Ainda na esteira da grande festa de Pentecostes — uma festa tão grande aos olhos da Igreja Católica, que era celebrada por oito dias (ou seja, como uma Oitava) no rito latino desde o final do século VI, um costume até hoje existente onde quer que se celebre a forma antiga do rito romano —, faríamos bem em examinar o que significa e o que não significa o dom de línguas.

Certa vez um amigo me disse que manifestara o seu amor à Missa tradicional em latim a um diácono, que lhe respondeu enfurecido: “O Pentecostes mostra que os Apóstolos falaram com todos em sua própria língua — não em latim”. Essa interpretação equivocada do Pentecostes, que às vezes escutamos sob diferentes formas, merece uma resposta.

1. O livro dos Atos dos Apóstolos mostra que os Apóstolos pregaram para as pessoas em muitas línguas. Não há nada no relato de Pentecostes sobre o culto no Templo ou na sinagoga, ou sobre a liturgia eucarística e o Ofício Divino, que se desenvolveram a partir deles e os substituíram. E até onde sei, sempre foi costume pregar em vernáculo nas Missas em latim, salvo em contextos acadêmicos muito especializados. O dom de línguas existe para a evangelização, a apologética e a catequese — não especificamente para o culto litúrgico.

2. O Pentecostes é apresentado na Escritura como uma inversão da torre de Babel. A maldição original do homem ambicioso era dividir a sua prole em mil línguas. Os ricos frutos poéticos da multiplicidade de línguas podem ser considerados bênçãos queridas por Deus, mas a dificuldade e a frequente impossibilidade de um discurso comum entre animais racionais é uma maldição, a qual sempre se renova quando deparamos com uma liturgia celebrada numa língua que nos é estranha, como se nos estivera dizendo: “Isto não é para você; é apenas para eles, para aquele grupo de pessoas”. 

Quando tradições litúrgicas desenvolvem uma linguagem comum de culto público, temos um retorno simbólico à condição anterior à Queda no Jardim do Éden, quando os seres humanos só falavam uma língua. Na liturgia latina, não somos confrontados com uma forma vernacular estranha que nos exclui; pelo contrário, escutamos o som de uma única voz, que pertence à Igreja em oração, acolhendo todas as nações e povos numa única celebração.

Sim, o latim litúrgico é “estranho” no sentido de ser algo que não está à nossa disposição todos os dias; não é algo familiar e fácil, nem está em nosso nível. Ele evoca a transcendência e a majestade de Deus, a universalidade de seu Reino, as antigas profundezas da fé. Mas ao longo do tempo identificamos essa linguagem distante como sinal de honra, enxergâmo-la como promotora da reverência e encontramos nela um convite à oração. Quando mergulhamos numa piscina, tão-logo atingimos a água sabemos — não apenas de modo racional, mas também de modo instintivo — que estamos num novo ambiente e que devemos nadar. O mesmo acontece quando escutamos um canto ou orações recitadas em latim: sabemos que estamos em um novo ambiente e que devemos rezar.

3. O dr. Joseph Shaw mostra que o costume de empregar uma linguagem sagrada tem lastro na própria história da Salvação:

A tradição do canto gregoriano remonta ao Templo em Jerusalém, onde trabalhavam cantores profissionais (cf. 2Cr 5, 15); o uso do latim recorda o uso do hebraico como língua sagrada depois que os judeus passaram a falar aramaico; a ênfase da liturgia tradicional no sacerdote, no altar e no sacrifício está impregnado da atmosfera do antigo culto judaico, algo que às vezes é observado por judeus conversos.

Como eram judeus, eles [Apóstolos] aprenderam a rezar e a cantar os Salmos em hebraico e em sua língua materna. Não há na Escritura nenhuma crítica a línguas sagradas, e as liturgias mais antigas não eram de forma alguma compostas na linguagem comum. Nas regiões em que se falava grego, a Igreja conseguiu empregar o registro sagrado criado pela Septuaginta: uma forma distinta do grego que já tinha dois séculos de existência e era repleta de hebraísmos. A liturgia em latim só surgiu quando traduções latinas da Bíblia criaram algo equivalente. Depois disso, encontramos uma liturgia com um latim sagrado e um vocabulário especializado, repleto de arcaísmos, estrangeirismos e outras particularidades; de modo semelhante, o copta litúrgico é uma língua arcaica enriquecida com termos gregos e escrita em caracteres gregos. Quanto à Igreja eslava e à linguagem do missal glagolítico, suas origens e sua história não são redutíveis à simples ideia da “língua em uso na época” e, em todo o caso, elas rapidamente se tornam línguas litúrgicas para pessoas que não são capazes de compreendê-las. Permanecem, sim, vinculadas culturalmente aos povos a que servem, mas não são facilmente compreensíveis por eles.  

De fato, vemos que toda a igreja cristã antiga desenvolveu línguas e expressões sagradas para o culto: a Igreja Ortodoxa grega ainda usa o grego koiné, os russos usam o eslavo eclesiástico, os etíopes usam o ge’ez, os coptas usam o copta literário etc. Não se trata de um fenômeno ocidental ou romano

4. Nossa língua nativa, ou “língua materna”, vem de nossa própria mãe: a voz dela é a primeira que ouvimos quando estamos em seu ventre, e quando nascemos e somos carregados por ela no colo escutamos a mesma voz. Em certo sentido, somos equipados por natureza com o nosso vernáculo cotidiano por causa de uma imersão sem esforço na cultura familiar. Essa linguagem representa a ordem natural na qual vivemos, nos movemos e temos o nosso ser natural.

Ora, assim como o cristão recebe do exterior o renascimento espiritual do Batismo (pois, como afirma Joseph Ratzinger, “ninguém nasce cristão, nem mesmo tendo nascido num mundo cristão ou de pais cristãos. Só é possível tornar-se cristão por meio de um novo nascimento. A vida cristã começa com o Batismo, que é morte e ressurreição, e não com o nascimento biológico”), assim também a língua sacra com a qual prestamos culto vem do exterior, da Santa Madre Igreja, que nos ensina uma nova língua cristã — uma “língua materna” espiritual — que representa a ordem sobrenatural na qual vivemos, nos movemos e temos o nosso ser sobrenatural. Os católicos do rito latino têm uma língua sacra que recebem “do exterior”, assim como o renascimento batismal.

De algum modo, a liturgia cristã nos diz que, ao entrarmos no templo do Senhor, não falamos meramente com um discurso natural, mas sobrenatural, uma língua de santos, de anjos, de Deus. Obviamente, essa língua não precisa ser o latim — como foi dito acima, muitas línguas sacras são usadas nos ritos tradicionais apostólicos —, mas não deveria ser o vernáculo cotidiano do círculo familiar ou do mercado, ou mesmo a linguagem técnica das disciplinas acadêmicas. Ela deveria ser separada por séculos de uso consagrado ao culto divino; desta forma, ela ajuda os fiéis a deixar de lado as preocupações terrenas e a consagrar partes simbólicas do seu tempo somente a Deus. 

Uma língua litúrgica tradicional é um lembrete de que a nossa adoção sobrenatural como membros da família de Deus é mais fundamental e definitiva do que qualquer família, cidadania, nação ou raça terrena.

5. Acima de tudo, algo que a Igreja Católica no Ocidente tem praticado por mais de 1600 anos — algo que quase todos os nossos santos canonizados praticaram — não pode ser condenado sem que se negue que o Espírito Santo guia a Igreja na direção da plenitude da verdade (cf. Jo 16, 13).

O Espírito Santo, que muniu os Apóstolos de expressão linguística enquanto pregavam para todas as nações, também deu à Igreja ocidental o latim litúrgico como herança transmitida século após século com uma veneração cada vez maior. O que foi estabelecido por escolha foi confirmado pelo costume e preservado pela piedade. As formas de culto se desenvolveram ao longo dos séculos com uma riqueza de conteúdo e estrutura tal, que foi se tornando cada vez mais difícil sua tradução ou adaptação para outro idioma; isso a tornou ainda mais preciosa e digna de cultivo. Contra o panorama de experimentos na vernaculização a partir da metade do século XX — experimentos que mais propriamente poderiam ser chamados de babelização —, um número cada vez maior de pessoas tem percebido que a herança latina continua sendo preciosa e digna de cultivo hoje em dia.

Por fim, os tipos corretos de unidade e diversidade são todos dons do Espírito Santo, cuja vinda singular com plena força sobre a Igreja é celebrada pelo rito romano durante oito dias de alegria e por diversos meses de “domingos após o Pentecostes”. Em meio à diversidade cultural, a Igreja Católica teve a sabedoria de reconhecer o poder espiritual de elementos centrais de unidade que nos mantêm unidos na confissão da verdadeira fé. Só podemos esperar e rezar para que, com o passar do tempo, as lideranças da Igreja recuperem algo do que imprudentemente foi desperdiçado [1].

Notas

  1. Recorde-se, a esse propósito, que a própria constituição Sacrosanctum Concilium, do Concílio Vaticano II, nunca falou em abolir o latim na liturgia. Se os Padres conciliares defenderam, por um lado, que se concedesse à língua vernácula um espaço mais amplo, por outro, também ficou determinado: “Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos” (n. 36, § 1); e ainda: “Tomem-se providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem” (n. 54) (Nota da Equipe CNP).

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