A pré-Quaresma, ou Septuagésima (aproximadamente o 70.º dia antes da Páscoa), começa na noite de amanhã, com as Primeiras Vésperas [1]. Esse período fascinante, que dura duas semanas e meia, atua como ponte entre o júbilo do ciclo do Natal e a austeridade da Quaresma. Usam-se vestimentas violáceas e suprimem-se o Glória e o Aleluia, mas não há nenhum jejum obrigatório; de fato, foi o velho costume de acabar com as comidas proibidas durante a Quaresma que levou aos excessos do Carnaval.
As orações próprias da Septuagésima são uma lição perfeita de como nos aproximar do ciclo da Quaresma e da Páscoa. Durante as Matinas deste tempo [N.T.: o atual Ofício das Leituras], a Igreja contempla a Queda de Adão: aquele fatídico ato, aquela felix culpa — como escutaremos durante o Exultet no Sábado Santo — que apressa nossa redenção através da Paixão, Morte e Ressurreição de Jesus Cristo.
A Coleta para o Domingo da Septuagésima é igualmente instrutiva:
Preces pópuli tui, quáesumus, Dómine, clementer exaudi: ut, qui iuste pro peccátis nostris afflígimur, pro tui nóminis gloria misericórditer liberémur. Per Dóminum. — Atendei com clemência, nós vos pedimos, Senhor, as orações do vosso povo, a fim de que nós, que com justiça somos afligidos por nossos pecados, pela glória do vosso nome sejamos misericordiosamente libertados. Por Nosso Senhor.
Assim como a Quaresma recorda os quarenta anos que os hebreus passaram no deserto, a Septuagésima evoca os setenta anos do exílio babilônico, quando o povo escolhido sentia tantas saudades de sua terra a ponto de não conseguir entoar sequer um cântico de Sião:
Junto dos rios de Babilônia, ali nos assentamos a chorar,
lembrando-nos de Sião.
Nos salgueiros que lá havia,
penduramos as nossas cítaras.
Os mesmos que nos tinham levado cativos pediam-nos
que cantássemos (os nossos) cânticos.
E os que à força nos tinham levado diziam:
Cantai-nos um hino dos cânticos de Sião.
Como cantaremos o cântico do Senhor
em terra estranha (lhes respondemos) (Sl 136, 1-4).
A supressão da palavra “Aleluia” durante todo esse tempo é uma conveniente imitação dos hebreus quando se recusavam a cantar junto aos rios da Babilônia, já que o Aleluia é uma canção nos lábios dos anjos e santos em nossa verdadeira pátria, que é o Céu.
A Septuagésima e a Quaresma são, assim, lembretes sérios de nossa condição de peregrinos vivendo a leste do Éden [2], “afligidos com justiça por nossos pecados” neste vale de lágrimas [3].
Mas ainda que sejamos afligidos com justiça, nós rezamos para que Deus “atenda com clemência” nossas orações. O pedido clementer exaudi, que ocorre três vezes nas orações do rito romano, é um tanto quanto difícil de traduzir. Audi significa escutar; ex-audi significa escutar com clareza, prestar atenção, conceder, ou até mesmo obedecer. Clementer é a forma adverbial de clemens, de onde vem clementia, “clemência”. Tanto em latim quanto em português, a palavra clementia traz consigo uma conotação jurídica, como quando o juiz demonstra clemência ao emitir sua sentença; e um dos títulos que recebiam os imperadores romanos era Clementia tua (literalmente “Vossa Clemência”, ou “Vossa Graça”). Por meio desta Coleta, estamos, essencialmente, reconhecendo que somos pecadores, ao mesmo tempo que imploramos por clemência.
E por que Deus, o supremo Juiz, a demonstraria a pecadores miseráveis como nós? Porque, diz a Coleta, esse ato dará glória ao seu nome. Talvez seja o povo que, livre dos seus pecados, dê glória a Deus, ou talvez o ato de clemência, em si mesmo, conte como um ato glorioso. Seja como for, a esperança de quem pede é que Deus seja impelido a agir pela glória do seu nome. Essa esperança, eco do Sl 78, 9 — Adiuva nos, Deus, salutaris noster; et propter gloriam nominis tui, Domine, libera nos, “Ajuda-nos, ó Deus, salvador nosso, e pela glória do teu nome, Senhor, livra-nos” —, está presente em toda Missa no Suscipiat (“Receba o Senhor por tuas mãos…”), quando o povo fiel pede a Deus que aceite o sacrifício eucarístico para o louvor e a glória do seu nome.
No Antigo Testamento, porém, a glória de YHWH (Javé) é também um verdadeiro “fenômeno físico indicativo da presença divina”, que apareceu no monte Sinai, no Tabernáculo, no Templo e que geralmente se manifesta como uma forma de luz [4]. As orações da Igreja na Páscoa aplicam essa luz à glória da Ressurreição; assim, quando a Coleta da Septuagésima pede por libertação pela glória do nome de Deus, ela já está prevendo aquela Luz no fim do túnel penitencial em que agora estamos entrando, trazendo-nos a esperança de que nossas mortificações encontrem um feliz resultado [5].
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