Desde que eu li pela primeira vez as palavras da Sacrosanctum Concilium, n. 34, sobre como “repetições inúteis” (repetitiones inutiles) precisavam ser removidas da liturgia romana tradicional, tenho estado à procura de exemplos de repetição, seja ao rezar o antigo Ofício Divino — ou, para ser mais preciso, o ofício monástico tal como ele era na década de 1940 —, seja ao participar da Missa no usus antiquior, seja ao receber e observar outros sacramentos no rito antigo. Depois de mais de vinte anos de observação e reflexão, eu ainda não fui capaz de encontrar um único exemplo de repetitio inutilis [1]. 

Sim, sim, eu conheço os exemplos que as pessoas gostam de soltar e, em minha juventude tola, eu faria o mesmo. Soa elegante criticar as práticas litúrgicas que duram há séculos: “Sabe, esses pobres católicos eram tão conservadores que simplesmente mantinham esses costumes irracionais em voga, ainda que agora nós vejamos claramente que eles não fazem sentido algum. Muito melhor é otimizar o rito, torná-lo mais lógico”.

Esse ponto de vista juvenil foi substituído [n.d.t.: em mim] por uma apreciação crescente da sutileza dos elementos litúrgicos, grandes e pequenos — mesmo aqueles que parecem ter surgido “por acidente”. Como disse uma vez o Padre Pio: “Para Deus não existe isto a que se chama acaso”. Tal apreciação requer tanto paciência para buscar o significado das coisas quanto imaginação para enxergá-lo — duas realidades aparentemente bem raras em nossos tempos.

Exemplos do Ofício Divino

Após a hora Prima [2], lê-se o Martirológio e, depois, as orações antes de se iniciar o dia de trabalho. Estas começam com um triplo Deus in adiutorium meum intende, Domine ad adiuvandum me festina (“Vinde, ó Deus, em meu auxílio, socorrei-me sem demora”), seguido por um Gloria Patri, um Kyrie-Christe-Kyrie, um Pater noster, alguns versículos, outro Gloria Patri e uma oração.

Há muita repetição aqui. Eu não tenho nenhum arrazoado que oferecer, mas minha experiência, tendo-o rezado por muito tempo, é que este arranjo dá estabilidade e é muito apropriado para implorar o socorro de Deus no início dos trabalhos do dia. Quem implora deve pedir aquilo de que tem necessidade mais de uma vez, isto é, insistentemente. É esta a origem da oração que Jesus ensinou e de toda ladainha que jamais existiu. Rezar uma segunda vez a Oração do Senhor, apenas alguns instantes depois de a ter recitado ao fim da Prima, normalmente me alerta para o fato de que eu não a havia rezado a primeira vez com a devida atenção — o que me leva a tornar mais séria minha volta a ela. O mesmo se dá com a doxologia: resistindo à tentação de rezá-la rápido, é possível adentrar mais profundamente a origem e o fim de todas as nossas ações, a realidade suprema da Santíssima Trindade.

Um segundo exemplo, e um dos mais familiares, é o Benedicite [n.d.t.: o cântico de Daniel (3, 57-88.56), do domingo da I Semana do Saltério atual]. Pense numa oração repetitiva! Uma vez familiarizada com ela, no entanto — quando a pessoa percebe que está fazendo as vezes de toda a Criação, transformando suas silenciosas necessidades em louvor voluntário ao Senhor —, há um privilégio especial em pronunciar os versículos e um conforto na sucessão ritmada deles, como o movimento das ondas do mar: Benedicite omnia opera Domini, Domino: laudate et superexaltate eum in saecula. Benedicite, Angeli Domini, Domino: benedicite caeli, Domino.

As interrupções do padrão dispõem a uma retomada de atenção. Depois de dizer Benedicite dezessete vezes, nós dizemos: Benedicat terra Dominum; depois de mais oito Benedicite: Benedicat Israël Dominum; diz-se então Benedicite cinco vezes mais, até que se chegue a Benedicamus Patrem et Filium cum Sancto Spiritu e Benedictus es, Domine. Diz-se trinta vezes “bendizer” no imperativo, três no subjuntivo e “Bendito és”, uma vez, no indicativo. Uma notável numerologia trinitária e cristológica perpassa este hino, que a Igreja põe em nossos lábios como uma espécie de ladainha de bênçãos, admiravelmente adequada para os domingos e dias santos.

Um terceiro exemplo, também das Laudes, é a repetição diária dos Salmos 148, 149 e 150, que todos fizeram no Ocidente por pelo menos quinze séculos, mas que agora permanece apenas entre os monges e religiosas que retiveram seu antigo cursus. Esse trio de salmos põe em nossos lábios vinte e três vezes alguma forma de laus ou laudare, dando sentido ao nome Laudes e enfatizando essa hora como o principal ofício de puro louvor na Igreja. Há algo cativante e belo numa oração sem nenhum “valor de uso”, que não seja direcionada nem a obter um benefício nem a livrar-se de algum mal. A repetição “gratuita”, como alguém lhe poderia chamar, simboliza ao mesmo tempo o seu valor intrínseco e serve como um veículo para inculcá-lo em nós, seres impacientes e, com muita frequência, cheios de segundas intenções.

Um quarto exemplo é o refrão quoniam in aeternum misericordia eius, repetido vinte e sete vezes quando se recita ou se canta o Salmo 135. Um salmo louvando a misericórdia eterna de Deus faz ecoar ao longe a eternidade, com seu refrão imutável, assim como uma âncora mantém num lugar um navio, não obstante as ondas que o agitam. Pode ser difícil, às vezes, impedir que nossas mentes vagueiem à medida que repetimos a frase, mas obviamente o divino Mestre pensou esse salmo, assim como todos os outros, até a sua última letra, tendo em vista as necessidades espirituais de todos e cada um de seus discípulos.

Um último exemplo, e de caráter diferente dos outros, é a repetitividade indireta que se encontra no Salmo 118, recitado diariamente no Breviário Romano e uma vez por semana no monástico (dividido entre as pequenas horas do domingo e da segunda-feira). Não é preciso ter grande intimidade com o Salmo 118 para notar que ele é altamente repetitivo em seus conceitos, tecendo o salmista quantas variações de “lei, testemunhos, mandamentos, decretos, preceitos, juízos, ordens e palavras” lhe vieram à mente. A Igreja põe este salmo sempre diante de nós a fim de firmar nossas mentes vagabundas e corações rebeldes na lei imutável do Senhor, que é em última instância sua lei eterna, seu próprio ser, sua misericórdia manifestada a nós como regra de vida na qual encontraremos vida. A estrutura do salmo dá a entender que, em toda a variedade que vemos, em todas as vicissitudes que sofremos, e até na aparente falta de sentido do ciclo infinito de que fala o Eclesiastes, há uma ordem de sabedoria única, uma manifestação única do mistério do amor de Deus.

Até aqui eu falei apenas de repetição textual, mas um tratamento completo de nosso assunto teria de incluir repetições e aparentes redundâncias em pessoas, cerimônias, gestos e cantos.

O fim da repetição

Alguns desses elementos de repetição no Ofício Divino foram retidos no breviário de São Pio V e depois na Liturgia das Horas de Paulo VI, mas, infelizmente, muitos deles foram atenuados ou abandonados. Assim como a Missa foi simplificada pelos reformadores a fim de torná-la mais breve e autoexplicativa, transparente e acessível, também o Ofício foi simplificado e abreviado, tendo em vista um clero ocupado — não obstante o fato de que a maioria dos Padres conciliares, a julgar de seus discursos na aula, não apoiava nem grandes mudanças na Missa nem uma redução substancial do Breviário.

Depois de décadas de liturgia nova, porém, rezada lado a lado com uma espécie de sobrevivência inesperada da liturgia antiga, é possível não apenas conceituar, mas também experimentar como a tendência à simplificação, o abandono das formalidades e a rude rejeição de princípios estéticos acarretaram uma diminuição de disciplina e de impacto espiritual.

Mesmo o falecido Pe. Robert Taft, assumidamente antitridentino como era, admitia isto: 

O Ocidente deve aprender com o Oriente a redescobrir um senso de tradição, e parar de se emaranhar em seus próprios clichês. A liturgia deve evitar repetição? Mas se a repetição é da essência do comportamento ritual! A liturgia deve oferecer variedade? A variedade excessiva é inimiga da participação popular. A liturgia deve ser criativa? Mas criatividade de quem? É presunçoso, por parte de quem nunca manifestou a mínima criatividade em quaisquer outros aspectos da vida, pensar que é um Beethoven e um Shakespeare em matéria de liturgia [3].

O que ele não percebeu, no entanto, é que a liturgia, tal como chegou até nós, já é o equivalente a uma sinfonia de Beethoven ou a um romance de Shakespeare — se bem que numa escala muito superior. Como os ciclos de peças de mistério medievais, o culto católico tradicional tem uma profundidade, variedade, coloração e sutileza que desafiam explicações simplórias e resistem à simplificação. Padrões de repetição inteligente são um dos meios mais comuns e efetivos para se adquirir uma expressão formal de seriedade e uma intensificação crescente de desejo.

Se, na prática, a repetição retém sempre este valor, é uma matéria para exame de consciência, mas certamente não é difícil enxergar por que ela é uma característica de qualquer liturgia cristã histórica; ou melhor, de qualquer religião conhecida pelo homem. Dessa perspectiva, o expurgo implacável de repetições do Ofício Divino, da Missa e de tantos outros ritos é apenas mais um ângulo através do qual demonstrar o impulso essencialmente não-histórico, não-litúrgico e irreligioso por trás das reformas litúrgicas levadas a cabo no último século.


Atualização [14 de fevereiro de 2022]: O que mudou após o documento Traditionis Custodes, do Papa Francisco? Na prática, a celebração do chamado rito tridentino, ou de São Pio V, diminuirá a olhos vistos, devido às novas restrições que lhe foram impostas. O usus antiquior, no entanto, não foi extinto e, ainda que novas medidas restritivas sejam tomadas agora ou no futuro, permanece o valor espiritual e cultural da Missa que por tanto tempo a Igreja celebrou — como um farol a iluminar o nosso caminho ainda hoje. Para mais conteúdo sobre este assunto, consultar a homilia “Em que, afinal, devemos acreditar?” e a aula “Sacerdócio e vida de oração”.

Notas

  1. Para entender com que espírito devem ser lidas quaisquer críticas às reformas litúrgicas do século passado, seria importante assistir às aulas do Pe. Paulo Ricardo O problema com o Missal de Paulo VI, de 22 ago. 2013, e Por que uma “reforma da reforma”?, de 27 ago. 2013. Dos textos delas destacamos as seguintes palavras do Cardeal Joseph Ratzinger: “[Que] se crie a impressão de que nada no Missal jamais poderá ser mudado, como se qualquer reflexão a respeito de possíveis reformas futuras fosse necessariamente um ataque ao Concílio — a uma tal ideia eu só poderia dar o nome de absurda” (n.d.t.).
  2. Deve-se notar, en passant, que só a supressão do antiquíssimo ofício da Prima já constitui, em si, razão suficiente para levantar sérias dúvidas sobre toda a campanha de revisão anunciada na Sacrosanctum Concilium, permitindo-nos enterrar de uma vez por todas a mentira de que a reforma litúrgica teve como finalidade “restaurar o antigo culto”. Cf. Wolfram Schrems, The Council’s Constitution on the Liturgy: Reform or revolution?, Rorate Caeli, 3 mai. 2018 (n.d.a.).
  3. Return to Our Roots: Recovering Western Liturgical Traditions: America, 26 mai. 2008 (n.d.a.).

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