Na liturgia antiga, o 1.º de julho era o dia de uma festa de 1.ª classe em honra ao Preciosíssimo Sangue de Cristo. (Na liturgia nova, abolida a festa, ainda assim é possível celebrar uma Missa votiva dedicada a esse mistério.)

Com tal celebração, todo o mês de julho ganha um tom diferente. Estamos no tempo depois de Pentecostes (o tempo per annum), mas a Igreja não quer que percamos de vista a humanidade santíssima de Nosso Senhor, pois é através dela que são derramadas sobre nós todas as graças do Espírito Santo. A Ladainha do Preciosíssimo Sangue, que todos podemos rezar especialmente neste mês, fala do Sangue de Jesus “correndo pela terra na agonia”, “manando abundante na flagelação”, “gotejando na coroação de espinhos”, com o que nós somos imediatamente transportados às mais cruéis e sanguinolentas cenas da Paixão de Nosso Senhor, na qual Ele demonstrou o seu grande amor por nós. 

Unido a esse mistério, porém, o trecho do Evangelho proclamado ontem na liturgia reformada (terça-feira da 13.ª Semana do Tempo Comum, ano ímpar) deveria fazer-nos meditar de modo particular acerca do papel de Cristo como mediador entre Deus e os homens, e especialmente na Igreja Católica. 

A passagem em questão (cf. Mt 8, 23-27) é a do Cristo que dorme enquanto “a barca estava sendo coberta pelas ondas” durante “uma grande tempestade no mar”. Junto com Ele estavam os Apóstolos. Agitados com a possibilidade de que a barca afundasse, os discípulos acordam Jesus e pedem-lhe que intervenha. Nosso Senhor, então, atende-lhes aos rogos, ordena aos ventos e ao mar que cessem sua fúria e, prontamente, advém-lhes “uma grande calmaria”.

O brilho do poder de Nosso Senhor contrasta aqui com a grande impotência dos discípulos. Eles entraram na barca justamente por causa de Cristo, como se lê no início dessa perícope: “Jesus entrou na barca, e seus discípulos o acompanharam”. Se eles entrassem sozinhos, no entanto, por conta própria e sem o Senhor, é certo que veriam soçobrar a embarcação. O Evangelho cala-se aqui a respeito do que teriam feito os discípulos quando começou a tempestade, mas o trecho paralelo de S. Marcos detalha que a tormenta “lançava as ondas dentro da barca, de modo que ela já se enchia de água” (Mc 4, 37) e S. Lucas completa dizendo que “eles se achavam em perigo” (Lc 8, 23). 

Talvez, à vista de tudo aquilo, alguns dos discípulos já tivessem até lançado algumas coisas ao mar, a fim de tornar o barco menos pesado; talvez, um ou outro deles, mais dado à navegação, houvesse lançado mão de alguma técnica para evitar que eles afundassem. O fato é que nada do que fizeram (ou do que pensavam ser possível fazer) foi capaz de deter o mar tempestuoso.

A barca em questão é símbolo da Igreja, evidentemente; mas também pode simbolizar a alma que procura lutar contra a força das más paixões e resistir às tribulações e dificuldades da vida presente. De uma forma ou de outra, prestemos atenção ao que fazem os discípulos (pois é também isso o que devemos fazer, a Igreja como um todo e cada um de nós, se quisermos experimentar a “grande calmaria” que se seguiu àquele episódio): o Evangelho diz expressamente que eles “aproximaram-se [de Cristo] e o acordaram, dizendo: ‘Senhor, salva-nos, pois estamos perecendo!’”.

Ora, que os Apóstolos, entre os quais se contavam alguns pescadores, recorressem a um carpinteiro para resolver um problema no mar… não parece surreal? 

Não, se nos atentarmos à palavra com que eles chamam Jesus: “Senhor” (Κύριε, Kyrie). Os discípulos, mesmo com a fé fraca que tinham, não viam em Cristo um homem comum. Aquele ser humano de carne e osso que dormia na popa da barca não era só verdadeiro homem, mas também verdadeiro Deus. Eles recorreram a Cristo porque viam nEle aquele único mediador de que fala o Apóstolo (cf. 1Tm 2, 5), o qual, tendo assumido a nossa carne, é capaz de interceder a nosso favor e que, sendo Deus, é capaz de ter misericórdia e nos salvar. 

Assim como a comunidade dos primeiros discípulos, a Igreja através dos séculos é esse povo reunido em torno da humanidade santíssima de Nosso Senhor e que implora, dia e noite, clemência ao Sumo e eterno sacerdote — pois “o ofício próprio do sacerdote é ser mediador entre Deus e o povo” (STh III 22, 1 c.). E de que modo especial Cristo cumpre essa missão senão na Cruz? E como a Igreja recebe as graças desse sacrifício, senão através do santo sacrifício da Missa, renovação incruenta do sacrifício do Calvário?

A Missa é, pois, o centro da vida da Igreja e deve ser o centro de toda a nossa vida. Nela, assim como os Apóstolos clamam pelo Senhor: Kyrie, o povo reunido clama Kyrie eleison, e implora à santíssima humanidade de Cristo que interceda mais uma vez por toda a Igreja e por todos os seus. Não nos voltamos uns aos outros, como numa assembleia autorreferencial, que se salva a si mesma. Não temos meios de nos livrar da tempestade do mundo. Não somos mais poderosos que os primeiros cristãos, os Apóstolos. Não somos diferentes dos primeiros homens que seguiram a Nosso Senhor, e que se viam profundamente necessitados dEle. Também nós todos, sem exceção, precisamos da sua intervenção e do seu socorro. 

É por isso que na Santa Missa, sacerdote e povo, ministro consagrado e leigos batizados, todos nos voltamos para a mesma direção: ad orientem, rumo ao Sol de justiça que é Nosso Senhor. A Ele nós clamamos, como os Apóstolos naquela tempestade: Salva nos (curiosamente, a mesma invocação que fazemos ao rezar a Ladainha do Preciosíssimo Sangue). 

Infelizmente, porém, já há muito tempo que se tem tentado transformar a liturgia num “produto humano”, como se fossem os nossos esforços, os nossos miseráveis esforços, o que viria a salvar a barca da Igreja. É como se estivéssemos insatisfeitos com Cristo em nosso meio; é como se a humanidade de Nosso Senhor, real e substancialmente presente nas espécies eucarísticas, não nos fosse suficiente. Ou pior: é como se tivéssemos perdido por completo a fé, e pensássemos que Jesus, no fundo, é apenas o “carpinteiro de Nazaré”, e que por isso não seria capaz de lidar com os nossos problemas de navegação

Como resultado disso, o que fazemos? Caímos na tentação da autossuficiência. Procuramos de todos os modos “adaptar” o culto instituído pelo próprio Deus humanado aos nossos gostos e caprichos. Não nos bastam as orações que a Igreja sempre rezou; não nos basta o Evangelho que os cristãos em todos os lugares proclamaram; não nos bastam as palavras do Cânon que os sacerdotes de todos os tempos pronunciaram; não nos basta a fórmula de consagração que Jesus nos deixou ao instituir a Eucaristia… É preciso “inventar”, é preciso “inovar”, é uma sanha incontrolável que ninguém consegue curar.

E ai de quem ouse alertar para a presença de Cristo no barco! “Pouco importa”, alguém poderia responder, “deixai-o dormir, que nos viramos nós!”

Como consequência dessa soberba, acontece aquilo que alertou o Cardeal Joseph Ratzinger em sua Introdução ao espírito da liturgia

O Homem sozinho não consegue mesmo “criar” um culto fácil porque, sem Deus se revelar, ele será sempre insignificante. As palavras de Moisés ao Faraó: “Não sabemos quais serão as vítimas que ofereceremos ao Senhor” (Ex 10, 26), expõem, sem dúvida, um princípio fundamental de toda a Liturgia. No pressentimento de Deus que lhe é inerente, o homem pode, certamente, sem Deus se revelar, edificar altares “ao Deus desconhecido” (cf. At 17, 23); nos seus pensamentos, ele pode elevar-se para Deus, na tentativa de o alcançar, mas a verdadeira Liturgia pressupõe que Deus responde e expõe o modo de ser venerado. Ela inclui, duma certa maneira, algo como “nomeação”. Ela não pode ser fruto da nossa fantasia e criatividade — pois assim, seria apenas um grito na escuridão ou simplesmente a afirmação de nós próprios. A Liturgia pressupõe algo de concreto diante de nós, algo que se nos revela, indicando o percurso da nossa existência [...].

A história do bezerro de ouro alerta para um culto autocrático e egoísta em que, no fundo, não se faz questão de Deus, mas sim em criar um pequeno mundo alternativo por conta própria. Aí, então, é que a Liturgia se torna em mera brincadeira. Ou pior: ela significa o abandono do Deus verdadeiro, disfarçado debaixo de um tampo sacro. Mas, assim, o que resta no fim é a frustração, a sensação do vazio. Já não se faz sentir aquela experiência de liberdade, que acontece em todo o lado onde haja encontro com Deus vivo [1].

Ora, que haja essa “frustração” e “sensação do vazio” entre os pagãos e nas religiões naturais, que não conhecem a revelação cristã, é coisa perfeitamente compreensível. Agora, que um “culto autocrático e egoísta” substitua o “encontro com Deus vivo” dentro da Igreja Católica, como entender?

A pergunta que precisa ser feita, portanto, é se ainda cremos que Deus se revelou em Jesus Cristo. Cremos que o homem Jesus, que viveu em Nazaré, que salvou os discípulos da tempestade em Tiberíades, que instituiu a Eucaristia para permanecer em nosso meio, que morreu na Cruz para instituir um sacrifício perpétuo pela nossa salvação… nós cremos que esse homem era Deus? Ou, ao contrário, já nos parece que tanto faz estar na barca de Pedro, com Cristo; ou na “barca” de Alá, com Maomé; ou na de Allan Kardec, com Chico Xavier; ou na “barca” dos inúmeros deuses das outras religiões? Ainda acreditamos que a humanidade de Nosso Senhor é o único caminho para a salvação ou já nos vendemos a um projeto de religião universal que tudo iguala e nivela por baixo?

O Evangelho de ontem não mencionava quantos e quais dos Apóstolos foram atrás de Nosso Senhor em busca da salvação. Talvez fossem todos. Talvez apenas alguns. Talvez fosse apenas um deles. Sabemos todavia que, no momento mais importante de toda a obra da Redenção, um deles o traiu; um deles, e o chefe, o negou; e outros tantos, covardemente, fugiram. Se ficaremos nós, pobres de nós, miseráveis nós, aos pés da Cruz, e até o fim, só Deus o sabe. Se acontecer de resistirmos e ficarmos, no entanto, saibamos desde já: não será por nossas forças, não será por nossos esforços, não será por nossos méritos, mas unicamente pela força e pelo poder do Preciosíssimo Sangue de Cristo. 

Por isso, e porque a fé não nos foi tirada, não deixemos de subir ao altar de Deus, alegria da nossa juventude, e clamar: Sangue de Cristo, “salva-nos, pois estamos perecendo!” Foi o que fizeram os discípulos no mar de Tiberíades e é também o que devemos fazer, a Igreja como um todo e cada um de nós, se quisermos experimentar hoje a “grande calmaria” que se seguiu àquela tremenda tempestade. 

Referências

  • Joseph Ratzinger. Introdução ao espírito da liturgia. 5. ed. São Paulo: Paulinas, 2012, pp. 15-16.

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