; não só podem fazer vista grossa aos maus, como realmente fazem. Daí o aborto legalizado em tantos lugares; pais pressionados a submeter os filhos ao “novo normal” da moralidade pública, nas escolas, com teoria de gênero, sexualização precoce, preconceitos contra a Igreja etc.
Ao bom católico, diante de tudo isso, não resta outra alternativa senão, com o máximo de suas forças, resistir. A menos que ele queira tornar-se mais um em meio à multidão que condenou Jesus à morte, clamando, quase dois mil anos atrás: Non habemus regem nisi Caesarem, “Não temos outro rei, senão César” (Jo 19, 15).
Não, a fé em Jesus, Nosso Senhor, não tolera compromissos fáceis com o mundo, conluios criminosos com a mentalidade dominante. O caminho de quem procura acomodar o Evangelho às modas e novidades deste mundo; o caminho de quem, na prática, serve a dois senhores é evoluir rapidamente para a apostasia, para a traição de Cristo, para o abandono da Verdade: aut enim unum odio habebit et alterum diliget, aut unum sustinebit et alterum contemnet, “porque ou odiará a um e amará o outro, ou se dedicará a um e desprezará o outro” (Mt 6, 24).
Se nos permitem a comparação, todo católico deveria procurar merecer, com sua vida, o elogio que há alguns anos recebeu a juíza Amy Coney Barrett, recém-nomeada ministra da Suprema Corte norte-americana (sob protestos, evidentemente, da mídia e de políticos anticristãos). Constatando as firmes posições da magistrada católica em matérias que dizem respeito à lei natural, uma senadora do Partido Democrata lhe dirigiu, em 2017, durante uma sabatina, as seguintes palavras: The dogma lives loudly within you — que poderíamos traduzir como: O dogma vive fortemente dentro de você, ou: O dogma fala alto dentro de você, ou ainda: O dogma está entranhado em você.
A parlamentar em questão usou a palavra dogma num sentido lato e, com a sua afirmação, ela pretendia não elogiar a juíza, mas denegrir-lhe a imagem. O que ela receava, porém, ao ver o nome de Amy avançar nas mais altas cortes da Justiça dos Estados Unidos?
O temor dela era que, num conflito entre César e Deus, a balança da juíza pendesse mais para Deus, como São Pedro adverte que os cristãos devem agir: Oboedire oportet Deo magis quam hominibus, “Convém obedecer antes a Deus que aos homens” (At 5, 29). O temor dela — e de todos os seus companheiros de partido — era ter diante de si um outro Thomas More, o santo que morreu como the king’s faithful servant, but God’s first, isto é, “fiel servidor do rei, mas servo de Deus em primeiro lugar”. O temor dela — e de todo o mundo descrente — é que ainda haja cristãos dispostos a testemunhar a própria fé, cristãos prontos a dar a vida por aquilo em que acreditam, como fizeram os mártires.
É uma pena que mulheres como esta sejam figuras raras em nossas repartições públicas. Porque a expectativa que todo o mundo deveria ter de um cristão autêntico na vida política é justamente esta: que, entre Deus e César, ele não hesitasse jamais em obedecer ao primeiro.
Os discípulos de Jesus não devem vender-se nunca à opinião pública, buscar os aplausos do mundo, se isso significa trair o seu Deus.
O nosso problema hoje é que, infelizmente, já não podem dizer a nosso respeito: “O dogma está entranhado em você”. Muito pelo contrário: o afã de agradar o mundo, as preocupações mundanas, os apegos desta vida, tudo isso pode muito bem ter feito morrer, já há muito tempo, a chama da fé em nossos corações.
Esta é, pois, a grande tragédia: o dogma já não habita mais nos corações de tantos de nós, católicos. Já não nos preocupamos mais em dar testemunho da lei de Cristo; não só a fé já não é mais importante para nós, mas a própria realidade das coisas, como foram criadas por Deus, não nos interessa mais. Preferimos manter uma aparência aos olhos dos outros a assumir a verdade com todas as suas consequências. Preferimos ceder ao aborto, à revolução sexual e à ideologia de gênero, a defender com unhas e dentes a lei de Deus inscrita no mais profundo do coração humano.
A Virgem de Fátima prometeu, no entanto, que ao menos em Portugal se conservaria sempre o dogma da fé. Por essa razão em especial, nós, lusófonos, devemos combater com muito mais empenho esse divórcio entre vida religiosa e vida pública, a que a Gaudium et spes chamou, com razão, um dos mais graves erros do nosso tempo (cf. n. 43).
Não devemos nos contentar, de fato, com o “cumprimento dos atos de culto e de certos deveres morais” (id.), pois ser cristão é muito mais do que isso: é confessar o reinado social de Cristo sobre todos os povos; é confessar que, acima de todos os césares deste mundo louco, há um Deus que tudo governa com sabedoria; é viver, enfim — e buscar que as pessoas ao nosso redor vivam — de acordo com as leis que essa Inteligência suprema ditou, desde toda a eternidade, para a nossa felicidade e eterna salvação.
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