Entre as causas para o fim da Idade Média e o início da Idade Moderna, a Peste Negra foi, sem dúvida, um fator decisivo. Por conta do pânico gerado, a pandemia não só dizimou “um terço da Europa”, mas gerou uma nova organização social, fundada no medo e no ceticismo. No livro Decameron, do escritor Boccaccio, podemos ler o que diz uma testemunha da época:

Esta tribulação encheu de terror o coração de todos, de modo que o irmão abandonava o irmão, o tio abandonava o sobrinho, freqüentemente a esposa abandonava o marido e, o que é ainda mais extraordinário e até mesmo inacreditável, alguns pais e mães se recusavam a visitar as suas próprias crianças como se não fossem suas.

Eis aí um terreno fértil para a proliferação de vícios e ideias bastante contrárias à religião. De fato, os historiadores relatam que, após a Peste Negra, houve uma “depravação geral dos costumes na Europa”, com o surgimento da literatura pornográfica e o renascimento de costumes pagãos em toda a sociedade [1]. Daí que esse período acabasse conhecido por Renascimento. A civilização foi tomada por uma “febre de viver” tão grande, que se lançou às paixões como se não houvesse Céu nem inferno. Era o início de uma nova ordem política, social e religiosa.

Mutatis mutandis, a atual pandemia de coronavírus pode ser para nós o que a Peste Negra foi para os medievais. Assustada por tantas más notícias, presa em casa e longe dos sacramentos, a população já dá sinais de uma depravação bem maior que a do tempo de Boccaccio [2]. Por isso, não é exagero algum acreditar que o mundo, após a Covid-19, deve assistir ao surgimento de uma nova era da humanidade, com novos valores e estruturas político-sociais, assim como aconteceu na Europa a partir do século XIV. Para Henry Kissinger, o responsável pela política de controle populacional dos Estados Unidos, na década de 1970, não há outra alternativa: ou aceitamos a nova ordem mundial, ou entraremos em guerra

E as decisões dos líderes mundiais, como de praxe, só reforçam a impressão, na medida em que confirmam a agenda anticristã e a moralidade revolucionária há décadas em curso. Eles já tomaram uma posição.

O dilema dos direitos humanos

Vamos logo aos fatos: com o início da pandemia, diversos países adotaram medidas preventivas, indicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Até aqui, nada de novo sob o sol. Exageradas ou não, as medidas deveriam limitar o avanço da doença e o superlotamento dos hospitais, um dos principais atingidos pelo problema. Por conta do risco de contágio, cirurgias e consultas acabaram canceladas por tempo indeterminado, inclusive em clínicas de tratamento contra o câncer. Em tese, apenas serviços “essenciais” poderiam ser mantidos.

E aqui se esconde o “jabuti”. As aspas para “essenciais” são adequadas porque a OMS simplesmente resolveu incluir nesse grupo... as cirurgias para aborto. A decisão só veio à lume depois que grupos como a Planned Parenthood pressionaram a entidade a assegurar os chamados “direitos reprodutivos” das mulheres. Em nota à imprensa, a OMS explicou que “os serviços relacionados à saúde reprodutiva são essenciais”, conforme as suas orientações, e incluem “contracepção, cuidados de saúde de qualidade para durante a gravidez e após o parto, e aborto seguro em toda a extensão da lei”. Mais ainda: as mulheres devem ser liberadas para abortar em casa, e os abortos devem continuar mesmo se os antibióticos não estiverem disponíveis, sugeriu a dra. Antonella Lavalanet, membra da OMS.

Mas o que justificaria essa sanha? Ora, ao incluir o aborto entre os serviços “essenciais” para um tempo de pandemia que está desestabilizando o mundo, a Organização Mundial da Saúde justifica um paradigma moderno, isto é, o aborto como um direito humano fundamental que, portanto, não pode ser questionado. 

É a inversão de valores suprema. O mais virulento dos ataques aos inocentes é alçado à categoria de “direito”, incluído no rol de direitos humanos e tratado ainda como “fundamental”. Jogo de linguagem perverso, sim, mas adotado não só por entidades como a Organização Mundial da Saúde, senão também por figuras como o ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal, que tentou anos atrás descriminar o aborto no primeiro trimestre de gestação justamente com um argumento desse gênero. (No próximo dia 24 de abril, a propósito, o STF julgará uma nova hipótese de “aborto legal”. E as esperanças não são das melhores.)

Muito além do aborto

Em toda essa história, porém, o aborto, por mais cruel que seja, é apenas uma peça na engrenagem da revolução. O que se pretende é algo muito mais ambicioso, bem aos moldes do que denunciava Bento XVI: “Quando a lei natural e a responsabilidade que ela implica são negadas, abre-se dramaticamente o caminho ao relativismo ético no plano individual e ao totalitarismo do Estado a nível político” [3]. Se não há uma ordem natural a ser respeitada, então os poderosos é que decidem quais leis, políticas e práticas podem ou não valer dentro da sociedade. Eles são os novos reis absolutistas.

A Planned Parenthood, por exemplo, já não esconde a radicalidade e o totalitarismo das suas intenções. Para a organização, a crise do coronavírus é “um lembrete forte de que precisamos remover todas as leis, políticas e práticas que impedem o acesso à contracepção e ao aborto seguro”.

No livro The Sacred Project of American Sociology (ainda sem tradução para o português), o sociólogo Christian Smith descreve o modus operandi desses “iluminados” que exibem uma suposta “ciência” para seduzir a opinião pública. Smith explica, por exemplo, como “a sociologia hoje é, de fato, animada por um impulso sagrado, por mandamentos sagrados e serve a um projeto sagrado”. Esse projeto consiste em nada mais do que realizar o novo humanismo, ou seja, “a emancipação, a igualdade, e a afirmação moral de todo ser humano como autônomo, independente, e livre para viver como pessoalmente desejar, construindo sua própria identidade, entrando e saindo das relações que escolher”. Eis o fruto proibido apresentado outra vez à humanidade.

Para criar uma nova sociedade, porém, os engenheiros sociais sabem que precisam criar também uma nova religião, que ofereça uma proposta poderosa de liberdade. Essa nova religião é exatamente o cientificismo, cujos sacerdotes são médicos, sociólogos, pesquisadores entre outros. A título de exemplo, experimentem questionar a palavra de algum desses senhores para ver o que lhes acontece. Como uma casta intocável, “os sociólogos são reverenciados, venerados e defendidos como sacrossantos pelos grupos que os apoiam como sagrados”. Afinal de contas, coisas sagradas são dogmas e não podem ser contestadas. Eles devem, por isso, ser defendidos porque trazem, por meio de seus “sacramentos” (aborto, “casamento” gay, ideologia de gênero etc.), a desejada emancipação e a liberdade total para o homem viver como bem entender.

Vejam como a claque revolucionária saiu às pressas para defender o doutor Dráuzio Varella em relação ao episódio com o transexual Suzy. Dráuzio Varella é um ardente defensor do aborto e de outras bandeiras liberais. Em certos grupos, sua palavra é dogma. A Organização Mundial da Saúde, do mesmo modo, tem o poder de declarar o aborto um serviço “essencial” sem ser questionada. Eles trabalham a favor da revolução e do novo humanismo, ou seja, da livre vontade do homem para fazer o que lhe der na telha. Então, como ressalta Christian Smith, “eles nunca podem ser maculados, desafiados ou profanados por qualquer transgressão ou difamação”.

Uma das sacerdotisas do novo humanismo, a infame Margaret Sanger, dizia abertamente que o “controle da natalidade” era uma ferramenta para a evolução das mulheres — hoje ela talvez diria “empoderamento” — e uma “facilitação do processo para eliminar os impróprios ou prevenir o nascimento de deficientes” [4]. Para Sanger, o grande pecado seria precisamente “trazer crianças a este mundo, com doenças dos seus pais, com nenhuma chance de serem pessoas humanas”.

Quando olhamos para as tentativas de aprovação do aborto por causa do zika vírus ou da Covid-19, percebemos o quanto as ideias dela ainda são cultuadas. Foi na esteira dessas ideias, aliás, que o aborto se tornou legal nos Estados Unidos, em 1973, sob a justificativa absurda do “direito à privacidade” — uma forma mais “chique” de dizer: “Meu corpo, minhas regras”.

Fora da Igreja não há salvação

Margaret Sanger só conhecia um obstáculo no caminho da revolução: “Eu penso que a grande oposição é principalmente da hierarquia da Igreja Católica Romana”. Ela bem sabia que as demais denominações cristãs, como o anglicanismo, já haviam cedido à pressão da modernidade, aprovando os métodos contraceptivos. Na verdade, ela chegou a recrutar pastores protestantes para se infiltrarem na comunidade negra e disseminarem a mentalidade contraceptiva. “O trabalho dos ministros também é importante e talvez eles devessem ser treinados pela Federação, segundo os nossos ideais e objetivos que queremos atingir”, disse ela numa carta ao dr. Clarence Gamble.

A Igreja Católica, por outro lado, pronunciou-se definitivamente contra os anticoncepcionais, sobretudo, na encíclica Casti Connubii, de 1930, e mais tarde, na encíclica Humanae Vitae, de 1968. Também o aborto foi reiteradas vezes condenado pelo Magistério (vide a encíclica Evangelium Vitae), inclusive com a excomunhão para quem fizer ou colaborar diretamente na sua realização. Por isso, os bispos do Brasil não hesitaram em bradar contra o recente desatino do STF. Tal posicionamento se deve ao que o Magistério da Igreja chama “valores inegociáveis”, dentre os quais se encontra a “tutela da vida em todas as suas fases, desde o primeiro momento da concepção até à morte natural” [5].

É preocupante, porém, que a Igreja atual esteja invadida pelo relativismo, assim como a Igreja do século XIV padecia sob o nominalismo. Se em tempos anteriores não havia dúvida acerca dos “valores inegociáveis”, hoje não só há quem os considere “um acidente linguístico”, como, sobretudo, uma verdadeira afronta à liberdade de consciência. Nesse quadro, é inevitável questionar se os católicos poderemos resistir ao Golias modernista que avança com sanguinolência sobre a civilização ocidental. A Igreja Católica é necessária para a salvação tanto no plano teológico como no temporal. Foi ela, no fim das contas, que organizou o mundo dos bárbaros. Contudo, se ela mesma estiver barbarizada, de que modo poderá defender os fiéis contra o ataque do lobo?

Na fábula do Chicken Little, o lobo aproveita-se da ingenuidade do pobre franguinho para gerar pânico no galinheiro com a notícia de que o “céu está caindo”. É o Doutor Galo que põe ordem na casa, mostrando a falsidade da notícia. O lobo, contudo, procura minar a credibilidade do Doutor, disseminando fofocas contra ele entre os demais. Desse modo, o vilão consegue fazer com que todos acreditem no franguinho e na sua promessa de salvação... O fim da história todos já sabem.

A história nos mostra que o mundo se perde quando a Igreja não o ilumina. Ou recuperamos a credibilidade do Magistério católico, ou seremos todos vítimas de quem hoje afirma que o “céu está caindo”.

Referências

  1. Introdução Histórica à Página sobre o Cristianismo, III, 50-52.
  2. Por respeito aos nossos leitores, preferimos não citar diretamente as barbaridades que começaram a aparecer, quer na imprensa, quer nas redes sociais, tão logo a população se recolheu dentro de suas casas. De concursos inusitados, bebedeiras a sexo explícito, o tempo atual bem poderia ficar conhecido como “pandemia da luxúria”.
  3. Papa Bento XVI. Audiência Geral (16 de junho de 2010).
  4. Margaret Sanger. Woman and new races. New York: Eldritch Press, 1920 (versão eletrônica).
  5. Papa Bento XVI. Discurso aos participantes no Congresso promovido pelo Partido Popular Europeu (30 de março de 2006).

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