[Este texto não é de autoria do Padre Paulo Ricardo; foi escrito por Paul Kengor e traduzido por nossa equipe para esta publicação.]

As pessoas têm me pedido para analisar, em termos de perspectiva histórica, a gravidade do que Vladimir Putin e suas tropas russas estão fazendo agora na Ucrânia. Trata-se de algo sem precedentes? Há algum paralelo na história recente da Rússia?

Na história recente da Rússia não. A Rússia moderna é uma Rússia pós-Guerra Fria, produto outrora esperançoso do colapso da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) em dezembro de 1991. Essa desintegração soviética foi pedida por todas as “repúblicas” da União Soviética, inclusive a Ucrânia, que declarou sua independência do monstrengo Estado-pai antes daquele dezembro.

Em dezembro de 2021, eu poderia ter escrito uma matéria para o National Catholic Register celebrando o 30.º aniversário do fim da URSS, com a Ucrânia celebrando alegremente seu 30.º ano de liberdade. A independência da Ucrânia foi celebrada pelo Papa João Paulo II em 2001. Na ocasião, eu escrevi aqui [no Register] sobre o assunto, observando a terrível descrição que o Papa eslavo fez daquela terra “regada pelo sangue dos mártires”.

Neste exato momento, a Ucrânia está sendo martirizada uma vez mais. E de novo os perseguidores marcham de Moscou.

Escultura de São João de Capistrano, no lado de fora da Catedral de Viena, na Áustria.

Em termos de história russa moderna, o crime de Putin contra a humanidade não tem paralelo. No estágio global pós-Guerra Fria, talvez a comparação mais próxima seja a invasão do Kuwait por Saddam Hussein em 1990, mas mesmo ela acabou antes de a URSS ser extinta. De fato, tanto Mikhail Gorbatchov quanto Boris Iéltsin condenaram a agressão do Iraque e apoiaram a união da comunidade internacional, sob o presidente George H. W. Bush, para retirar as tropas iraquianas do Kuwait na primavera de 1991.

No que diz respeito à Rússia, ou — talvez eu deva dizer — “Moscou” ou o Kremlin, a atual invasão à Ucrânia evoca memórias do Exército Vermelho invadindo o Afeganistão, em dezembro de 1979; da chamada “Primavera de Praga”, na Thecoslováquia, em 1968; e, sobretudo, da invasão soviética à Hungria, em outubro e novembro de 1956.

Se estamos à procura de paralelos, sinto muito em dizer que a Ucrânia em 2022 faz lembrar muito a Hungria em 1956, e essa não é uma perspectiva nada agradável.

Era 23 de outubro de 1956, festa de São João de Capistrano. Nascido em Capistrano, na Itália, em 1385, filho de um cavaleiro alemão que vivia na cidade, João estudou Direito e terminou entrando na comunidade franciscana. Foi para a Hungria, onde se tornou conhecido como João Capistrano. No ano de 1456, conduzindo uma enorme cruzada contra os turcos otomanos, João marchou à frente de um exército de 70 mil cristãos húngaros, assegurando uma vitória monumental na grande Batalha de Belgrado. Três meses depois, ele morreu em Ilok, na Croácia. 

São João não hesitou jamais em se colocar no centro do combate contra invasores e opressores que martirizaram muitos fiéis húngaros. Em 1956, 500.º aniversário de sua morte e formidável vitória — e nada menos que dia de sua festa —, os sucessores de São João tiveram de enfrentar novas forças invasoras. Desta vez, da União Soviética. Foi o primeiro dia da Revolução Húngara.

Estátua de Stálin destruída em Budapeste. No ombro uma inscrição: “Assassino de 25 milhões de pessoas”.

O povo húngaro se reuniu naquele outubro de 1956 em Budapeste para pôr abaixo uma estátua gigante de Stálin. Era o maior monumento a ele no mundo, e sua localização tinha um significado profundo. Ele estava no lugar do Regnum Marianum, uma igreja cujo nome em latim invocava a realeza da Mãe de Jesus. A belíssima igreja foi construída em 1931. Em agosto de 1951, os comunistas depredaram a igreja pedra por pedra. Em seu lugar erigiu-se um enorme edifício a Stálin, cujos pés de bronze, segundo a lenda, estavam situados precisamente onde repousava o altar da igreja. Só a cabeça inflada de Stálin era do tamanho de cinco húngaros.

Naquele outubro, uma enorme multidão se juntou ao redor da base da estátua cantando: “Vamos pôr isso abaixo!” Duas dúzias de caminhões apareceram. As pessoas pegaram em cabos, cordas e maçaricos. E a escultura veio abaixo.

A vitória contra o Kremlin, no entanto, teria curta duração. Sentindo esse grito por independência, o sucessor de Stálin, Nikita Kruschov, enviou o Exército Vermelho. O regime ordenou um esmagamento imediato das massas húngaras, indo direto à capital do país. Bem rapidamente, milhares de guerreiros pela liberdade estavam mortos.

O Vaticano respondeu depressa, com o Papa Pio XII — a quem os capangas de Stálin uma década antes chamaram “o Papa de Hitler” —, emitindo uma declaração, Datis Nuperrime, com um subtítulo afiado: “Encíclica sobre o uso cruel de força na Hungria”. Foi publicada em 5 de novembro e dirigia-se aos “Veneráveis Irmãos, Patriarcas, Primados, Arcebispos, Bispos e outros Ordinários locais em paz e comunhão com a Sé Apostólica”.

Não muito diferente do Papa Francisco convocando o mundo inteiro para rezar pela paz na Ucrânia em 2022, o Papa Pio XII pedia por “um novo dia de paz, com base na justiça e na liberdade, para o nobre povo da Hungria”.

Mas as orações não pararam o Kremlin em 1956, assim como não o pararam em 2022.

O Venerável Arcebispo e Cardeal József Mindszenty, da Hungria.

Muitas pessoas na Hungria enfrentaram, depois disso, uma terrível perseguição — inclusive um sacerdote húngaro, o [Venerável] Arcebispo József Mindszenty, cujo mau tratamento recebido não foi para ele nenhuma surpresa. Afinal, esse parecia ser há muito o seu destino. Em 21 de fevereiro de 1946, ele recebeu o barrete cardinalício do Papa Pio XII. “Recebei o barrete vermelho”, disse o Papa ao prelado, “pelo qual deveis mostrar-vos dispostos a morrer, derramando com bravura o próprio sangue, para exaltação do Santíssimo Salvador”. Tendo colocado a biretta vermelha sobre a cabeça do Arcebispo Mindszenty, Pio XII olhou para os outros cardeais e profetizou: “Entre os 32 [aqui presentes], tu serás o primeiro a sofrer o martírio, de cujo símbolo é esta cor vermelha” [i].

Não demorou muito. Pouco tempo depois de ter voltado para casa, os comunistas assediaram, agrediram, torturaram e encarceraram o Cardeal Mindszenty. Ele passou os oito anos seguintes em um confinamento solitário que quase o levou à morte.

A Revolução de 1956 todavia o libertou. O prelado foi solto por forças rebeldes, ainda que os comunistas tivessem retomado rapidamente o controle do governo. Ao invés de abandonar seu povo, o Cardeal Mindszenty passou a morar na embaixada dos Estados Unidos em Budapeste, recusando-se a deixar seu país. Ele viveu na embaixada por 15 anos, oferecendo sua angústia como um mártir vivo da fé cristã sob o regime comunista. O Arcebispo [e também Venerável] Fulton Sheen chamou-o de “mártir ‘seco’ da Hungria” [ii].

A título de registro, o Kremlin criou um Mindszenty em cada nação da Europa oriental: na Iugoslávia, o Cardeal Aloísio Stepinac; na Polônia, o Cardeal Stefan Wyszyński; na Tchecoslováquia, os Cardeais Štěpán Trochta e Josef Beran; na Ucrânia, o Arcebispo Josyf Slipyj (entre outros numerosos na Ucrânia) e muitos outros padres e religiosas para começar a mencionar, todos cujos nomes só do céu são conhecidos.

Em todo caso, assim como fizeram com o [igualmente Venerável] Papa Pio XII, o Kremlin tachava esses clérigos católicos de “nazistas”, “simpatizantes de Hitler” e “fascistas”.

O presidente Vladimir Putin em reunião por videoconferência com o presidente chinês Xi Jinping no Kremlin, em Moscou. Imagem: Alexei Nikolsky/Sputnik/AFP.

A atual campanha do Kremlin na Ucrânia parece assombrosamente similar. Putin e seus propagandistas têm acusado a Ucrânia e seu presidente judeu de serem pró-nazismo, uma acusação completamente ridícula à qual ninguém dá crédito. Eles deram início à invasão sob o pretexto de “desnazificar” a Ucrânia. Eles estão mais uma vez usando o argumentum ad Hitlerum. Algumas coisas não mudam nunca.

As grandes mentiras de Putin fazem lembrar as que foram contadas ao povo da Hungria em 1956 pelo líder da KGB — Iúri Andropov (o qual se tornaria, mais tarde, ninguém menos que o superior de Vladimir Putin na KGB). Vale lembrar também que foi Andropov quem aprovou a tentativa de assassinato do Papa João Paulo II pelo Kremlin.

Estranhamente, a atual situação da Ucrânia também faz lembrar a Hungria no potencial de enviar milhões de cidadãos para o Ocidente como refugiados. Foi precisamente o que aconteceu na Hungria em 1956, e parece estar acontecendo de novo agora, em 2022.

Pior de tudo: o ataque do Kremlin tem o potencial de provocar um elevado número de mortes. Até o presente, ninguém sabe realmente quantas pessoas foram mortas na invasão de 1956. Sabemos apenas que foram muitos milhares, talvez dezenas de milhares. Tratou-se de uma tragédia sangrenta.

Podemos apenas esperar e rezar para que uma sorte semelhante não recaia sobre o povo ucraniano em 2022.

Notas

  1. As palavras “Recebei o barrete vermelho…” fazem parte da fórmula de imposição do chapéu rubro. O rito sofreu alterações depois de Pio XII, mas sua essência permanece ainda hoje: Ad laudem omnipotentis Dei et Apostolicae Sedis ornamentum, accipite biretum rubrum, Cardinalatus dignitatis insigne, per quod significatur usque ad sanguinis effusionem pro incremento christianae fidei, pace et quiete populi Dei, libertate et diffusione Sanctae Romanae Ecclesiae vos ipsos intrepidos exhibere debere. “Para glória do Deus todo-poderoso e honra da Sé Apostólica, recebei o barrete vermelho, sinal da dignidade do cardinalato, pelo qual deveis mostrar-vos intrépidos [a defender] até a efusão do sangue o incremento da fé cristã, a paz e tranquilidade do povo de Deus e a liberdade e difusão da Santa Igreja Romana” (Cappella Papale. Concistoro Ordinario Pubblico presieduto dal Santo Padre Benedetto XVI per la creazione di nuovi cardinali. Basilica Vaticana, 18 feb. 2012, p. 25, trad. port. nossa) (N.T.).
  2. Aqui o termo dry, que traduzimos literalmente como “seco”, tem o sentido de “desadornado”, “sem galas” (N.T.).

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