Como sabe qualquer pessoa que já tenha usado alguma vez um missal, seja o de altar seja o manual, o Missale Romanum tradicional [1] é dividido em diferentes seções:
- o “Próprio do Tempo” (ou ciclo temporal), começando com o 1.º Domingo do Advento e culminando com o Último Domingo depois de Pentecostes;
- o “Próprio dos Santos” (ou ciclo santoral), começando com a vigília de Santo André (para quem usa a edição anterior à reforma de 1955) ou a comemoração de São Saturnino seguida da festa de Santo André (quando se segue a edição de 1962) e terminando com o abade São Silvestre Gozzolini em 26 de novembro;
- os “Comuns”, começando com as vigílias dos Apóstolos (pré-1955) ou os Papas (pós-1955) e terminando com a Bem-aventurada Virgem Maria;
- as Missas votivas;
- e por último orações diversas, a Missa de Defuntos e Missas locais.
Ainda que os missais nem sempre tenham sido organizados desta forma [2], é óbvio que o ciclo temporal — tal como existe há bastante tempo — faz todo o sentido: dizemos que o ano litúrgico da Igreja começa com o tempo do Advento e termina com o último Domingo depois de Pentecostes. Mas, tomando S. André como o início oficial do ciclo santoral [3] e S. Silvestre Abade como seu fechamento oficial, podemos perceber uma conveniência similar na forma como esse ciclo é disposto no Missale Romanum?
Antes de proceder, duas observações. Primeiro, o abade São Silvestre Gozzolini, OSB (1177–1267), fundador dos “silvestrinos”, é um acréscimo relativamente recente no calendário geral, tendo sido introduzido pelo Papa Leão XIII em 1890. Como consequência, ele não é encontrado nos calendários de algumas dioceses e de várias Ordens religiosas [4]. Entretanto, para a vasta maioria dos católicos que rezam segundo o usus antiquior, o último santo no ciclo santoral é, de fato, S. Silvestre Abade.
Segundo, ainda que os comentadores medievais da Escritura (como Guilherme Durando) digam muito pouco sobre a relação entre os ciclos temporal e santoral, e muitos detalhes sejam inicialmente obra do acaso ou da praticidade, sabemos que a liturgia, da forma orgânica como se desenvolve sob o cuidado da divina Providência, muitas vezes deixa entrever uma impressionante conveniência no arranjo ou disposição de suas partes, a qual vai muito além do escopo limitado das intenções humanas [5]. É por isso que em qualquer aspecto da liturgia podemos abordar a questão da conveniência e esperar encontrar respostas plausíveis, assim como os alegoristas medievais podiam olhar para os atos cerimoniais [da Missa] — o ósculo sobre o altar, o ato do sacerdote de se voltar para a assembleia, os sinais da cruz feitos por ele — e ver neles representações das fases da vida de Cristo, ou de sua dolorosa Paixão [6]. É razoável, pois, explicar simbolicamente o porquê de o ciclo tradicional dos santos começar ou terminar deste e daquele modo.
Comecemos pelo fim. Como explica o St. Andrew’s Daily Missal, S. Silvestre “deveu sua vocação religiosa à vista do cadáver de um parente. Primeiro ele viveu uma vida solitária, mas depois fundou um mosteiro sob a Regra de S. Bento”. A história levemente macabra de sua conversão é tematizada na Coleta de sua festa:
Clementíssime Deus, qui sanctum Silvéstrum Abbátem, saéculi huius vanitátem in apérto túmulo pie meditántem, ad erémum vocáre et praecláris vitae méritis decoráre dignátus es: te súpplices exorámus; ut, eius exémplo terréna despiciéntes, tui consórtio perfruámur aetérno. Per Dóminum nostrum. — Ó Deus clementíssimo, que vos dignastes chamar à solidão o bem-aventurado abade Silvestre pela meditação piedosa das vaidades do mundo em presença de um túmulo aberto, e o adornastes de notáveis merecimentos de vida, fazei que, desprezando como ele as coisas do mundo, gozemos da vossa eterna companhia. Por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Não nos surpreende encontrar o tema do “desprezo pelas coisas do mundo” em nossa busca pelo unum necessarium; trata-se de uma marca característica da espiritualidade litúrgica tradicional. Nós o encontramos presente, por exemplo, na poderosa Secreta do Último Domingo depois de Pentecostes, que diz, em parte: ómnium nostrum ad te corda convérte, ut a terrénis cupiditátibus liberáti, ad coeléstia desidéria transeámus, “convertei para vós o nosso coração, para que, libertos da cupidez terrena, cresçamos nos desejos do céu”.
A Coleta de S. Silvestre assume, porém, uma conveniência peculiar, por cair na estação do outono. Ao menos nos climas do hemisfério norte, o fim do ano litúrgico coincide com o período em que o mundo natural escurece e dorme. A vegetação perde muito de sua verdejância, como se a cor verde do tempo de Pentecostes fosse desaparecendo devido à distância que tomou de sua origem (“Quando o Filho do Homem voltar, ainda encontrará fé sobre a terra?”); as folhas mudam de cor e caem no chão, como tantos corpos de seres mortais prestes a se decompor em seus túmulos. Notável por suas associações melancólicas, o outono é a estação em que a natureza se transforma a fim de preparar-se para o longo inverno — o qual precede, por sua vez, o tempo pascal da primavera e sua analogia sobrenatural com a Ressurreição. De fato, o mês de novembro é vivido como o mês dos mortos, e devemos ver nisso uma associação não meramente acidental com a festa de Todos os Santos [7].
O Próprio dos Santos no Missal tradicional, de fato, parece concentrar nossa atenção no que podemos chamar de “escatologia pessoal”: cada um de nós deve vigiar, com sobriedade, em preparação para a vinda de Cristo, nosso Juiz. A nota escatológica do final do ano é acentuada pelos Evangelhos das festas de S. Cecília, em 22 de novembro (a parábola das dez virgens, de Mt 25,1-13), e do Papa S. Clemente em 23 de novembro (Mt 24,42-47: “Vigiai, pois não sabeis a hora...”). A perícope das virgens é repetida, então, em 25 de novembro, com a festa de S. Catarina de Alexandria. Acrescente-se a isso a intensidade das orações escolhidas para São João da Cruz, em 24 de novembro (ao invés do dia 14 de dezembro, como é no Missal de Paulo VI), e é possível vislumbrar um tema crescente de mortificação, com um olhar sobre nossa mortalidade pecaminosa e a imortalidade por que ansiamos.
Ao invés de envolver o fim do ano litúrgico com o triunfalismo transcendental e teilhardiano de “Cristo, Rei do Universo”, a festa de S. Silvestre em 26 de novembro empresta a essa conjuntura uma nota mais sóbria, introspectiva e retrospectiva, como a de um memento mori: Vê o cadáver no caixão aberto e contempla teu próprio fim; medita sobre isto como preparação para o início do Advento, quando celebramos a vinda daquele que salva o homem do pecado e da morte; olha para além das pompas e vaidades do que o mundo considera valioso, e fixa teus olhares na santidade, na imitação dos muitos santos que, começando com o precursor São João Batista, procuraram o deserto, ou melhor, procuraram Deus, que os chamou e enobreceu.
Há algo de irônico ou paradoxal na forma como a liturgia tradicional põe termo ao ano e o começa de novo — como que ilustrando estas linhas de T. S. Eliot: “É assim que acaba o mundo / Com um gemido e não com um estrondo” (This is the way the world ends / Not with a bang but a whimper, in: The Hollow Men). Ao menos é assim que o mundo termina na morte de cada um de nós, no momento em que expiramos pela última vez. A quietude do túmulo conduz à quietude de uma estação fria, que traz aos nossos olhos uma família pobre, um estábulo, uma manjedoura, uma criança envolta em panos e nenhum prospecto de vitória divina — a não ser pela quase que imperceptivelmente crescente luz do dia.
Voltando-nos para o início do ciclo santoral, encontramos tradicionalmente a festa de Santo André Apóstolo em 30 de novembro. Como o Próprio dos Santos cuida de recordar, venerar e invocar os discípulos do Senhor, é sumamente apropriado que o primeiro dos santos seja André, o primeiro dos discípulos do Senhor em seu ministério público. A Igreja bizantina dá a ele o epíteto litúrgico oficial de Πρωτόκλητος (“Protocletos”), isto é, “o primeiro a ser chamado”, e nós vemos na disposição do calendário romano uma prioridade e proeminência análogas.
Desta forma, o ciclo dos santos, tal como impresso no missais, reflete a prioridade da vocação do discípulo de Cristo — “Vem e segue-me” — e a autorrenúncia e via crucis que ela necessariamente exige, enquanto seguimos Jesus rumo à eterna glória. Devemos seguir a Ele, “em quem habita toda a plenitude da divindade” (Cl 2,9), e não ao vazio das coisas deste mundo. A vida cristã como um todo não é senão uma passagem através do deserto para alcançar a fraternidade da terra prometida — e desta passagem o ciclo santoral, tanto no geral quanto em seus detalhes, é uma representação vívida.
A festa do Apóstolo André tem sido celebrada por mais de um milênio; a do Abade S. Silvestre, por apenas um século e um quarto. Mas se olhamos para o calendário litúrgico como sendo a construção de uma grande catedral — como a de Milão, por exemplo, que começou em 1386 e foi oficialmente terminada em 1965, levando quase 600 anos para ser completada —, vemos como seu desenvolvimento adiciona pedra depois de pedra, escultura depois de escultura, até que toda a estrutura seja finalizada. Ao adicionar S. Silvestre Gozzolini ao ciclo santoral, o Papa Leão XIII adicionou uma pedra final apropriada à sua estrutura, tornando-o ainda mais frutuoso espiritualmente para todos que se beneficiam do usus antiquior.
Como um post-scriptum, pode-se apontar com tristeza que a forma como o novo Missal Romano arranja o ciclo santoral se afasta do padrão, estável por mais de 500 anos, a começar pela cúspide de dezembro e terminar na última semana de novembro. Em uma jogada ilustrativa da fusão entre aggiornamento e secularização, o novo ciclo santoral se conforma ao calendário secular hegemônico, começando no dia 1.º de janeiro (com o dia 2, na verdade) e encerrando-se com o dia 31 de dezembro, ainda que estas datas não tenham nenhum significado especial no ano litúrgico, que se desdobra do Advento até o tempo depois de Pentecostes. O usus antiquior, tanto em seu ciclo temporal quanto santoral, dá testemunho consistente de uma estrutura do tempo mais antiga e com mais autoridade.
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